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A dimensão jurídica da Lei de Anistia

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18/03/2024 às 19:57

Resumo:


  • A Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79) no Brasil tem sido alvo de debates e questionamentos, especialmente em relação à sua constitucionalidade e à imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade.

  • O Supremo Tribunal Federal (STF) já se pronunciou sobre a constitucionalidade da Lei de Anistia, com decisão favorável à sua validade, mas o debate continua em diferentes esferas políticas e jurídicas.

  • O Brasil não ratificou a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade, o que levanta questões sobre a aplicabilidade da imprescritibilidade desses crimes no âmbito nacional.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

8. Do Costume Jurídico como Fonte do Direito e em Contraposição ao Princípio da Legalidade.

Como visto, a Corte Interamericana invocou a noção de costume jurídico internacional para afirmar a responsabilidade do Estado brasileiro. O costume jurídico, segundo pacífica doutrina (REZEK, 2002, p. 113), figura como fonte do Direito Internacional, assentando-se sobre dois elementos indispensáveis à sua formação e consequente aplicabilidade: o material e o psicológico. O primeiro consiste na prática constante e reiterada de uma certa conduta. No caso do Direito Internacional, na repetição de determinado procedimento por parte dos Estados. O elemento psicológico (opinio juris) guarda relação com a convicção de que tal proceder é necessário. Somente pela conjugação dos dois elementos a norma costumeira é formada.

Tendo em vista que o Brasil não ratificou a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade, e transportando a ideia inerente à norma costumeira para o tema em discussão, duas questões surgem e devem ser debatidas, posto que fundamentais para o deslinde da vexata quaestio: a) de início, é preciso considerar se o cenário internacional atual permite mesmo inferir que os Estados concebem a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade enquanto verdadeiro costume jurídico; b) ultrapassada tal análise, há que se discutir se o fato de o Direito Constitucional brasileiro restringir os casos de imprescritibilidade ao delito de racismo (art. 5º, XLII, da CF) e à ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV, da CF) funciona como óbice à adoção, por parte do Brasil, de um suposto costume jurídico internacional.

Quanto à primeira questão, cabe mencionar que a doutrina internacionalista diverge a respeito da efetiva existência, na cena internacional, de um tal costume. RATNER e ABRAMS (1997, p. 26) aludem que o fato de ter havido pouca adesão à Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, bem como à Convenção Europeia sobre os Crimes contra a Humanidade e os Crimes de Guerra, militaria em prol da tese que pugna pela inconsistência de uma norma consuetudinária.

Embora a Corte Interamericana em nenhum momento tenha se embasado no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional para forjar a noção de imprescritibilidade inerente aos crimes contra a humanidade, interessa, para o presente estudo, verificar como tal documento internacional trata do tema, obtendo-se um panorama mais recente e abrangente sobre a questão, possibilitando o emprego da denominada interpretação sistemática. Pois bem. O assunto, no Estatuto de Roma, é abordado apenas numa regra, qual seja, o artigo 29, segundo a qual os crimes da competência do Tribunal Penal Internacional não prescrevem. Com efeito, é possível argumentar que a edição do Estatuto de Roma configura um dado apto a demonstrar a inexistência de uma norma costumeira relativa à imprescritibilidade de tais delitos na cena internacional. Pode-se afirmar, portanto, que o artigo 29 surgiu justamente para estancar a problemática causada pela Convenção de 1968, a qual acolhia o odioso princípio da retroatividade da lei penal mais severa. Nesse sentido, afirma VELLOSO que a análise dos trabalhos preparatórios relativos ao Estatuto de Roma permite inferir a existência de dúvida quanto à afirmação segundo a qual o artigo 29 do Tribunal Penal Internacional estaria a codificar uma norma consuetudinária internacional já existente. Da mesma forma, assevera a pesquisadora que "embora os Estados-partes no Estatuto de Roma tenham chegado a um acordo sobre a regra convencional da imprescritibilidade, à época da negociação o debate, iniciado trinta anos antes, não havia sido concluído. A natureza costumeira deste princípio não se havia consolidado, mas encontrava-se ainda em processo de afirmação" (2008, p. 20).

