A norma penal em branco heterogênea e o princípio da legalidade.

Uma análise acerca da Lei de Drogas

14/03/2020 às 16:46

Resumo:


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Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O presente artigo científico é resultado de pesquisas para a realização do Trabalho de Conclusão de Curso e tem como objetivo contribuir para as discussões sobre o tema da (in) constitucionalidade das normas penais em branco heterogêneas.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo científico traz como tema central A Norma Penal em Branco e o Princípio da Legalidade, relacionando-o especificamente à Lei de Drogas, tendo como pretensão realizar um estudo interdisciplinar entre essa temática de cunho preponderantemente penal que percorrerá também o âmbito do Direito Constitucional, mais precisamente nos artigos 5º, inciso XXXIX, e 22, inciso I, da Constituição Federal (BRASIL, 1988, p. 15 e 27) no sentido de se estabelecer um estudo sobre a (in) constitucionalidade da norma penal em branco heterogênea.

A partir do proposto tema, surge uma indagação que norteará toda a elaboração do presente trabalho: No que diz respeito a sua complementação poder advir de outra fonte diversa do Poder Legislativo, as Normas Penais em Branco Heterogêneas ferem o Princípio da Legalidade?

A relevância do trabalho se justifica no questionamento acerca da constitucionalidade ou não do complemento da Norma Penal em Branco Heterogênea, especificamente no que diz respeito à Lei nº 11.343/06 (BRASIL, 2006). Tal discussão é importante a fim de contribuir na elucidação dessa problemática doutrinária, trazendo à baila um tema de grande relevância jurídica e com importantes repercussões práticas, porém ainda esquecido no meio acadêmico.

Nesse sentido é válido se perguntar se, por exemplo, uma Portaria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) estaria apta, legalmente falando, a modificar o conceito de Drogas previsto no parágrafo único do artigo 1º da Lei de Drogas (BRASIL, 2006, p. 1781) vez que tal ato normativo não passaria pelo devido processo legal da criação de uma Lei em sentido estrito, a qual, por seu turno, de acordo com o Princípio da Reserva Legal, inserido no Princípio da Legalidade, é a única que pode definir crimes e cominar penas, segundo o artigo 1º do Código Penal Brasileiro (BRASIL, 1940, p. 510).

Dessa forma, tem-se o cenário perfeito para questionar tal constitucionalidade, contribuindo para esclarecer o tema que, por sua vez, tem relevantes repercussões práticas, principalmente no que diz respeito à Lei de Drogas, na medida em que substâncias podem ser retiradas ou incluídas no rol proibitivo através de ato normativo, que não a Lei Ordinária.

Seguindo tal linha de raciocínio, questiona-se também: caso uma Portaria retire do rol proibitivo determinada substância, como ficaria a situação jurídica do agente incriminado pelo tráfico da mesma, vez que agora ela não mais constaria do rol incriminador? Haveria retroatividade, atendendo ao Princípio da Retroatividade da Lei Penal Mais Benéfica? Tais questionamentos, portanto, precisam ser postos em discussão.

Nesse sentido, o objetivo geral dessa pesquisa é analisar se a complementação da Norma Penal em Branco Heterogênea fere o Princípio da Legalidade, levando-se em consideração a diferente origem de tal complementação.

Para o desenvolvimento do artigo foram utilizados os seguintes meios de pesquisa: doutrinário, com os ensinamentos de autores de renome sobre o tema, a própria legislação, a fim de trabalhar alguns artigos específicos, a consulta a sites diversos que contivessem informações sobre o tema, além de jurisprudências.

Já como método de pesquisa se utilizou o histórico, uma vez que, em alguns momentos específicos do trabalho foi necessário fazer uma retrospectiva; conceitual, diante da exposição de vários conceitos ao longo do trabalho e comparativo, pois foram consideradas, ao longo do trabalho, diferentes opiniões doutrinárias, servindo de base para uma fundamentação e argumentação consistente.

Com isso firmado, é importante destacar a estrutura do trabalho, que em sua versão final conta com cinco capítulos. O capítulo 2 (A Norma Penal em Branco e o Princípio da Legalidade) apresenta a definição de Norma Penal em Branco, bem como trabalha suas classificações e analisa o Princípio da Legalidade.

O terceiro capítulo, por sua vez (A Norma Penal em Branco na Lei de Drogas) trabalhou as referidas normas especificamente no que diz respeito à Lei de Drogas, trazendo o aspecto da heterogeneidade dessas normas e analisando as variantes que incidem sobre a definição de Drogas pela Portaria da ANVISA (BRASIL, 1988, on-line).

O quarto capítulo (A questão específica do cloreto de etila e a retroatividade da Norma Penal em Branco) traz uma análise sob a perspectiva da retroatividade da lei penal, relacionando tal tema à lei de Drogas no que concerne a determinada substância não mais ser prevista como tal, indagando-se como ficaria, nesse caso, a aplicação da retroatividade da norma. Ainda analisa especificamente, dentro dessa temática da retroatividade, a questão do cloreto de etila, mais conhecido por lança-perfume.

Para concluir, é importante deixar registrado que a presente abordagem teórica objetiva contribuir para as discussões sobre o tema da (in) constitucionalidade das normas penais em branco, trazendo uma visão técnica sobre o assunto.

