A INFRAÇÃO BAGATELAR E A REINCIDÊNCIA NO CRIME DE FURTO
Rogério Tadeu Romano
I – O PRINCIPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
A insignificância baseia-se nos postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima no direito penal; a insignificância exclui a tipicidade material; para o reconhecimento da insignificância devendo ser observados vetores como: a mínima ofensividade da conduta do agente; a nenhuma periculosidade social da ação; o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Ainda, o Ministro Ayres Britto (HC 107.082) apresentou parâmetros para aplicação do princípio da insignificância: vulnerabilidade social do agente; irrelevância da lesão para a vítima; amadorismo na execução do delito, desde que sem violência ou grave ameaça; desproporcionalidade da pena; existência de conteúdo econômico quanto ao objeto do crime.
A infração bagatelar ou delito de bagatela expressa o fato insignificante, de ninharia, ou, em outras palavras, de uma conduta ou, de um lado, de um ataque ao bem jurídico que não requer (ou não necessita a intervenção penal), como aduziu Luiz Flávio Gomes (Infração bagatelar imprópria).
A infração bagatelar deve ser compreendida sob dupla dimensão: a) infração bagatelar própria; b) infração bagatelar imprópria. Própria é a que nasce sem nenhuma relevância penal, ou porque não há desvalor da ação(não há periculosidade da conduta, Isto é, idoneidade ofensiva relevante) ou porque não há o desvalor do resultado(não se trata de ataque grave ou significativo ao bem jurídico). Para todas as situações da infração bagatelar própria o princípio o princípio a ser aplicado é o da insignificância(que tem o efeito de excluir a tipicidade penal, ou seja, a tipicidade material). A infração bagatelar imprópria é a que nasce relevante para o direito penal(porque há relevante desvalor da conduta bem como desvalor do resultado), mas depois se verifica que a incidência de qualquer pena em caso concreto apresenta-se totalmente desnecessária.
Há lição de Luiz Flávio Gomes(Princípio da insignificância e outras excludentes da tipicidade) no sentido de que o princípio da insignificância está para a infração bagatelar própria assim como a irrelevância penal do fato está para a infração bagatelar imprópria. De toda sorte, o princípio da irrelevância penal do fato está coligado de forma estreita com o princípio da desnecessidade da pena.
O fundamento da desnecessidade da pena reside em múltiplos fatores: ínfimo desvalor da culpabilidade, ausência de antecedentes criminais, reparação de danos, reconhecimento da culpa, colaboração com a justiça, o fato de o agente ter sido processado, o fato de ter ficado preso por um período, em análise que deve ser feita em concreto, caso a caso.
II – A REINCIDÊNCIA
O conceito de reincidência pode ser encontrado no art. 63 do Código Penal, litteris: “verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior”.
É de se considerar circunstância de um crime todo aquele elemento previsto em lei que não integra o tipo penal, não está previsto como parte da conduta, mas deve subsidiar o agravamento ou abrandamento da pena a ser fixada, caso esteja presente no caso concreto.
A presença das circunstâncias do artigo 61 do Código Penal, em um delito, demonstra um grau maior de reprovação da conduta do delinquente, daí advindo a necessidade de uma pena mais severa em face dele.
Em determinados crimes, o tipo penal pode prever alguma circunstância como elemento do delito, como parte dele, ela será, então, uma circunstância elementar do tipo penal.
Noutros casos, a norma penal, em sua redação, já inclui no tipo uma circunstância como causa à imposição de uma pena mais severa, nessa hipótese se fala em circunstância qualificadora, em crime qualificado.
A doutrina apresenta duas espécies de reincidência: a real, que ocorre apenas quando o agente cumpriu a pena correspondente ao crime anterior, e a ficta, que existe com a simples condenação anterior. Segundo o artigo 63, onde se adotou essa segunda corrente, “verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença, que, no País, ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior”. Para que ocorra a reincidência, com a consequente agravação da pena a ser imposta ao autor de determinado crime, é necessário que já tenha transitado em julgado uma sentença condenatória contra ele proferida no pais ou no estrangeiro, por outro crime (crime antecedente).
