Coronavírus (covid-19), fechamento de estabelecimentos empresariais e extinção dos contratos de trabalho.

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Em meio ao caos mundial provocado pelo coronavírus e ao fechamento de estabelecimentos empresariais por decretos municipais e estaduais, o presente artigo tenta demonstrar qual a forma mais adequada a ser adotada para extinção dos contratos de trabalho.


Introdução

 

Em meio à situação caótica causada pela pandemia do coronavírus, diversos prefeitos e governadores brasileiros editaram decretos determinando o fechamento de estabelecimentos empresariais com o intuito de minimizar o contágio das pessoas.

 

Esses decretos, embora aparentemente revestidos de boa intenção, sem dúvida alguma causaram impacto na estrutura das empresas e nas relações de trabalho, em muitas destas empresas provocando extinções prematuras de contratos de trabalho.

 

É inconteste que a extinção de contratos de trabalho em momentos caóticos como o vivenciado não é benéfica para nenhuma das partes da relação trabalhista, tampouco para o Estado. No entanto, é importante analisar friamente esta situação e averiguar qual a forma extintiva do contrato de trabalho é adequada a tal contexto.

 

1.            As formas de extinção do contrato de trabalho.

 

A doutrina trabalhista brasileira apresenta diversas espécies de classificação para as formas de extinção do contrato de trabalho. Maurício Godinho Delgado sistematiza essas classificações em três tipos:

 

“a que diferencia tais modalidades em normal e anormal; a que realiza tal classificação em conformidade com as causas de extinção desses contratos; finalmente, a tipologia que busca enquadrar as modalidades extintivas nos grupos de resilição, resolução e rescisão contratuais, embora reconhecendo que alguns tipos extintivos escapam à classificação intentada.”[1]

 

Todavia, embora seja digno de reconhecimento o esforço doutrinário para sistematizar as formas de extinção do contrato de trabalho em tais classificações, não nos cabe maiores delongas acerca de tal discussão, sendo prudente adotar, por conveniência, a classificação lastreada nas causas de extinção dos contratos de trabalho.

 

Dessa forma, o contrato de trabalho pode ser extinto em quatro contextos: a extinção cujas causas são imputáveis ao trabalhador; a extinção cujas causas são imputáveis ao empregador; a extinção cujas causas são imputáveis ao trabalhador e ao empregador simultaneamente; e a extinção cujas causas são alheias aos atos das partes.

 

No caso em discussão, parece evidente que, se a extinção do contrato de trabalho teve que ocorrer, a causa dessa extinção é alheia aos atos das partes, tendo em vista que nem o empregado e nem o empregador deram causa à pandemia do coronavírus ou aos decretos dos prefeitos e governadores que determinaram o fechamento dos estabelecimentos empresariais.

 

Sendo assim, dogmaticamente, subsiste apenas a celeuma de qual forma de extinção do contrato de trabalho por causa alheia aos atos das partes é aplicável ao presente caso, se a disposta no artigo 486 da CLT e conhecida como extinção por factum principis ou se a disposta nos artigos 501 e 502 da CLT e conhecida como extinção por força maior.

 

Essas duas modalidades de extinção do contrato de trabalho, embora contidas em um mesmo conjunto, possuem um elemento essencial que as diferencia, qual seja: na extinção por factum principis é sempre possível identificar o Estado como responsável pelo fato alheio à vontade das partes que originou a extinção do contrato de trabalho[2], já na extinção por força maior não é possível identificar o responsável pelo fato alheio à vontade das partes.

 

Em virtude dessas diferenças de causa, os efeitos jurídicos das duas modalidades de extinção do contrato de trabalho são diversos. No caso da extinção por factum principis, a indenização do trabalhador pela extinção fica a encargo do Estado, em virtude de sua responsabilidade. Já no caso da extinção por força maior, como não se tem como atribuir responsabilidade a ninguém, empregador e trabalhador dividem o ônus indenizatório do encerramento contratual, reduzindo pela metade as verbas indenizatórias pagas pelo empregador.

