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O empresário irregular ou de fato e o Direito das Empresas em Crise.

Legitimidade ativa e passiva nos processos de recuperação e falência

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O EMPRESÁRIO IRREGULAR OU DE FATO E O PROCESSO DE FALÊNCIA

Da falência do empresário irregular ou de fato

De início, insta considerar que o artigo 97, da Lei nº 11.101/2005, elenca as pessoas que detêm legitimidade ativa para requerer a falência do devedor, sendo estas o próprio devedor; o cônjuge sobrevivente, o herdeiro ou o inventariante; o cotista ou o acionista do devedor e; qualquer credor35.

Tais disposições revestem-se da maior importância, pois, a depender de quem requeira a falência, ter-se-ão distintos fundamentos jurídicos para a legitimidade passiva do empresário individual ou sociedade empresária irregular ou de fato no processo de falência, uma vez que a Lei de Recuperações e Falências não prevê um procedimento único para o requerimento da falência por terceiro e aquele realizado pelo próprio devedor.

Analisando-se a Lei nº 11.101/2005, vê-se que esta, em seu artigo 9436, enumera os casos que autorizam a decretação da falência, quais sejam: a impontualidade do devedor, demonstrada a partir da apresentação de títulos de créditos não pagos e devidamente protestados, cujo valor seja superior a 40 (quarenta) salários mínimos; a existência de execução judicial frustrada, na qual o devedor não tenha efetuado o pagamento, nomeado bens à penhora ou efetuado o depósito e; a prática dos chamados atos de falência, os quais, consoante ensina Fábio Ulhoa Coelho, se traduzem em comportamentos que indicam a insolvência econômica do devedor, ou seja, são atos que acusam que o empresário individual ou a sociedade empresária se encontra com o patrimônio ativo inferior ao passivo. Apesar de que, conforme defende o jurista, não há exigibilidade da configuração de tal situação fática, pois a Lei impõe uma presunção absoluta, bastando para a existência do estado jurídico da falência a prática dos atos previstos no inciso III do artigo 94 supracitado37.

Nota-se, portanto, que a Lei não exige do terceiro que requer a falência do devedor a demonstração da condição de empresário deste, quando, em seu artigo 94, parágrafos 1º ao 5º, especifica os documentos necessários à instrução do pedido. Assim, constata Amador Paes de Almeida que incumbe ao devedor evidenciar, em sua defesa, que não ostenta a qualidade de empresário, não sendo este um encargo legalmente atribuído ao requerente da falência38.

Esse entendimento era perfilhado por Rubens Requião na vigência do Decreto-Lei nº 7.661/1945. Defendia o jurista que a Lei não exigia do credor requerente da falência a prova da condição de empresário comercial do devedor, cabendo a este fazer prova em contrário, em sua defesa, por qualquer meio idôneo39.

Marlon Tomazette, de outro lado, entende que a prova da qualidade de empresário do devedor sempre deve ser feita pelo autor do pedido de falência, não deixando de ressaltar, contudo, que não se trata de tarefa fácil no caso dos empresários irregulares ou de fato, tendo em vista a necessidade de ser evidenciado o exercício da empresa40.

Inobstante, vê-se que a interpretação exposta por Amador Paes de Almeida mostra-se mais arrazoada, haja vista o fato de ser mais onerosa ao terceiro requerente da falência a demonstração da situação fática inerente ao devedor. Assim, o entendimento de que a Lei nº 11.101/2005 incumbe o devedor de produzir a prova tendente a evitar a falência, pelo não preenchimento do pressuposto da legitimidade passiva, mostra-se consentâneo com o instituto da inversão do ônus da prova, previsto no artigo 373, 1º, do Código de Processo Civil de 200541.

Percebe-se, portanto, que em se tratando de pedido de falência formulado por terceiro, a Lei de Recuperações e Falências não prevê expressamente a quem concerne o ônus de demonstrar a condição de empresário individual ou de sociedade empresária do devedor, apesar desta circunstância constituir um dos pressupostos fundamentais do processo de falência. Contudo, o fato de que a Lei não exige referida prova, ao elencar, no artigo 94 supratranscrito, os documentos necessários à instrução do requerimento da falência, leva a crer que esta não se traduz em encargo do autor do pedido.