A agravante de reincidência prevista no artigo 61, inciso I, para que seja aplicada, exige que tenha trânsito em julgado a anterior sentença condenatória antes do cometimento do segundo crime. Não se caracteriza a reincidência se, na ocasião da prática de novo crime, estiver pendente de julgamento de qualquer recurso sobre o delito anterior, inclusive o extraordinário (RT 503/350).
Entende-se que, para o reconhecimento da reincidência, é indispensável a comprovação da condenação anterior por documento hábil, exigindo-se, daí, a competente certidão cartorária em que conste a data do trânsito em julgado.
Por certo, havendo a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva, não prevalece a sentença anterior para o efeito da reincidência, já que nessa hipótese desaparecem os efeitos da decisão. Mas, tratando-se de prescrição da prescrição executória, que extingue somente a pena, não fica excluída a agravante quando do cometimento de novo crime (RT 432/377). .
A teor do artigo 64, inciso I, do Código Penal, não prevalece para efeito de reincidência “a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a cinco anos, computado o período de prova da suspensão ou livramento condicional, se não ocorrer a revogação”.
Adota-se, pela redação dada pela Lei 6.416/77, o sistema da temporariedade com relação à caracterização da reincidência. Sendo assim, a condenação anterior somente será considerada para o reconhecimento da agravante de reincidência, se não houver decorrido cinco anos entre a data do cumprimento da pena referente ao delito anterior e a prática de crime posterior.
A lei determina que se passe a computar no prazo de cinco anos o período de prova de suspensão ou livramento condicional, se não ocorreu a revogação do benefício.
Necessário distinguir o que se chama de criminoso primário e criminoso reincidente. Criminoso primário é aquele que jamais sofreu condenação irrecorrível. Chama-se reincidente aquele que cometeu um crime após a data do trânsito em julgado da sentença que o condenou por crime anterior enquanto não transcorrido o prazo de cinco anos contados a partir do cumprimento ou da extinção da pena.
Não será considerado primário ou reincidente aquele que já foi condenado anteriormente por sentença transitada em julgado e comete o delito posterior após o prazo de cinco anos a contar do cumprimento ou extinção da pena.
Caso reconhecida a agravante de reincidência, são seus efeitos: agrava a pena (artigo 63); prepondera essa circunstância na fixação da pena (artigo 67); quando em crime doloso, impede a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito ou multa (artigo 44, inciso II, e 60, § 2º); impede a concessão do sursis quando se tratar de crimes dolosos (artigo 77, inciso I); impede que se inicie o cumprimento da pena em regime semiaberto (a não ser que se trate de detenção) ou aberto (artigo 33, § 2º, b e c); aumenta o prazo para a concessão de livramento condicional (artigo 83, inciso II); aumenta o prazo para a prescrição da pretensão executória (artigo 110, última parte); interrompe o prazo da prescrição (artigo 117, inciso V); revoga o sursis, obrigatoriamente, em caso de condenação por crime doloso (artigo 81, inciso I) e facultativamente na hipótese de crime culposo ou contravenção (argigo 81, § 1º); revoga o livramento condicional, obrigatoriamente, em caso de condenação a pena privativa de liberdade (artigo 86) e, facultativamente, na hipótese de crime ou contravenção, quando aplicada pena que não seja privativa de liberdade (artigo 97); revoga a reabilitação, quando o agente for condenado a pena restritiva de direitos em pena privativa de liberdade (artigo 44, § 5º); possibilita o reconhecimento da infração penal prevista no artigo 25 da LCP; impede a liberdade provisória para apelar (artigo 594 do CPP); impede a prestação de fiança em caso de condenação por crime doloso; impede o reconhecimento de causas de diminuição da pena (artigos 155, § 2º, 171, § 1º), dentre ouros efeitos.
III – DIVERSOS CASOS DE APLICAÇÃO OU NÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CASOS DE CRIMES DE FURTO DIANTE DA REINCIDÊNCIA DO ACUSADO
Destacando que a aplicação do princípio da insignificância não é irrestrita, o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro João Otávio de Noronha, negou o pedido de absolvição apresentado pela defesa de um servente condenado pelo furto de um rádio.