2 A NORMA PENAL EM BRANCO E O PRINCÍPIO DA LEGALIDADe

2.1 DEFINIÇÃO DA NORMA PENAL EM BRANCO

Com o objetivo de situar o leitor geograficamente acerca do estudo das Normas Penais em Branco, buscando uma melhor compreensão do tema, há que se saber que essas supracitadas normas estão localizadas na parte inicial do estudo do Direito Penal. Tendo seu espaço reservado quando do estudo da Teoria Geral da Norma Penal, sendo uma ramificação de sua classificação.

Assim sendo, ainda para fins de localização e melhor compreensão, mister se faz saber que segundo a Teoria Geral do Direito Penal, mais especificamente a Teoria Geral da Norma Penal, estas são classificadas da seguinte forma (excluindo-se dessa análise as demais formas de classificação quanto a diferentes aspectos, posto que aqui seria desnecessário mencioná-las), segundo os ensinamentos de E. Magalhães Noronha (2004, p. 65): normas penais completas e incompletas, onde, segundo o referido doutrinador “aquelas, contendo o preceito e sanção integrais; as segundas necessitando de complemento, por ser o preceito indeterminado ou genérico”.

Continua o autor que:

Como exemplo destas, cite-se a lei penal em branco. Nela o preceito, quanto ao conteúdo, é indeterminado, sendo preciso somente quanto à sanção. “É aquele, pois, preenchido por outra disposição legal, por decretos, regulamentos e portarias.” (NORONHA, 2004, p.65, grifo nosso).

Compreendendo sua localização dentro do vasto campo do Direito Penal, chega-se o momento adequado para trazer à tona sua definição, nas bem trabalhadas, simples e objetivas palavras de Renato Brasileiro de Lima, para quem as Normas Penais em Branco são aquelas:

(...) cuja compreensão do preceito primário demanda complementação. Em outras palavras, por mais que exista a descrição de uma conduta proibida, esta descrição demanda um complemento extraído de um outro diploma, como, por exemplo, leis, decretos, regulamentos, etc., para que se possa compreender os limites da proibição feita pela lei penal (LIMA, 2016, p. 693, grifo do autor).

É, pois, nos dizeres de Binding, citado por E. Magalhães Noronha (2004, p. 65) “um corpo errante em busca de alma”, pois “existem fisicamente no universo jurídico, mas não podem ser aplicadas em razão de sua incompletude” (MASSON, 2017, p. 127).

Dessa forma, levando-se em conta os ensinamentos doutrinários acima expostos, pode-se concluir que as Normas em Branco são aquelas incompletas que, justamente por isso, necessitam de complementação para se afigurarem como completas e perfeitas. Essa complementação pode advir tanto da mesma fonte que editou aquela norma que necessita de complemento, quanto pode se originar de fonte diversa, como portarias ou decretos. É nesse momento que se encontra uma possível inconstitucionalidade, consubstanciada em uma afronta ao Princípio da Legalidade, que será mais bem trabalhado em momento oportuno.

2.2 CLASSIFICAÇÃO DAS NORMAS PENAIS EM BRANCO

Esclarecido o conceito do objeto em estudo, a saber, das Normas Penais em Branco, bem como de sua localização, chega-se o momento de compreender melhor sua classificação.

Mezger, citado por E. Magalhães Noronha (2004, p. 65) e Fernando Capez (2018, p. 79 – 80), trazem a seguinte classificação: Normas Penais em Branco Homogêneas, também chamadas em sentido lato ou impróprias e as Heterogêneas, também chamadas em sentido estrito ou próprias. Por fim, o Professor Gabriel Habib, em aula disponível no canal Fórum Play no YouTube (2018, online), adiciona mais duas subclassificações às Normas Penais em Branco Homogêneas, sendo subdivididas em homovitelinas ou heterovitelinas.

Enquanto normas com seu preceito primário incompleto, as Normas Penais em Branco necessitam, consequentemente, de um complemento que as integralize. A fonte de onde emanará tal complemento poderá ser diferente daquela que originou a norma. Sendo assim, será homogênea quando “seu complemento é oriundo da mesma fonte legislativa que editou a norma cujo preceito primário precisa ser complementado” (LIMA, 2016, p. 693). O autor exemplifica citando o artigo 237 do Código Penal, que é complementado pelo artigo 1.521, I a VII, do Código Civil. Ambos provêm da mesma fonte, ou seja, do Poder Legislativo, é nesse sentido que se configura seu caráter homogêneo.

Ainda sobre as Normas Penais em Branco Homogêneas, prossegue o autor:

Essas normas penais em branco homogêneas, por sua vez, subdividem-se em: a.1) homovitelínas: são aquelas cuja norma complementar é do mesmo ramo do direito que a principal, ou seja, a lei penal será complementada por outra lei penal (ex:o preceito primário do crime de uso de documento falso previsto no art. 304 do CP é complementado pelos arts. 297 a 302, que se referem aos papéis falsificados ou alterados que podem ser objeto de uso); e a. 2) heterovitelínas: têm suas respectivas normas complementares oriundas de outro ramo do direito (v.g., o art. 178 do CP, que trata do crime de emissão irregular de conhecimento de depósito ou warrant, é complementado pelas normas comerciais que disciplinam esse título de crédito) (LIMA, 2016, p. 694, grifo do autor).

Dessa forma, tem-se que as Normas Penais em Branco Homogêneas são assim entendidas, como já explicitado, por originarem-se da mesma fonte legislativa da norma que as complementará, sendo tidas como homovitelínas quando o complemento é do mesmo ramo do direito e heterovitelínas quando seu complemento é de ramo do direito diverso.

