Reforma da previdência do servidor público do Estado de São Paulo 2019/2020.

Incongruências do Projeto de Lei Complementar nº 80/2019

01/03/2020 às 00:35
Leia nesta página:

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No que diz respeito aos servidores públicos civis do Estado de São Paulo, o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) mantém diversos dispositivos originais da Lei Complementar 180/1978, que instituiu o Sistema de Administração de Pessoal e, nos artigos 132 a 161, dispôs sobre previdência.

Esse fato se dá, apesar de significativas alterações daquele diploma legal, principalmente pelas Leis Complementares 1.010/2007 e 1.012/2007, no contexto da reforma previdenciária realizada à época. Reforma que, todavia, optou por não alterar muitos desses dispositivos originais, os quais se encontram em vigor até o presente, em extensa relação, a saber: artigos 132; 134; 135, §§ 1º e 2º; 136; os parágrafos do artigo 137; e artigos 138; 139; 145; 146; 151; 152; 153; 156; 157; 159; 160 e 161.

Pois bem. O Projeto de Lei Complementar 80/2019, ora em trâmite acalorado na Assembleia Legislativa, e que se destina a regulamentar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 18/2019 à Constituição do Estado, arrasa desnecessariamente, e de forma radical, diversos pontos dessa legislação estadual, por meio do seguinte dispositivo: "Artigo 33 - Revogam-se as disposições em contrário, especialmente os artigos 132 a 163 da Lei Complementar nº 180, de 12 de maio de 1978." (ênfase adicionada).

Ora, como demonstrado a seguir, todos esses pontos são de grande importância para a seguridade social do funcionalismo. E, de plano, já se constata que esse artigo 33 do Projeto, pela sua singeleza terrível, aparenta não ter resultado de um estudo mais apurado acerca do regime atual.

Nesse sentido, vejamos alguns dos institutos jurídicos colocados por terra, nessa alteração:

1. Uma definição legal da base de cálculo da contribuição

Os artigos 137 a 139 da LC 180 conceituam "retribuição-base" para fins de cálculo do benefício, equivalendo ao conceito de "salário-de-contribuição" no Regime Geral de Previdência Social; os artigos detalham as vantagens pecuniárias e diversas circunstâncias que integram o cálculo da contribuição previdenciária, e serão revogados sem que haja, no PLC 80/2019, quaisquer disposições a respeito. Tal fato pode encorajar, inclusive, novas – e sempre renovadas – disputas judiciais sobre a integração de tais ou quais vantagens pecuniárias à base de contribuição previdenciária, à semelhança do que ocorre com as corriqueiras disputas judiciais sobre qual o cálculo correto de determinadas vantagens pecuniárias do servidor.

A respeito destas divergências, cabe mencionar que são agravadas pela ausência de "vontade política" para uma atividade legislativa sistematizadora, e uma possível conveniência dos administradores públicos em fragmentar o regime jurídico dos servidores em diversos sub-regimes por categorias, com mais especificidades do que seria estritamente necessário em função das atividades exercidas por elas. Isso se dá, principalmente, com relação à política remuneratória, quase sempre entremeada de vantagens relativamente pequenas (nomeadas geralmente como "gratificações", sem ser, e conhecidas coloquialmente como "penduricalhos"), que procuram contornar os efeitos financeiros, para o Estado, que teria um aumento do vencimento-padrão e/ou dos proventos de inativos e pensionistas. Portanto, tal dinâmica do funcionamento legislativo e administrativo gera diversas incertezas sobre quando e como incidem determinadas normas dos servidores, e também gera muitas demandas sobre questões de remuneração, como se vê no dia a dia forense, sobrecarregando o funcionamento do Poder Judiciário.

2. A possibilidade de designação de beneficiários em determinados casos

"Artigo 152 - O contribuinte solteiro, viúvo, separado judicialmente ou divorciado, poderá designar beneficiária [...] pessoas que vivam sob sua dependência econômica, ressalvado o direito que competir a seus filhos e preenchidas as seguintes condições: [...] II - nos demais casos, desde que se trate de menor de 21 (vinte e um) anos ou maior de 60 (sessenta) anos de idade, ou inválido. [...]".