Outra é a situação, no entanto, em se tratando do pedido de falência apresentado pelo próprio devedor. Nesse caso, o procedimento será regido pelas diretrizes dos artigos 105 a 107 da Lei de Recuperações e Falências42, havendo previsão expressa, no artigo 105, inciso IV, que o devedor poderá fazer prova da sua condição de empresário por outros meios, caso não exista contrato social ou estatuto social em vigor.

Desse modo, em conformidade com o ensinamento de Marlon Tomazette, não é exigida a regularidade do devedor que requer a autofalência, sendo suficiente que este não cumpra os requisitos para a requisição da recuperação judicial, uma vez que a Lei admite seja o pedido formulado e processado ainda que o devedor não disponha de seus atos constitutivos43.

Nessa mesma perspectiva, esclarece Fábio Ulhoa Coelho que a Lei de Recuperações e Falências faculta a qualquer devedor empresário – desde que não se trate das pessoas excluídas do âmbito de incidência legal por força do artigo 2º –, o requerimento da autofalência, não excluindo da possibilidade o empresário irregular ou de fato, uma vez que o diploma normativo permite a instrução do pedido com o contrato social não registrado. Registra o jurista, contudo, que deverá o devedor requerente da autofalência instruir o pedido com os seus livros comerciais, para que estes sejam encerrados pelo juiz e, depois de decretada a falência, entregues ao administrador judicial da falência44.

Importa salientar que paira certo dissenso doutrinário acerca dos fundamentos legais para a requisição da falência pelas pessoas previstas no inciso II do artigo 97, a saber, o cônjuge sobrevivente, os herdeiros e o inventariante do devedor. Para Marlon Tomazzete, ao requerer a falência do devedor, tais pessoas devem cumprir os requisitos previstos no artigo 94 supracitado, os quais são aplicáveis, no seu entender, a qualquer pedido de falência formulado por terceiro que não o próprio devedor45.

Entende o jurista que a distinção procedimental existente entre o pedido de autofalência e o requerimento feito pelo cônjuge, herdeiro ou inventariante do devedor decorre do parágrafo único do artigo 107 da Lei nº 11.101/200546, o qual estabelece que apenas depois de decretada a falência requerida pelo devedor, tornam-se aplicáveis os dispositivos que regulam a falência reclamada por qualquer dos outros legitimados47.

Gladston Mamede, por outro lado, defende que, em se tratando de falência demandada conjuntamente por todos os sucessores do de cujus, o rito aplicável será o da autofalência, posto que inexistente o caráter contencioso. Contudo, entende o jurista que a equiparação apenas é possível quando se tratar de pedido de falência do empresário individual regularmente inscrito na junta comercial48.

Fábio Ulhoa Coelho, assim como Tomazette, defende que o rito previsto nos artigos 105 a 107 da Lei nº 11.101/2005 apenas se aplica em se tratando de autofalência. No seu entender, em todos os casos de requerimento da falência por terceiro, aplica-se o rito que permite o exercício do caráter contencioso da demanda49.

É nítido, contudo, que a adoção de um ou de outro entendimento, para fins de aferição da legitimidade passiva do devedor, apenas repercute na atribuição do ônus da prova, uma vez que, como visto, em se tratando do requerimento da falência por terceiro, a Lei não exige a comprovação da condição de empresário do devedor, já em se tratando do rito da autofalência, a Lei determina que seja dever do requerente a demonstração da legitimidade passiva do devedor.

Do requerimento da falência pelo credor empresário irregular ou de fato

Acerca da legitimidade ativa do credor empresário irregular ou de fato para requerer a falência do seu devedor verifica-se que existe vedação legal expressa, uma vez que para tanto a Lei 11.101/2005, em seu artigo 97, § 1º, exige justamente a comprovação da regularidade da atividade empresária. Confiram-se os termos legais:

Art. 97. Podem requerer a falência do devedor:

...