Em relação às Normas Penais em Branco Heterogêneas, Renato Brasileiro de Lima (2016, p. 694) afirma que “seu complemento é oriundo de fonte diversa daquela que a editou”. Traz como exemplo o artigo 33 da Lei de Drogas e a Portaria nº 344 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que é ato infralegal, emanado de fonte diversa do Poder Legislativo e que complementa o referido artigo, elencando o rol de substâncias entorpecentes a que o seu preceito primário faz referência (LIMA, 2016, p. 694).

No que diz respeito à polêmica que gravita em torno da (in) constitucionalidade das Normas Penais em Branco, esta se justifica exatamente no ponto agora trabalhado, concentrando a discussão na heterogeneidade da norma, a partir do momento em que se permite que fonte infralegal, como Portaria, complemente Lei Ordinária emanada do Poder Legislativo.

É nesse sentido a seguinte reflexão:

Na medida em que o complemento das normas penais em branco heterogêneas é fornecido por fonte estranha ao Congresso Nacional, discute-se na doutrina até que ponto essa administrativização da lei penal seria (ou não) compatível com o princípio da legalidade (LIMA, 2016, p. 694, grifo do autor).

Assim, indaga-se também se tal “administrativização da lei penal” seria uma invasão de competência de poder diferente que não aquele legalmente competente para criar leis, configurando numa violação à separação dos três poderes.

2.3 ASPECTO JURÍDICO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Superadas a definição e classificação da Norma Penal em Branco, se faz oportuno trabalhar o Princípio da Legalidade e o que ele preleciona, objetivando analisar a (in) constitucionalidade das referidas normas penais.

Na legislação brasileira, o supracitado princípio encontra amparo na própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXXIX, que diz: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (BRASIL, 1988, p. 15). O mesmo preceito contido no referido artigo foi repetido pelo Código Penal de 1940, em seu artigo 1º (BRASIL, 1940, p. 510).

Da leitura do supracitado artigo, percebe-se que o Princípio da Legalidade é gênero, do qual são espécies: a reserva legal e a anterioridade da lei penal. Sobre tal subdivisão principiológica, Fernando Capez (2018, p. 89) diz: “a doutrina, portanto, orienta-se maciçamente no sentido de não haver diferença conceitual entre legalidade e reserva legal.” No entanto, prossegue o autor entendendo, contrariamente, que o princípio da legalidade

Contêm, nele embutidos, dois princípios diferentes: o da reserva legal, reservando para o estrito campo da lei a existência do crime e sua correspondente pena (não há crime sem lei que o defina, nem pena sem cominação legal), e o da anterioridade, exigindo que a lei esteja em vigor no momento da prática da infração penal (lei anterior e prévia cominação) (CAPEZ, p. 88, grifo do autor).

Faz-se necessário estabelecer tal divisão que trará um maior entendimento sobre as Normas Penais em Branco e sua possível (in) constitucionalidade posto que, se esta existir, irá de encontro imediato não apenas ao Princípio da Legalidade entendido como um todo, mas também, especificamente, a seu corolário, o da reserva legal, de forma que ferir tal princípio seria ferir, em simultâneo, a própria história da qual ele origina-se.

Sobre a origem histórica desse Princípio da Legalidade, Fernando Capez (2018, p. 89) informa que “surgiu pela primeira vez na Magna Charta Libertatum” (grifo do autor). Segue o autor falando “que o princípio ganhou força e efetividade, passando a ser aplicado com o objetivo de garantir segurança jurídica e conter o arbítrio.” (CAPEZ, p. 89, grifo nosso).

É nesse ponto que se deve voltar à atenção para as consequências de uma possível violação a esse princípio, de forma a entender que violar os preceitos que ele informa seria violar também a segurança jurídica de um Estado Democrático de Direito, passando então a relativizar, pouco a pouco, as garantias mínimas contra o arbítrio obtidas na Teoria do Contrato Social de Rousseau, em 1762. (CAPEZ, 2018, p. 89).

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Beccaria, citado por Fernando Capez (2019, p. 89), acerca da competência para criação de leis, diz: “só as leis podem decretar as penas dos delitos e esta autoridade deve residir no legislador, que representa toda a sociedade unida pelo contrato social” (grifo nosso). O que se discute, portanto, é a competência para criação de leis, assim entendidas como leis ordinárias.

Além do já exposto doutrinariamente, a Carta Constitucional, em seu artigo 22, I, afirma que “compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho” (BRASIL, 1988, p. 27, grifo nosso).

Portanto, “como só há crime quando presente a perfeita correspondência entre fato e a descrição legal, torna-se impossível sua existência sem lei que o descreva” (CAPEZ, 2018, p. 91, grifo nosso). Por lei, leia-se Lei Ordinária. Esta, por sua vez, é a originada do órgão competente para sua criação, ou seja, o Congresso Nacional, exercendo a função que lhe é atribuída, enquanto Poder Legislativo.

Sobre isso, Bettiol citado por Fernando Capez (2018, p. 91):

A matéria penal deve ser expressamente disciplinada por uma manifestação de vontade daquele poder estatal a que, por força da Constituição, compete a faculdade de legislar, isto é, o poder legislativo.