 

Por tal razão, se analisará isoladamente no presente texto as duas possibilidades de extinção do contrato de trabalho, a fim de verificar qual delas pode ser melhor aplicável ao caso da pandemia do coronavírus.

 

2.            Extinção do contrato de trabalho por factum principis no caso do coronavírus.

 

A extinção do contrato de trabalho por factum principis, conforme já anunciado anteriormente, encontra lastro no artigo 486, caput, da CLT, conforme se observa pela transcrição a seguir:

 

“Art. 486 - No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.”

 

Pois bem! A fundamentação lógica para a edição do referido dispositivo se encontra na impossibilidade de continuidade das atividades empresariais e laborais, causada por um ato imprevisível oriundo do Estado, não sendo justo, por conseguinte, que empregado ou empregador seja penalizado por uma situação que não concorreu.

 

O conceito transcrito no preceito legal parece ser bastante claro e não deixar margens para muitas dúvidas em sua interpretação, no entanto, o que é necessário se verificar é se a extinção do contrato de trabalho por factum principis é a mais adequada ao caso vivenciado, qual seja: o caso da pandemia do coronavírus.

 

É fato, conforme já narrado no capítulo introdutório, que prefeitos e governadores de diversos estados brasileiros editaram decretos determinando o fechamento de estabelecimentos empresariais dos mais variados setores, mas isto é suficiente para fazer incidir o preceito do artigo 486 da CLT?

 

Pensamos que não. Isto porque, ao se observar detalhadamente o artigo 486 da CLT, é possível depreender que a determinação do artigo é que no caso de factum principis o pagamento da indenização recairá sobre o “governo responsável” e, no caso, em nossa particular visão, não existe “governo responsável”.

 

Ora! É preciso pensar um pouco sobre a responsabilidade civil do Estado ou da Administração Pública.

 

Nesse sentido, tanto a doutrina administrativa clássica de Hely Lopes Meirelles, como a moderna de José dos Santos Carvalho Filho, concordam que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 37, §6º, e o Código Civil de 2002, em seu artigo 43, adotaram a responsabilidade objetiva da Administração Pública, lastreada na teoria do risco administrativo.[3]

 

Dessa forma, a regra da responsabilidade civil do Estado ou da Administração Pública consiste na presunção relativa de responsabilidade do Estado ou da Administração Pública por dano causado, sendo possível que o Estado ou a Administração Pública demonstre a existência de concorrência de culpa ou de culpa exclusiva da vítima, para excluir sua responsabilidade.

 

Além disso, em relação aos atos legislativos, nestes incluídos os decretos, Lopes Meirelles sustenta que “a Fazenda Pública só responde mediante comprovação de culpa manifesta na sua expedição, de maneira ilegítima e lesiva”[4] e Carvalho Filho rechaça a possibilidade de responsabilidade do Estado, excepcionando apenas os casos de lei inconstitucional e lei de efeitos concretos.[5]

 

Não fosse isto suficiente, a doutrina de Carvalho Filho demonstra necessária a análise da existência de excludentes da responsabilidade, tal como o que denomina de fatos imprevisíveis (caso fortuito e força maior). Isto porque, no seu entendimento, a responsabilidade civil do Estado ou da Administração Pública deve ser excluída quando ocorrer caso fortuito ou força maior, tendo em vista que não existe fato imputável ao Estado.[6]

 

Nesse sentido, aliás, é o que dispõe expressamente o artigo 393 do Código Civil ao excluir a responsabilidade do devedor quando ocorrer caso fortuito ou força maior, como se observa da transcrição do artigo:

 

“Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”

 

Pois bem! Seguindo tal doutrina e o disposto no Código Civil, no nosso entendimento, não é possível utilizar o factum principis para justificar a extinção dos contratos de trabalho, justamente porque a pandemia do coronavírus constitui verdadeira causa de força maior a excluir a responsabilidade civil do Estado ou da Administração Pública em decorrência dos decretos editados no intuito de conter propagação desse vírus.