"O paciente, segundo consta do acórdão, ostentava oito condenações transitadas em julgado. Somam-se a isso as informações do documento no qual se destacou que, afora aquela passagem, o paciente, nos últimos 12 meses, havia tido seis procedimentos policiais", comentou o presidente do STJ ao afirmar que as circunstâncias justificam a negativa do pedido.
Conforme a denúncia, o servente entrou em uma loja mostrando interesse em comprar chinelos e dizendo ao vendedor que pagaria com cartão. No momento em que o vendedor foi buscar a máquina de cartão, ele se aproveitou e furtou um rádio que estava exposto à venda.
No habeas corpus, a defesa alegou que o dano material causado foi mínimo, justificando, no caso, a aplicação do princípio da significância. Em primeira instância, o juiz não atendeu o pedido, por levar em conta os antecedentes criminais desabonadores.
Ao analisar a apelação, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) lembrou que a jurisprudência do STJ e do Supremo Tribunal Federal utiliza quatro critérios para justificar a aplicação do princípio – mínima ofensividade da conduta, nenhuma periculosidade social da ação, grau reduzido de reprovabilidade e inexpressividade da lesão jurídica – e que esses requisitos não foram preenchidos no caso.
Tais foram as observações apresentadas no julgamento do HC 557.194.
A jurisprudência do STJ é no sentido de que a reiteração criminosa inviabiliza a aplicação do princípio da insignificância.
PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME DE FURTO. HABITUALIDADE DELITIVA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. RESTITUIÇÃO DO BEM. RAZÃO INSUFICIENTE PARA A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. A jurisprudência desta Quinta Turma reconhece que o princípio da insignificância não tem aplicabilidade em casos de reiteração da conduta delitiva, salvo excepcionalmente, quando as instâncias ordinárias entenderem ser tal medida recomendável diante das circunstâncias concretas do caso, o que não se infere na hipótese em apreço, máxime por se tratar de réu reincidente específico e ainda responder por diversos outros processos criminais. Precedentes. 2. O simples fato de o bem haver sido restituído à vítima, não constitui, por si só, razão suficiente para a aplicação do princípio da insignificância. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no AREsp n. 1.553.855-RS, relator Ministro Ribeiro Dantas, publicado no DJe de 26/11/2019.)
No julgamento do HC 123.533/SP, o Ministro Roberto Barroso afirmou que não se convenceu de que a reincidência deva, invariavelmente, impedir a aplicação do princípio da insignificância. Disse ele que “o direito penal não se destina a punir meras condutas indesejáveis, “personalidades”, meios ou “modos de vida”, e sim crimes, isto é, condutas significativamente perigosas ou lesivas a bens jurídicos, sob pena de se configurar um direito penal do autor, e não do fato”.
No que concerne ao furto qualificado, o Ministro Roberto Barroso, naquele julgamento referenciado, considerou que “não é possível que a aplicação do princípio dependa de circunstâncias pessoais do agente ou de fatores atinentes a etapa posterior da análise do delito (culpabilidade)”.
Em razão disso, concluiu o Ministro Roberto Barroso que para se reconhecer a insignificância no furto prepondera a ausência de desvalor do resultado.
Para o Ministro Roberto Barroso, a simples circunstância de se tratar de réu reincidente ou de incidir alguma qualificadora (CP, artigo 155, § 4º) não deve, automaticamente, afastar a aplicação do princípio da insignificância, pois seria necessário uma motivação específica à luz das circunstâncias do caso concreto, como o alto número de reincidências, a especial reprovabilidade decorrente de qualificadoras. Ademais, para se aplicar o princípio da insignificância, não deve bastar a mera existência de inquéritos ou processos em andamento, pois será necessário a condenação transitada em julgado (HC 111.016, Relator Ministro Celso de Mello: HC 107.500, Relator Ministro Joaquim Barbosa).
“A reincidência não impede, por si só, que o juiz da causa reconheça a insignificância penal da conduta, à luz dos elementos do caso concreto” (HC 123.108/MG, Rel. Min. Roberto Barroso, Plenário).