§ 1º O credor empresário apresentará certidão do Registro Público de Empresas que comprove a regularidade de suas atividades.50

Nesse sentido, ensina Amador Paes de Almeida que a Lei de Recuperações e Falências não faz qualquer imposição a respeito da pessoa do credor requerente da falência, o qual poderá ser ou não empresário. Contudo, observa que do credor empresário a Lei requer a demonstração da regularidade da sua atividade, com a juntada, à petição inicial, de certidão comprobatória do Registro da Empresa, expedida pela junta comercial, para que seja instaurado o processo de falência do devedor51.

Também Fábio Ulhoa Coelho se pronuncia acerca da legitimidade ativa do credor empresário para requerer a falência do seu devedor, apontando a existência de requisitos específicos, quais sejam: a comprovação do exercício regular da empresa e a prestação de caução quando se tratar de credor domiciliado no exterior52.

Marlon Tomazette, outrossim, sublinha a exigibilidade da regularidade do credor empresário para que este possa requerer a falência do seu devedor, esclarecendo que se trata de uma maneira indireta de a Lei nº 11.101/2005, ao restringir a atuação dos empresários irregulares, incentivar o exercício regular da empresa53.


O EMPRESÁRIO IRREGULAR OU DE FATO E A RECUPERAÇÃO JUDICIAL

A recuperação judicial, instituto previsto pela Lei nº 11.101/2005, consiste em um instrumento posto à disposição do devedor, desde que este se enquadre nas especificações legais, o qual permite a conjugação de esforços entre o devedor, a sociedade e o Estado, visando à superação da situação de crise econômico-financeira atravessada pelo empresário, a manutenção da atividade empresária e, consequentemente, de suas repercussões sociais, tais como os postos de trabalho, a produção e circulação de bens ou serviços e o recolhimento de tributos pelos cofres públicos.

Privilegia-se, desse modo, a função social da empresa, promovendo-se a socialização da crise, uma vez que os efeitos deletérios da quebra do empresário não se restringem ao seu âmbito individual de direito, mas afetam toda uma coletividade.

Contudo, apesar de a Lei nº 11.101/2005 ter inaugurado o instituto da recuperação judicial no Brasil, a partir do reconhecimento da relevância social da empresa, observa-se que a sua disciplina legal é rigorosa, havendo diversos empresários que dela não podem se beneficiar, seja por vedação explícita ou implícita.

Na esteira do ensinamento de Marlon Tomazette, em um primeiro momento a Lei de Recuperações e Falências, ou Lei da Insolvência Empresarial54 – nomenclatura mais adequada no entendimento de José Alberto Rôla –, não faz nenhuma restrição da sua aplicabilidade, estendendo-se a qualquer devedor empresário, seja ele empresário individual ou sociedade empresária, nos termos do seu artigo 1º supracitado55.

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De modo a restringir o campo de abrangência da recuperação empresarial – assim como da falência –, contudo, a Lei 11.101/2005, em seu artigo 2º56, explica ainda Marlon Tomazette, exclui expressamente algumas entidades empresárias da possibilidade de virem a socorrerem-se das suas disposições57.

A situação do empresário irregular ou de fato, todavia, não é tratada de maneira tão visível. De fato, apenas se pode vislumbrar a intenção do legislador ordinário quando considerados os requisitos específicos para o requerimento da recuperação judicial pelo devedor empresário, constantes do artigo 48 da Lei de Insolvência Empresária, in verbis:

Art. 48. Poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos e que atenda aos seguintes requisitos, cumulativamente:

I – não ser falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado, as responsabilidades daí decorrentes;

II – não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial;

III - não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial com base no plano especial de que trata a Seção V deste Capítulo;

IV – não ter sido condenado ou não ter, como administrador ou sócio controlador, pessoa condenada por qualquer dos crimes previstos nesta Lei.58

Ora, já no seu caput o dispositivo estabelece uma condição para que o devedor possa solicitar a sua recuperação judicial, qual seja o exercício regular da atividade empresária ha mais de 2 (dois) anos. Resta necessário concluir, portanto, pela impossibilidade de o empresário irregular ou de fato vir a valer-se da recuperação judicial a fim de superar o cenário de crise na sua atividade.