Segue afirmando Fernando Capez (2018, p. 91) que “somente a lei, em seu sentido mais estrito, pode definir crimes e cominar penalidades” e afirma que “nenhuma outra fonte subalterna pode gerar a norma penal, uma vez que a reserva de lei proposta pela Constituição é absoluta, e não meramente relativa”. Nesse sentido, seria inadmissível, do ponto de vista estritamente legal, que preceitos primários pudessem ser complementados por atos que não viessem do Poder Legislativo. Dessa forma, “somente a lei, na sua concepção formal e estrita, emanada e aprovada pelo Poder Legislativo, por meio de procedimento adequado, pode criar tipos e impor penas” (CAPEZ, 2018, p. 92).

 É necessário, pois, que se assegure o respeito à competência privativa atribuída no supracitado artigo 22, I da Constituição da República Federativa do Brasil, onde apenas a esta Carta é assegurado legislar sobre direito penal, consubstanciada tal competência no Poder Legislativo, respeitando-se assim a Teoria da Separação de Poderes que, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2008, p. 135) “[..] é a base da organização do governo nas democracias ocidentais[..]”.

Respeitar tal competência seria, pois, respeitar o próprio modelo democrático do ordenamento jurídico brasileiro, assim como garantir o equilíbrio entre os Poderes, pressuposto básico para a harmonia da ordem jurídica.

Trazendo a presente discussão para o campo de incidência da Norma Penal em Branco na Lei de Drogas, especificamente no que diz respeito à violação ao Princípio da Legalidade, há corrente doutrinária que defende a constitucionalidade de referidas normas, a exemplo de Guilherme Nucci (2016, p. 65), para quem “as normas em branco não ofendem a legalidade porque pode se encontrar o complemento em outra fonte legislativa, embora diversa do Direito Penal, previamente determinada e conhecida”.

Noutro giro, há aqueles que visualizam uma inconstitucionalidade por afronta ao referido princípio, como Rogério Greco (2017, p. 101, grifo nosso). É nesse sentido sua fala:

Entendemos que sim, visto que o conteúdo da norma penal poderá ser modificado sem que haja uma discussão amadurecida da sociedade a seu respeito, como acontece quando os projetos de lei são submetidos a apreciação de ambas as Casas do Congresso Nacional, sendo levada em consideração a vontade do povo, representado por seus deputados, bem como a dos Estados, representados pelos seus senadores, além do necessário controle pelo Poder Executivo, que exercita o sistema de freios e contrapesos.

Com esse mesmo entendimento de violação a princípio constitucional, leciona Luiz Luisi (2003, p. 125) que:

O abuso de edição de normas penais em branco constitui, individualmente, uma indisfarçável violação ao princípio da estrita legalidade penal pela presença nos tipos de normas, inclusive portarias que podem provir, como bem acentuado por J. F. Marques, de regulamentos federais e mesmo de regulamentos estaduais e municipais.

Como uma terceira corrente, que fica entre as duas já apresentadas, há a defesa das Normas Penais em Branco Heterogêneas para complementar aquelas leis que necessitam de uma constante atualização, dada a mudança de contexto e realidade social pela qual passa a sociedade e dado o caráter normativo do Direito, que deve acompanhar tal dinamicidade. É nesse sentido que leciona Luís Jimenez de Asúa (2005, p.44):

Esse sistema legislativo se funda em que é flutuante a índole de certos fatos que se necessita reprimir para proteger os interesses jurídicos referentes a relações sociais como as econômicas e sanitárias. Todos estão de acordo em que devem ser punidos, e isto é permanente; porém não é possível estabelecer os tipos na forma rígida da lei punitiva, sendo preferível consigná-los em disposições legais.

Em que pese as opiniões defensoras da constitucionalidade das Normas em Branco, há que se analisar com cuidado a possibilidade de Poder diverso de o legislativo poder complementar lei penal, levando em conta tanto o aqui exposto acerca da finalidade do Princípio da Legalidade, quanto a previsão constitucional, além, por óbvio, da Tripartição dos Poderes.

3 A NORMA PENAL EM BRANCO NA LEI DE DROGAS

  3.1 A HETEROGENEIDADE

Depois de feitas as noções introdutórias acerca do tema, apresentando conceitos, classificações e discorrendo sobre o princípio da legalidade, se faz necessário tecer alguns apontamentos relevantes sobre o quesito que dá nome a esse capítulo a fim de que se compreenda em torno de que gira a problemática que move esse artigo.

Conforme apresentado no item 2.2 e 2.3, um dos exemplos trazidos para ilustrar a Norma Penal em Branco Heterogênea é o artigo 33 da Lei de Drogas, assim como seus artigos 1º, parágrafo único, 28 e 34 (BRASIL, 2006), vez que tais artigos necessitam de complementação sobre um ponto especifico de seu preceito primário, a saber: o que seria droga para fins desta lei? Isso porque as condutas ali previstas, como “importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo” (BRASIL, 2006, p.1784), entre outras previstas no supracitado artigo 33 da referida lei necessitam da compreensão exata do que seria droga para que se possa identificar a ocorrência dos fatos típicos previstos no referido artigo.

Como uma resposta a essa indagação, o artigo 1º, parágrafo único da referida Lei (BRASIL, 2006) preceitua que:

Para os fins desta Lei, consideram -se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União” (grifo nosso).

No entanto, segundo Fernando Capez, “a questão é como saber quais são as substâncias ou produtos capazes de causar dependência”. Prossegue o autor complementando seu pensamento inicial afirmando que:

A Lei 11.343/2006 adotou o sistema das normas penais em branco, somente considerando droga a substância que estiver prevista em portaria própria do Ministério da Saúde.” (CAPEZ, 2017, p. 689, grifo nosso).