No HC 115.319, o STF 2ª Turma negou HC por reincidência a condenado por furto de pequeno valor.
Naquele julgamento, conforme observou o relator, em razão da reincidência no crime não poderia ser levado em conta, no caso, somente o baixo valor do objeto de furto e o fato de se tratar de alimento. Cabe considerar, também, a conduta do condenado e a habitualidade dele na vida criminosa, de acordo com a jurisprudência já firmada sobre o assunto pela Suprema Corte.
Pois bem: A reincidência não impede, por si só, a aplicação do princípio da insignificância. Com esse entendimento o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, concedeu Habeas Corpus a uma mulher condenada por furtar um vestido avaliado em R$ 80.
Absolvida em primeira instância, a mulher foi condenada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais à pena de 8 meses de reclusão, substituída por uma pena restritiva de direitos. Para a corte mineira, embora o valor seja pequeno, a quantia não pode ser considerada irrisória. O TJ-MG ressaltou que apesar de o vestido ter sido avaliado em R$ 80, a dona da loja afirmou que o valor da peça era de R$ 120.
Tal julgamento se deu nos autos do HC 143.832.
Em outro giro observo que, a par disso, é necessário verificar se a reincidência delitiva é óbice para a aplicação do princípio da insignificância, eis que não há preenchimento do requisito do reduzido grau de reprovabilidade, haja vista que a prática criminosa tornou-se ofício do autor do fato. Neste sentido, colaciona-se decisão prolatada pelo STF nos autos do HC n.º 101.998/MG:
EMENTA Habeas corpus. Furto de barras de chocolate. Res furtivae de pequeno valor. Mínimo grau de lesividade. Alegada incidência do postulado da insignificância penal. Inaplicabilidade. Paciente reincidente específico em delitos contra o patrimônio, conforme certidão de antecedentes criminais. Ordem denegada. 1. Embora seja reduzida a expressividade financeira dos produtos subtraídos pelo paciente, não há como acatar a tese de irrelevância material da conduta por ele praticada, tendo em vista ser ele reincidente específico em delitos contra o patrimônio. Esses aspectos dão claras demonstrações de ser um infrator contumaz e com personalidade voltada à prática delitiva. [...]” (HC 101998, Relator (a): Min. Dias Toffoli, 1ª Turma, julgado 23/11/2010).
Em 11 de setembro de 2018, a Primeira Turma manteve condenado um réu acusado de tentar furtar um par de tênis e 19 garrafas de cervejas vazias, avaliados em R$ 34,25. No recurso, a Defensoria Pública alegou que, pelo princípio da insignificância, o réu deveria ser absolvido.
Os ministros da turma argumentaram que o princípio da insignificância não deveria ser aplicado no caso específico porque o réu era reincidente. Mas o valor que o acusado tentou furtar foi levado em conta para se diminuir a pena aplicada.
Em 12 de novembro de 2018, a Segunda Turma do Supremo julgou o recurso do Ministério Público contra a absolvição de um réu pela tentativa de furto de um frasco de desodorante, uma caixa de comprimidos para dor de cabeça e um sabonete líquido, avaliados em R$ 30. Os bens foram devolvidos ao estabelecimento comercial, depois da tentativa frustrada de furto. Nesse caso, o réu também era reincidente. Tinha sido condenado a quatro meses de reclusão no regime aberto, mais pagamento de multa. Em recurso, o ministro Gilmar Mendes, do STF, absolveu o acusado, mas o Ministério Público recorreu com o argumento de que o princípio da insignificância não poderia ser aplicado no caso específico, pela reincidência. A Segunda Turma manteve a decisão do relator.
— Não é razoável que o Direito Penal e todo o aparelho do estado-polícia e do estado-juiz movimentem-se no sentido de atribuir relevância à hipótese de furto de bens avaliados em R$ 30 — disse o ministro Gilmar Mendes, no voto.
Tais decisões de duas turmas, órgãos fracionários do Supremo Tribunal Federal, além de denotarem o grau de divergência já anotado pela comunidade jurídica com relação a elas, traz
Observe-se, pois, que a matéria é polêmica, exigindo dos aplicadores do direito o devido entendimento caso a caso.