Nada obstante, ainda que a Corte Interamericana tenha proclamado a existência de um tal costume jurídico, não há como adotá-lo, no plano interno, de modo a viabilizar a punição de crimes cobertos pela Lei de Anistia. A propósito, ANDRÉ ESTEFAM assevera que não "pode o direito consuetudinário [...] embasar a punição criminal de um ato, ou mesmo o agravamento das consequências penais de uma infração penal definida em lei" (ESTEFAM, 2012, p. 125). Assim, voltando à segunda pergunta formulada alhures, resta evidente a impossibilidade de se invocar o costume jurídico internacional para alicerçar a pretensão punitiva do Estado, sobretudo diante do princípio da legalidade.

Segundo leciona MIRABETE, "não se pode falar em criação ou revogação de crimes pelo costume, dado o princípio da legalidade" (2011, p. 29). Na mesma linha de raciocínio, JUAREZ CIRINO assevera que o "princípio da legalidade proíbe o costume como fundamento de criminalização e de punição de condutas, porque exige lex scripta para os tipos legais e as sanções penais" (CIRINO, 2006, p. 22).

Assim, ao se basear num suposto costume jurídico internacional, a sentença prolatada pela Corte fez letra morta do princípio da legalidade, considerado por todos os penalistas modernos como o postulado mais sagrado do Direito Penal, verdadeiro dogma cuja observância irrestrita é fundamental para o legítimo aviamento do jus puniendi, decisão que se apresenta incoerente, já que tal proceder representa um retrocesso e nega um dos mais sólidos avanços democráticos obtidos ao longo dos séculos em matéria de Direito Penal (ESTEFAM, 2012, p. 124). Por força do aludido princípio, previsto não somente no Direito brasileiro (art. 5º, XXXIX, da CF; art. 1º do CP), mas com igual previsão no artigo 9 do Pacto de San José da Costa Rica (promulgado pelo Decreto nº 678/92), é impossível valer-se de um conceito consagrado pelo Direito Internacional, e não acolhido pelo Direito Interno através da sistemática vigente para a incorporação de tratados, a fim de se descortinar o jus puniendi.

A sentença da Corte Interamericana desenvolve-se, então, a partir de um raciocínio incongruente. A Corte Interamericana afirma, por um lado, que "a jurisprudência, o costume e a doutrina internacionais consagram que nenhuma lei ou norma de direito interno, tais como as disposições acerca da anistia, as normas de prescrição e outras excludentes de punibilidade, deve impedir que um Estado cumpra a sua obrigação inalienável de punir os crimes de lesa-humanidade" (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010). Por outro, decide que o Estado brasileiro deve fazer ouvidos moucos para o artigo 9 do Pacto de San José da Costa Rica, que consagra o mais fundamental de todos os princípios do Direito Penal, qual seja, o da legalidade.

Com efeito, por conta do dogma da legalidade, não se admite o emprego do Direito Consuetudinário como forma de ampliar a esfera punitiva estatal, justamente o que a sentença da Corte Interamericana, de certo modo, pretende fazer.


9. Conclusão.

Analisada sob o prisma jurídico, não obstante todas as considerações identificadas e apontadas nas principais teses jurídicas abordadas quando da análise da ADPF nº 153, do Caso Riocentro, do Caso Rubens Paiva e da sentença proferida pela Corte Interamericana no Caso Julia Lund Gomes e Outros, a Lei de Anistia permanece válida, inclusive por expresso reconhecimento pela Suprema Corte brasileira, razão pela qual o jus puniendi, nas hipóteses acima, esbarra em óbices constitucionais incontornáveis, que podem ser resumidos através dos seguintes enunciados:

a) Embora presente no Direito Internacional, inexiste, no Direito Interno, qualquer definição de crime contra a humanidade.