De acordo com o artigo 66 da Lei de Drogas (BRASIL, 2006) tal portaria é a de número 344/98 que, segundo Gabriel Habib: 

Trata- se do ato normativo mais importante que complementa a Lei de Drogas, por trazer as listas que definem quais substâncias são consideradas drogas (são mais de 400 substâncias) para os efeitos da presente lei (2018, p. 605).

Em relação ao conceito de drogas, segundo lição de Renato Brasileiro de Lima:

O conceito de drogas deve ser extraído, portanto, da presença de dois requisitos: 1) substância ou produto capaz de causar dependência (Lei nº 11.343/06, art 1º, parágrafo único); 2) esta substância deve ser rotulada como droga por listas periodicamente atualizadas pelo Poder Executivo da União – atualmente, estas substâncias estão previstas na Portaria SVS/MS 344/1998 (2016, p. 882, grifo do autor).

Dessa forma, o que nela constar será considerado droga para os fins da lei; o que não estiver nela prevista não será assim entendido, ainda que cause dependência, tornando a conduta de quem utilizar a substância atípica, como no caso das bebidas alcoólicas. É nesse sentido a fala de Renato Brasileiro de Lima:

Destarte, ainda que determinada substância seja capaz de causar dependência física ou psíquica, se ela não constar da Portaria SVS/MS 344/98, não haverá tipicidade na conduta daquele que pratique quaisquer das condutas previstas na Lei n. 11.343/06 (2016, p. 693).

Importante destacar que a dependência a que se refere o parágrafo único do artigo 1º da Lei de Drogas (BRASIL, 2006), segundo César Dário Mariano da Silva:

Pode ser física ou psíquica. Na dependência física, o corpo necessita do uso da droga. Na psíquica, há vontade intensa do uso da droga. Há drogas que causam dependência física, em outras a dependência é psíquicas, ou ambas (2016, p. 21).

Há que se ter em mente que há outros critérios a serem auferidos para a caracterização de determinada substância como droga, não sendo a previsão na referida Portaria o único requisito exigido. Segundo Capez (2017, p. 689) é “igualmente necessário que a substância contenha o princípio ativo, isto é, a aptidão para causar dependência física ou psíquica [...]”.

Assim, conforme exposto, o caráter heterogêneo da Lei de Drogas se configura no exato momento em que o Poder Executivo, por meio de Portaria, é competente para complementar a referida lei. Tal poder de complementação, segundo Nilo Batista, Zaffaroni, Alagia e Slokar, citados por Rogério Greco, se caracterizaria em uma “delegação legislativa indevida” visto que “a norma complementar provém de um órgão sem autoridade constitucional legiferante penal [...]” (2017, p. 102).

Para Zaffaroni e Pierangeli (2010, p. 388, grifo nosso).

Essas leis em branco não criam maior problema quando a fonte normativa a que remetem é outra lei formal, isto é, também emanada do Congresso Nacional. Mas o problema se torna mais complicado quando a norma não surge de outra lei em sentido formal, e sim de uma lei em sentido material, mas que emana de uma Assembleia Legislativa Estadual ou da Administração (Poder Executivo, inclusive o municipal). Nestes casos, pode-se correr o risco de estarmos diante de uma delegação de atribuição legislativa em matéria penal – que compete ao Congresso da Nação – e que estaria vedada pela Constituição Federal. (2010, p. 388, grifo nosso).

É nesse sentido que se questiona a constitucionalidade de tal complementação, ou seja, das Normas Penais em Branco, na medida em que provém de Poder diverso do legislativo, que, conforme já exposto, segundo o Princípio da Legalidade, é o competente para legislar sobre Direito Penal.

3.2 VARIANTES DA LEI DE DROGAS

Diante do já exposto, especificamente no que diz respeito ao uso da Norma Penal em Branco na Lei de Drogas, ruma-se para outro questionamento relevante para a discussão do tema: A constante atualização das substâncias entendidas como Droga comprometeria a segurança jurídica, na medida em que o cidadão, destinatário final da lei, não acompanhará tais mudanças?

Isso porque segundo o artigo 101 da própria Portaria de n. 344 da ANVISA (BRASIL, 1998, online) “as listas de substâncias constantes deste Regulamento Técnico serão atualizadas através de publicações em Diário Oficial da União”. Dessa forma, substâncias que em certo momento social não eram enquadradas no conceito legal de Droga, podem passar a ser, tornando seu uso uma conduta típica e penalmente relevante, sem que o cidadão chegue a ter conhecimento de tal ilicitude.

Some-se a isso o fato de não haver vacatio legis quando da entrada em vigor da previsão de novas substâncias como Drogas, segundo dispõe o artigo 110 da supracitada Portaria da ANVISA (BRASIL, 1998, on-line): “Este Regulamento Técnico entrará em vigor na data de sua publicação, revogando as disposições em contrário”.