 

É salutar ressaltar que a extinção do contrato de trabalho por factum principis é pensada para resguardar o empregador de um ato atípico em um contexto de normalidade. No entanto, no caso atual, não se vive um contexto de normalidade e sim um contexto de força maior onde se exige um ato atípico do Estado para preservar a vida das pessoas.

 

Pensar diferente, em nossa visão, seria abandonar completamente os princípios norteadores do direito do trabalho e transferir o ônus da extinção do contrato de trabalho exclusivamente aos empregados, tendo em vista que os empregadores se utilizariam do artigo 486 da CLT para transferir a responsabilidade ao Estado e o Estado se utilizaria da existência de força maior para excluir sua responsabilidade civil.

 

Desse modo, a extinção do contrato de trabalho por factum principis não parece ser a forma mais adequada de contemplar a interpretação teleológica que se busca nas modalidades de extinção do contrato de trabalho cujas causas são alheias aos atos das partes, quais sejam: dividir o ônus entre empregador e empregado ou atribuir tal ônus ao terceiro responsável.

 

3.            Extinção do contrato de trabalho por força maior no caso do coronavírus.

 

A extinção do contrato de trabalho por força maior, conforme já anunciado anteriormente, encontra lastro nos artigos 501, caput, e 502, da CLT, conforme se observa pela transcrição a seguir:

 

“Art. 501 - Entende-se como força maior todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente.”

 

“Art. 502 - Ocorrendo motivo de força maior que determine a extinção da empresa, ou de um dos estabelecimentos em que trabalhe o empregado, é assegurada a este, quando despedido, uma indenização na forma seguinte: I - sendo estável, nos termos dos arts. 477 e 478; II - não tendo direito à estabilidade, metade da que seria devida em caso de rescisão sem justa causa; III - havendo contrato por prazo determinado, aquela a que se refere o art. 479 desta Lei, reduzida igualmente à metade.”

 

Pois bem! A fundamentação lógica para a edição dos referidos dispositivos se encontra na impossibilidade de continuidade das atividades empresariais e laborais, causada por um ato imprevisível e de origem indeterminável, não sendo justo, por conseguinte, que empregado ou empregador seja totalmente penalizado por uma situação que não concorreu.

 

O conceito transcrito no preceito legal parece ser bastante claro e não deixar margens para muitas dúvidas em sua interpretação, no entanto, o que é necessário se verificar é se a extinção do contrato de trabalho por força maior é a mais adequada ao caso vivenciado, qual seja: o caso da pandemia do coronavírus.

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É fato, conforme já narrado no capítulo introdutório, que se está vivendo uma situação caótica decorrente da pandemia do coronavírus, mas isto é suficiente para fazer incidir o preceito dos artigos 501 e 502 da CLT?

 

Pensamos que sim. Isto porque a definição de força maior constante do artigo 501 da CLT é significativamente abrangente e porque é evidente o caos social causado por uma pandemia viral imprevisível e de origem indeterminável que provocou determinações amplas de fechamento dos mais diversos estabelecimentos.

 

Além disso, a existência de força maior pode ser comprovada pela declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS) acerca da existência de uma pandemia de coronavírus, pela promulgação da Lei nº 13.979/2020 declarando o coronavírus uma emergência de saúde pública de importância internacional, pelo reconhecimento do Congresso Nacional através do Decreto Legislativo nº 6/2020 da existência de um estado de calamidade pública no Brasil e pelo reconhecimento expresso de hipótese de força maior nos termos do artigo 501 da CLT pelo artigo 1º, parágrafo único, da Medida Provisória nº 927/2020.

 

Não fosse isto suficiente, a existência de força maior não exige a comprovação da responsabilidade de qualquer pessoa ou ente, mas, ao contrário, decorre exatamente da impossibilidade de atribuir culpa a qualquer pessoa ou ente público por um fato imprevisível e de origem indeterminada.

 

Desse modo, a extinção do contrato de trabalho por força maior nos termos do artigo 502 da CLT parece ser a forma mais adequada de resolver a situação de inevitáveis extinções contratuais trabalhistas sem onerar excessivamente os empregadores e prejudicar demasiadamente os empregados.