"Artigo 153 - Poderá o contribuinte, sem filhos com direito à pensão, instituir beneficiários parentes até 2º (segundo) grau, se forem incapazes ou inválidos, ressalvado, na razão da metade, o direito que competir ao seu cônjuge. Parágrafo único - Na hipótese deste artigo, aplicar-se-á o disposto nos §§ 2º e 3º do artigo 147, § 3º do artigo 150 e § 7º do artigo anterior."

Tais artigos serão pura e simplesmente revogados, de modo que o servidor enquadrado nesses casos recolherá contribuições abstratas, no sentido de que não terá perspectiva de deixar uma pensão para pessoa que lhe seja cara, ainda que não seja um parente previsto no rol legal padrão de dependentes. Essa designação tem um importante papel individual e social, na medida em que tais pessoas designadas são as mais presentes na vida pessoal do servidor, exercendo o papel de familiares próximos deste – o que corresponde ao conceito jurídico de família socioafetiva.

O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem reconhecido em julgados, mesmo recentes, que a faculdade de designação de beneficiários permanece em vigor, não tendo sido suspensa pela Lei Federal 9.717/1998 ou revogada pela mencionada Lei Complementar Estadual 1.012/2007, como se vê no seguinte exemplo:

"Pensão por morte – Artigo 152, inciso II, da Lei Complementar estadual n.º 180/1978 que se encontra em plena vigência – Beneficiária designada por declaração de vontade da segurada falecida – Incapacidade absoluta para os atos da vida civil verificada, mal de origem congênita e de caráter definitivo – Dependência econômica demonstrada mediante prova testemunhal – Valor do benefício que deverá observar o disposto no artigo 144 da Lei Complementar nº 180/1978, com redação dada pela Lei Complementar nº 1.012/2007 – [...]"

Excerto do acórdão: "Com efeito, além de a pensão por morte se tratar de benefício previsto em todos os sistemas, ausente qualquer alteração do comando supratranscrito. É certo que o artigo 5º da Lei Federal nº 9.717/98, veda apenas a concessão de benefícios distintos daqueles previstos na Lei nº 8.213/91, nada mencionando sobre dependentes ou beneficiários. E as modificações inseridas pela Lei Complementar estadual nº 1.012/2007, notadamente referente aos artigos 144, 147, 148, 149, 150, 155 e 158 da Lei Complementar nº 180/78, em nada influenciaram na disposição legal supratranscrita."

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(TJSP; Apelação Cível 1026190-96.2015.8.26.0053; Relatora Desembargadora Luciana Bresciani; 2ª Câmara de Direito Público; Data do Julgamento: 30/09/2019.)

3. Garantias jurídicas ao servidor público e a seus dependentes

"Artigo 159 - As pensões concedidas, salvo quanto às importâncias devidas ao próprio IPESP, não são passíveis de penhora ou arresto, nem estão sujeitas a inventário ou partilhas judiciais ou extrajudiciais, sendo nula de pleno direito toda alienação, cessão ou constituição de ônus de que sejam objeto, defesa a outorga de poderes irrevogáveis ou em causa própria para seu recebimento."

"Artigo 160 - O direito à pensão mensal não está sujeita à decadência ou prescrição."

"Artigo 161 - Prescreverão no prazo de 5 (cinco) anos, contados da data em que forem devidas, as prestações mensais referentes ao benefício."

A simples leitura desses três artigos torna evidente sua importância para a segurança jurídica, ou seja, tranqulidade do servidor público e de seus dependentes, cabendo acrescentar, apenas, que sua revogação nada acrescentará à pretendida economia de recursos públicos, alegada com a reforma previdenciária em andamento, tanto no nível federal (não editada, até agora, PEC paralela), quanto no nível estadual paulista.

Como conclusão, cabe observar que, fora do âmbito do presente artigo, ainda há outros dispositivos passíveis de discussão no PLC, inclusive sob o ângulo de sua justiça e razoabilidade.

29/02/2020, texto revisado em 25/06/2020

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Sobre o autor
Ricardo Feitosa Vasconcelos

Especialista em Direito Público (Escola Paulista da Magistratura). Bacharel em Direito (PUC-SP). Escrevente e ex-Assistente Jurídico (TJSP).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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