É nesse sentido, dada a considerável rapidez na mudança de entendimento legal sobre a definição de Drogas, que se questiona como fica a segurança jurídica para o cidadão destinatário final da norma, dado que, segundo a Portaria 344, haverá atualização:

Sempre que ocorrer concessão de registro de produtos novos, alteração de fórmulas, cancelamento de registro de produto e alteração de classificação de lista para registro anteriormente publicado” (BRASIL, 1998, on-line).Com base no exposto e levando em conta o disposto na Portaria 344 da ANVISA, percebe-se que há critérios a serem preenchidos para a conceituação de novas substâncias como Drogas, critérios esses que irão variar de acordo com o contexto social em que se vive, de modo que as substâncias previstas na Portaria consubstanciarão uma representação da realidade, de modo a estarem ali previstos os produtos com princípio ativo mais utilizado em um dado momento histórico e social.

Deve-se ter em mente, por oportuno, a dinamicidade com que se opera o entendimento de substâncias que se enquadram no conceito de droga, nos termos da supracitada Portaria.

4 A QUESTÃO ESPECÍFICA DO CLORETO DE ETILA E A RETROATIVIDADE DA NORMA PENAL EM BRANCO

Um dos temas mais polêmicos relacionado à Norma Penal em Branco na Lei de Drogas diz respeito a sua retroatividade ou não, suscitando fortes discussões doutrinárias com diversos posicionamentos. Sobre isso, Cléber Masson diz que:

O problema relativo ao assunto consiste em saber se, uma vez alterado o complemento da lei penal em branco, posteriormente à realização da conduta criminosa, ou seja, com a infração penal já consumada, e beneficiando o agente, deve operar-se a retroatividade (MASSON, 2017, p. 145).

Nesse sentido “a descrição do tipo penal continua a mesma, mas a conduta praticada pelo agente não mais encontra adequação típica [...]” (MASSON, 2017, p. 145) isso porque o complemento anterior não mais se encontra em vigor.

Dentro dessa temática da retroatividade da Norma em Branco surge a polêmica questão do Cloreto de Etila, também conhecido como “lança perfume”, que inicialmente era previsto na Portaria 344 da ANVISA como substância entorpecente proibida, ou seja, droga. No entanto, segundo informações contidas no endereço eletrônico do Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 7 de dezembro de 2000 a Resolução 104, editada pela ANVISA, “excluiu o cloreto de etila da relação constante na lista de substâncias psicotrópicas de uso proibido no Brasil (Portaria SVS/MS 334/98)” (FEDERAL, 2015, on-line). A substância foi reincluída no rol de drogas ilícitas no mesmo ano, no dia 15 de dezembro.

Chegou ao STF, por meio do Habeas Corpus 120.026, o caso de um indivíduo que no dia 12 de novembro de 2000 foi preso em flagrante com seis mil e dezesseis (6.016) frascos da supracitada substância, tendo sido condenado. O Ministro Celso de Mello, na decisão do citado HC, reconheceu a incidência da abolitio criminis temporária, sustentando que:

Considerada a data em que praticada a conduta delituosa (12/11/2000), que teria ocorrido a extinção da punibilidade do ora paciente, em relação ao delito de tráfico de drogas, por efeito da superveniente edição da Resolução ANVISA nº 104/2000, publicada em 07/12/2000, que excluiu o cloreto de etila da relação constante da Lista das Substâncias Psicotrópicas de Uso Proscrito no Brasil (Portaria SVS/MS nº 344/98), o que teria configurado a “abolitio criminis” relativamente aos fatos envolvendo a posse de frascos de “lança- -perfume” (BRASIL, 2015, p. 7, on-line).

Nesse sentido, levando-se em conta a decisão do eminente Ministro e as opiniões divergentes na doutrina sobre a (in) possibilidade de retroatividade da Norma em Branco, agora se passa a análise dos diferentes entendimentos.

4.1 DA IRRETROATIVIDADE DA NORMA PENAL EM BRANCO

Em um sentido amplo, a irretroatividade da lei penal tem previsão constitucional, no artigo 5º, XL, que dispõe: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (BRASIL, 1988, p. 15).

Dessa forma, segundo Capez (2018, p. 99): “[...] a regra é: a lei penal não pode retroagir. Por outro lado, verifica-se uma exceção: a lei penal retroagirá quando trouxer algum benefício para o agente no caso concreto”.

Apesar da previsão constitucional de uma retroação da lei penal em benefício do réu, no caso específico das Normas em Branco - e levando-se sempre em conta o caso acima explicado do cloreto de etila – há doutrina que defende a impossibilidade de retroação das Normas em Branco, ainda que tragam algum benefício ao réu. Tal tese é explicada a partir de duas teorias: 1) a teoria da diferenciação entre lei e norma e; 2) a teoria da desobediência.

A primeira tenciona dizer, em simples palavras, que as normas complementares, por mais que sejam mais favoráveis ao réu, não possuem efeito retroativo, ficando este possível apenas para as leis, pois só estas podem modificar ou alterar, de forma que são irrelevantes as modificações realizadas por complementos. Relaciona-se tal teoria à legalidade formal contida no Princípio Constitucional da Legalidade.

É nesse sentido a lição de Raúl Baldomino Diáz:

Postula que a las normas complementarias no cabe reconocerles efecto retroactivo más favorable, pues estas normas no son leyes, y sólo a la modificación de las leyes se les concede este benefício de aplicación retroactiva (DIÁZ, 2009, on-line).

Isso se deve ao fato de que “normas jurídicas e leis são figuras teóricas diferentes”, conforme afirma o título do artigo de Sacha Calmon Navarro Coelho (2008, online). Ainda segundo a autora, as normas seriam “entes teóricos derivados do sistema jurídico como um todo”, já a lei seria “seu veículo, os entes positivos” (2008, online, grifo do autor).