b) A impossibilidade de punição dos autores de crimes perpetrados nas ocasiões referidas decorre de marcos limitadores do poder punitivo estatal, dentre os quais se pode citar o fenômeno da prescrição, cuja essência deve ser interpretada de modo a se evitar a ampliação das hipóteses que conduzem a casos de imprescritibilidade, justamente por ser aquela uma causa que extingue, elimina e afasta a sanção penal do Estado.

c) O tema prescrição, justamente por interferir diretamente no jus puniendi do Estado, não pode ser contornado sob o argumento de que o costume jurídico internacional considera a tortura e o terrorismo, quando cometidos por agentes do Estado como forma de perseguição política, como crimes contra a humanidade.

d) Invocar um costume jurídico internacional, cuja existência é absolutamente controvertida, revela um descompromisso com o princípio da legalidade penal.

e) Nem mesmo a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade pode ser invocada como argumento para conferir tal imprescritibilidade aos crimes então praticados.

f) Mostra-se extremamente perigoso alargar, sem lastro jurídico e por meio de simples falácias, o campo de incidência do Direito Penal. Nesse sentido, cumpre lembrar o notável CLAUS ROXIN (2006, p. 138), para quem um Estado de Direito deve proteger o indivíduo não apenas através do Direito Penal, mas também do próprio Direito Penal.

Registre-se, ainda, que tal contestação quanto à Lei de Anistia reflete, em última análise, não uma discussão meritória e jurídica acerca de seus comandos normativos, mas, sim, uma grave e indiscutível negação à própria democracia, considerando o flagrante desrespeito à autoridade de uma decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Judiciário brasileiro, moderno e poderoso instrumento de estabilização política, o que, a toda evidência, não se coaduna com o espírito democrático enraizado na Constituição de 1988.


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Notas

1 Dispõe a Lei n° 6.683/79:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).

§ 1º Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

§ 2º Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.

§ 3º Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar demitido por Ato Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do respectivo cargo, para poder habilitar-se ao montepio militar, obedecidas as exigências do art. 3º.

2 Preceitua o art. 4º da EC nº 26/85:

Art. 4º É concedida anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares.

§ 1º É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais.

§ 2º A anistia abrange os que foram punidos ou processados pelos atos imputáveis previstos no caput deste artigo, praticados no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.

§ 3º Aos servidores civis e militares serão concedidas as promoções, na aposentadoria ou na reserva, ao cargo, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade, previstos nas leis e regulamentos vigentes.

§ 4º A Administração Pública, à sua exclusiva iniciativa, competência e critério, poderá readmitir ou reverter ao serviço ativo o servidor público anistiado.

§ 5º O disposto no caput deste artigo somente gera efeitos financeiros a partir da promulgação da presente Emenda, vedada a remuneração de qualquer espécie, em caráter retroativo.

§ 6º Excluem-se das presentes disposições os servidores civis ou militares que já se encontravam aposentados, na reserva ou reformados, quando atingidos pelas medidas constantes do caput deste artigo.

§ 7º Os dependentes dos servidores civis e militares abrangidos pelas disposições deste artigo já falecidos farão jus ás vantagens pecuniárias da pensão correspondente ao cargo, função, emprego, posto ou graduação que teria sido assegurado a cada beneficiário da anistia, até a data de sua morte, observada a legislação específica.

§ 8º A Administração Pública aplicará as disposições deste artigo, respeitadas as características e peculiaridades próprias das carreiras dos servidores públicos civis e militares, e observados os respectivos regimes jurídicos.

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Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduação em Engenharia pela Universidade Santa Úrsula (1991), graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), graduação em Administração - Faculdades Integradas Cândido Mendes - Ipanema (1991), graduação em Direito pela Faculdade de Direito Cândido Mendes - Ipanema (1982), graduação em Arquitetura pela Universidade Santa Úrsula (1982), mestrado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1989) e doutorado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991). Atualmente é professor permanente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local - MDL do Centro Universitário Augusto Motta - UNISUAM, professor conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, professor emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Diretor do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região -, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, soberania, defesa, CT&I, processo e meio ambiente.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. A dimensão jurídica da Lei de Anistia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7565, 18 mar. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79513. Acesso em: 22 dez. 2024.

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