 

Nesse contexto, outro questionamento que se poderia fazer, diz respeito a se: o artigo 502 da CLT exige a extinção jurídica do estabelecimento ou da empresa para possibilitar a extinção dos contratos de trabalho por força maior?

 

Nesse caso, pensamos que não. Isto porque seria inimaginável pensar em uma extinção regular da empresa, com baixa na junta comercial e na receita federal, em uma situação de força maior, bem como pelo fato de, no nosso entender, o fechamento da empresa ou do estabelecimento por tempo indeterminado ser suficiente para contemplar o disposto no artigo 502 da CLT.

 

Exigir o encerramento regular da empresa ou o fechamento definitivo do estabelecimento é, a nosso ver, uma interpretação exagerada e contrária a situação de calamidade vivenciada, já que isto seria o mesmo que esvaziar de efeito o preceito constante no dispositivo legal.

 

No nosso entender, a expressão “extinção da empresa, ou de um dos estabelecimentos em que trabalhe o empregado”, constante do artigo 502 da CLT, deve ser interpretada como o fechamento da empresa ou suspensão de suas atividades por prazo indeterminado.

 

Os decretos editados por prefeitos e governadores, como se sabe, não indicam o prazo de suspensão das atividades das empresas ou dos estabelecimentos e tampouco demonstram qualquer previsibilidade de retorno das atividades, razão pela qual consiste em verdadeiro ato de extinção das empresas ou dos estabelecimentos.

 

Esta interpretação pode ser alcançada de forma literal, tendo em vista que o artigo 502 da CLT não define a necessidade de extinção definitiva da empresa, sendo possível que esta extinção seja temporária, isto é, uma cessação. Mas também pode ser alcançada de forma teleológica, uma vez que é evidente que o objetivo da norma é resolver de uma forma justa uma situação de evidente força maior.

 

Desse modo, parece correto afirmar que a determinação de suspensão das atividades das empresas ou dos estabelecimentos, feita por decreto municipal ou estadual, é elemento suficiente para cumprir o exigido pelo artigo 502 da CLT e possibilitar a extinção dos contratos de trabalho por força maior.

 

Conclusão

 

É evidente que se vivencia uma situação singular e atípica no mundo. A pandemia do coronavírus é uma calamidade pública e social de âmbito mundial sem precedentes na modernidade.

 

Em razão disto, o direito deve ser interpretado de forma a conseguir atenuar os problemas decorrentes desta pandemia viral, buscando utilizar os institutos jurídicos que melhor se aplicam ao caso, mas utilizando-os de forma a solucionar dilemas jurídicos de modo pacificador.

 

Sendo assim, conforme exposto no presente texto, em nossa visão, parece ser claro que a extinção do contrato de trabalho por factum principis não é a forma adequada para solucionar os casos de encerramento dos estabelecimentos em razão dos decretos estaduais e municipais editados com a finalidade de conter a pandemia do coronavírus.

 

Em paralelo, no entanto, entendemos ser cabível a aplicação da extinção do contrato de trabalho por força maior, tendo em vista que a pandemia do coronavírus é alheia à vontade das partes e é justo e razoável que empregado ou empregador não sejam integralmente penalizados pelas consequências desse fato imprevisível e de origem indeterminada.

 

Além disso, conforme demonstrado, o nosso entendimento é de que a situação excepcional existente justifica a aplicabilidade do artigo 502 da CLT para os casos de suspensão das atividades das empresas ou dos estabelecimentos por prazo indeterminado em decorrência dos decretos estaduais ou municipais.

 

Portanto, na hipótese de necessidade de extinção dos contratos de trabalho, nos parece que a forma mais indicada é a extinção por força maior, bem como que esta extinção por força maior não exige a extinção jurídica da empresa, sendo suficiente a suspensão das atividades das empresas ou dos estabelecimentos por prazo indeterminado.

 

Sobre o autor
Ricardo Rabêllo Varjal Carneiro Leão

Advogado e Sócio do Escritório Varjal & Advogados Associados. Mestre em Ciências Jurídico-Empresariais com Menção em Direito Laboral pela Universidade de Coimbra – Portugal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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