Já para a teoria da desobediência, é a lei, em seu sentido mais fundamental – aquele contido no verbo núcleo do tipo – que obrigará os seus destinatários ao seu cumprimento e não mero o mero complemento que ela (possivelmente) venha a conter. É o que entende Raúl Baldomino Diáz:

Sostiene que la esencia del injusto penal radica en la desobediencia a la norma de determinación, que obliga a cumplir las leyes y reglamentos con independencia de su contenido, y resulta que la modificación del contenido de la norma penal no afecta la norma de obedecer que sigue inalterable (DIÁZ, 2009, on-line).

É no sentido da irretroatividade que entende Frederico Marques ao aduzir que “a orientação mais acertada, em nosso entender é a que não admite retroatividade das regras extrapenais [principalmente as regulamentares] que integram a lei em branco” (2002, p. 242).

Dessa forma, segundo essa corrente, apenas a lei penal tem o condão de retroagir a favor do réu, o que não ocorre com seu complemento, como é o caso do trabalhado artigo 33 da Lei de Drogas (BRASIL, 2006, p. 1784).

Cléber Masson, por seu turno, leciona que “o complemento da lei penal em branco pode assumir duas faces distintas: normalidade e anormalidade” (2017, p. 145). Continua o autor que

Quando o complemento se inserir em um contexto de anormalidade, de excepcionalidade, a sua modificação, ainda que benéfica ao réu, não pode retroagir. Fundamenta-se essa posição na ultratividade das leis penais excepcionais, alicerçada no art. 3º do Código Penal (grifo do autor).

Tal situação de anormalidade, como nomeia o autor, se caracterizará quando se tratar de leis excepcionais, ou seja, aquelas leis “que se verifica quando a sua duração está relacionada a situações de anormalidade” (MASSON, 2017, p. 143). Tal irretroatividade, pois, se apresentará devido à característica de excepcionalidade de que se reveste a lei, posto que são criadas para viger em momentos específicos, de modo que se pudessem deixar de ser

Note-se, por oportuno, que apesar de defenderem a mesma ideia com linhas de pensamento diversas, os doutrinadores aqui expostos pugnam pela irretroatividade da Norma em Branco, atendendo à regra prevista no artigo 5º, inciso XL da Constituição Federal (BRASIL, 1988, p. 15). Seguindo essa linha de pensamento, as condutas praticadas durante o período em que o cloreto de etila esteve fora do rol de substâncias entendidas como drogas pela ANVISA, continuariam sendo típicas, operando-se a irretroatividade, contrariamente ao entendimento do STF.

4.2 DA RETROATIVIDADE DA NORMA PENAL EM BRANCO

De forma contrária ao entendimento acima exposto, há quem defenda a retroatividade das Normas Penais em Branco. No entanto, antes de demonstrar aqui quais os argumentos utilizados para essa defesa, é importante deixar claro de que forma uma retroatividade pode se caracterizar como benéfica para o réu. Ademais, oportuno relembrar que, assim como a irretroatividade, a retroatividade também está prevista no artigo 5º, inciso XL da Constituição Federal (BRASIL, 1988, p. 15). Esta, como leciona Capez (2018, p. 99) é a exceção, enquanto aquela se consubstancia a regra.

Assim, segundo Rogério Greco (2017, p. 190) há a existência da novatio legis in pejus e da novatio legis in mellius, onde a primeira será assim considerada se, de qualquer forma, prejudicar o réu e a segunda, por sua vez, será aquela que, de qualquer modo, beneficiá-lo. Será novatio legis in mellius, por exemplo, “se surgir uma nova lei reduzindo a pena mínima de determinada infração penal” (GRECO, 2017, p.190).

Nesse sentido, sempre que melhorar a situação do réu, de qualquer modo, a Norma Penal em Branco deve retroagir, nos termos do artigo 5º, inciso XL da CF/88, segunda parte. É nessa linha de pensamento que leciona Basileu Garcia (1951, p.155):

A circunstância mais favorável é a preferível, não pela simples circunstância de ser mais branda, o que, na dúvida, constitui sempre uma razão a atender em assunto de repressão criminal. A nosso ver, a disposição extra-penal de que se entrece a norma penal em branco – corpo à procura de alma, como se exprimia Binding – impregna-se de cunho penal, como parte que passa a constituir da figura delituosa. E por isso, a retroatividade benéfica se impõe.

Assim, conforme o exposto e alinhando-se aos ensinamentos de Cléber Masson (2017, p. 145), quando a norma se revestir de uma situação de normalidade, ou seja, caso não seja lei excepcional, quando se verificar uma melhora na legislação em favor do réu, a retroatividade se materializará, até mesmo para as alterações benéficas que incidirem nos complementos das Normas Penais em Branco. Sob essa perspectiva, pois, a descriminalização temporária relacionada ao cloreto de etila tornaria as condutas praticadas àquele período em que a substância se manteve fora do rol previsto pela ANVISA, atípicas, se operando a retroatividade.

5 CONCLUSÃO

É fato que a atual afirmação constitucional do Princípio da Legalidade é fruto de vários antecedentes da história jurídica, sendo uma das maiores conquistas e pressuposto essencial de um Estado Democrático de Direito, na medida em que prevê que apenas a lei em sentido estrito pode definir tipos penais, tendo como objetivo maior impedir arbitrariedades estatais, tão comuns em tempos passados. É imprescindível, pois, compreender a origem das coisas e suas motivações históricas para que se possa saber qual a importância de determinado instituto e o que significaria sua violação.