Consoante ensina Marlon Tomazette, diante da exigência legal de regularidade é que os empresários individuais irregulares ou de fato e as sociedades em comum, conquanto ostentem a natureza empresária, não se podem beneficiar da recuperação judicial. Para ele, trata-se de um meio de não proteger ou prestigiar o empresário que não cumpra as obrigações decorrentes do regime jurídico empresarial, incentivando-se, assim, o exercício regular da empresa59.


CONCLUSÃO

A partir das reflexões ora empreendidas, é possível perceber que a aferição da situação do empresário irregular ou de fato relativamente à submissão ao regime jurídico da Lei de Recuperações e Falências não é uma tarefa fácil, haja vista a coexistência de diversos fatores. Se, por um lado, a nítida finalidade recuperatória do diploma normativo indica o máximo interesse do legislador na manutenção da atividade empresária em crise, por outro a Lei foi bastante reticente acerca do seu âmbito de incidência, silenciando, muitas vezes, acerca do tratamento dispensando à atividade empresária exercida irregularmente.

Examinando-se o entendimento doutrinário majoritário, contudo, é perceptível que este se encontra firmemente consolidado acerca das possibilidades e limitações relativas à sujeição do empresário irregular ou de fato ao regime da insolvência empresária, havendo poucas divergências, as quais se restringem a aspectos secundários.

Assim, observa-se que é unânime o entendimento de que as disposições da Lei nº 11.101/2005 são aplicáveis ao empresário irregular ou de fato, haja vista que a ausência de registro na junta comercial não afasta a sua condição de empresário, excepcionando-se as limitações decorrentes da própria Lei.

Tais limitações, conforme aponta a doutrina, consistem na impossibilidade de requerimento da falência do seu devedor pelo credor empresário irregular ou de fato, uma vez que a Lei da Insolvência Empresária exige a comprovação da regularidade da atividade do requerente para tanto, bem como na vedação à concessão da recuperação judicial ao empresário que não se encontre regularmente registrado no Registro Público de Empresas Mercantis há mais de dois anos.

Nota-se, ademais, que existe uma pequena divergência na doutrina acerca do ônus da prova quando do requerimento da falência do devedor empresário irregular ou de fato, em função do silêncio da Lei. Há quem defenda que se trata de atribuição do terceiro requerente da falência e, por outro lado, há quem entenda que é incumbência do requerido demonstrar, em sede de defesa, que não exerce atividade empresária.

Tal divergência não existe, no entanto, quando se trata do pedido de autofalência, caso em que a lei determinou expressamente que o ônus de provar a legitimidade para a submissão do devedor ao processo de falência é do próprio requerente. Aqui, a divergência existente cinge-se aos casos em que se faz aplicável o procedimento previsto especificamente para a autofalência, havendo quem entenda que só é cabível quando o requerente for o próprio devedor e, de outro lado, quem entenda que existem outras possibilidades, como é o caso da falência requerida pelos herdeiros, cônjuge supérstite ou inventariante, quando ausente o caráter contencioso.

Constatação de maior relevância, contudo, consiste no fato de que a Lei nº 11.101/2005, apesar de aprovada pouco depois da positivação da chamada teoria da empresa no ordenamento jurídico brasileiro, a qual tem por fundamento a função social da atividade empresária, pouco inovou em relação ao regime jurídico-empresarial antecedente, exceto por regular de modo menos explícito a situação do empresário irregular ou de fato.

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Sobre a autora
Antonia Angélica Pinto de Araújo

Graduanda em Direito, Universidade Federal do Ceará, Estagiária, Ministério Público Federal, Fortaleza, Ceará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Antonia Angélica Pinto. O empresário irregular ou de fato e o Direito das Empresas em Crise.: Legitimidade ativa e passiva nos processos de recuperação e falência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7338, 4 ago. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79580. Acesso em: 9 mai. 2024.

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