É nesse sentido que a análise do Princípio da Legalidade se reveste de relevância e atualidade jurídica, na medida em que não observar seu cumprimento ou mesmo relativizá-lo significaria uma volta ao Estado arbitrário de antes. 

Dessa forma, analisando o aspecto jurídico do supracitado princípio – trabalhado aqui no item 2.3 – conclui-se pela inconstitucionalidade da Normas Penais em Branco Heterogêneas, posto que em tais casos não se observa a obediência a princípio constitucional e sustentador do atual Estado brasileiro, vez que se tem a complementação advinda de fonte diversa da competente constitucional para a criação de lei em sentido estrito. 

Por mais que se queira dar sustentabilidade ao posicionamento que pugna pela constitucionalidade de tais normas, aceitá-las da forma como hoje se encontram desenhadas e sistematizadas seria negar a força normativa que o Princípio Constitucional da Legalidade carrega consigo, relativizando a própria base do Estado Democrático de Direito.

Por outro lado, se reconhece que na atual sociedade em que se vive, fugaz e notoriamente plural, há certos acontecimentos que, devido sua dinamicidade, não podem ser taxativamente previstos pela lei em sentido estrito, pois prever todas as condutas humanas é tarefa impossível. É nessa linha de pensamento que se tem, por exemplo, a previsão de crimes culposos, que são tipos penais abertos exatamente devido à impossibilidade de se esgotar, em lei, todas as condutas humanas.

Nesse ponto, ao se analisar certo tipo penal, deve-se analisar também, de pronto, a situação que ele busca tutelar e só então se poderá fazer um juízo valorativo sobre a adequação ou não de determinada característica inerente àquela norma penal incriminadora.

É buscando garantir a efetivação do Princípio da Legalidade e, por consequência, de seu corolário, o da Reserva Absoluta da Lei, e somar a isso o reconhecimento da necessidade de tutelar certas situações mutáveis, que se propõe uma remodelação da atual sistemática das Normas Penais em Branco Heterogêneas. 

Tal remodelação seria possível com o fim da “delegação” de competência legislativa para outro Poder, de modo que a normas penais em branco tivessem seu complemento possível apenas pelo poder constitucionalmente competente para legislar sobre Direito Penal, ou seja, o Poder Legislativo. 

Não se discute, portanto, a constitucionalidade das Normas Penais em Branco Homogêneas, vez que seu complemento é oriundo de fonte competente para tal. O problema encontrado, para que fique claro, é nas classificadas como heterogêneas. 

Dessa forma, pertinente seria, por respeito ao mandamento constitucional do Princípio da Legalidade e seu corolário, o da Reserva Absoluta de Lei, tirar do ordenamento jurídico tal modalidade de normas. Tal solução resolveria dois lados do problema: o direito continuaria acompanhando o caráter dinâmico de determinadas situações, a exemplo da Lei de Drogas mas, por outro lado, também respeitaria o citado princípio, na medida em que teria como órgão competente para realizar tal complementação o próprio legislativo.

Nessa toada é importante destacar alguns pontos a serem melhorados acerca das Normas em Branco, para além da mudança de competência. Um desses pontos é a questão da segurança jurídica, que não se vê efetivada de forma agradável com a atual sistematização da Portaria 344 da ANVISA que atualiza as substâncias de uso proibido. Deve-se ter, por ocasião dessa garantia de segurança jurídica, uma maior publicidade no que diz respeito tanto às novas previsões ali inseridas quanto à sua entrada em vigor que, por oportuno, a autora desse trabalho entende que não deveria ser realizada de forma imediata, devendo haver um período de vacatio legis, ainda que curto, a fim de cumprir o Princípio da Publicidade.

Ademais, entende-se que com a mudança de competência para o Poder Legislativo se teria uma melhor e mais precisa técnica legislativa na elaboração dessas normas, tornando mais precisos seus termos, sem dar espaço para dúbias interpretações, visando também garantir a segurança jurídica, tão importante em um Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS

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DÍAZ, Raúl A. Baldomino. (Ir)retroactividad de las modificaciones a la norma complementaria de una Ley Penal en Blanco. 2009. A tradução livre do trecho transcrito seria: postula que às normas complementares não cabe reconhecer efeitos retroativos mais favoráveis, pois estas normas não são leis e somente à modificação por lei é que se concede o benefício da aplicação retroativa. Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S0718-33992009000100004&lng=es&nrm=iso. Acesso em: 10 abr. 2019.

______. (Ir)retroactividad de las modificaciones a la norma complementaria de una Ley Penal en Blanco. 2009. A tradução livre do trecho transcrito seria: argumenta que a essência do injusto penal se funda na desobediência à norma de determinação, que exige o cumprimento das leis e regulamentos, independentemente de seu conteúdo e que a modificação do conteúdo da lei penal não afeta o padrão de obediência, que permanece inalterado. Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-33992009000100004&lng=es&nrm=iso. Acesso em: 10 abr. 2019.

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Sobre a autora
Sthefany Costa

Bacharel em Direito. Pesquisadora autônoma. Redação jurídica. Escreve artigos científicos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo Científico apresentado ao Centro Universitário FACEX (UNIFACEX), como parte dos requisitos para obtenção do título de Bacharel em Direito. Aprovado pela banca examinadora.

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