O acesso pelo advogado aos autos de inquérito policial eletrônico e a nova lei de abuso de autoridade

25/03/2020 às 20:22

Resumo:


  • O avanço tecnológico facilitou o acesso aos autos de investigação em unidades policiais e fóruns, eliminando barreiras físicas e custos financeiros para os interessados.

  • O processo eletrônico, embora ainda burocrático para alguns, proporciona maior agilidade e praticidade, permitindo o armazenamento e acesso a milhares de processos digitais de forma remota.

  • A implementação do inquérito policial eletrônico, como o IP-e, agiliza medidas cautelares de urgência, facilitando o trabalho policial, reduzindo custos e proporcionando acesso mais rápido aos autos para promotores, juízes e advogados.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Comentários acerca do acesso aos autos do inquérito policial eletrônico.

O avanço tecnológico é festejável por muitos que vivenciaram tempos de dificuldades para acesso aos autos de investigação em unidades policiais ou fóruns, cujas distâncias criavam barreiras físicas entre o interessado e o poder público.

Referimo-nos aos obstáculos criados aos defensores domiciliados em comarcas distintas para que pudessem acessar os autos físicos dos processos ou inquéritos policiais junto aos órgãos estatais. A opção era deslocar à comarca ou contratar um colega advogado para ter acesso aos autos, o que lhe acarretava custo financeiro.

Para muitos, o processo eletrônico ainda é burocrático e até existe quem opta pelo acesso ao documento físico, pois não estão habituados ao meio eletrônico. Por outro lado, há quem dispensa a via impressa e tem por preferência a utilização de equipamentos eletrônicos que, apesar do seu tamanho menor comparado ao processo físico, pode carregar em sua capacidade interna milhares de processos digitais, podendo ser lido e acessado a qualquer hora, de onde estiver, por meio do armazenamento em nuvem.

É a tecnologia a favor do operador do direito, que para muitos, hodiernamente, já não vive sem.

Estamos enfrentando hoje uma situação mundial extremamente crítica por conta da epidemia do vírus COVID-19 (Coronavírus), e os profissionais (servidores públicos, advogados, etc.) estão trabalhando em sistema home office, graças à modernização dos equipamentos eletrônicos. 

Na Polícia Civil Paulista implantou-se o inquérito policial eletrônico, o IP-e, que vai ao encontro do programa atual “São Paulo Sem Papel”, de iniciativa do Governo do Estado de São Paulo, que visa minimizar gradualmente o trâmite de documentos físicos no âmbito da administração pública e que foca também em ações de desburocratização e adoção do processo digital.

A tecnologia do inquérito policial eletrônico viabiliza ao Delegado de Polícia representar por medida cautelar de urgência de forma muito mais célere, evitando o deslocamento de seus agentes até o Fórum para protocolização da via física, facilitando, assim, o trabalho policial e minimizando custos ao erário público. Nesse aspecto, quem já necessitou das medidas de urgência em tempos passados, como um pedido de prisão temporária por exemplo, sabe muito bem a facilidade do sistema atual. Esse avanço, já em utilização há algum tempo, merece aplausos à instituição e aos órgãos envolvidos.

Se de um lado houve facilidade para a Polícia na comunicação com o Poder Judiciário, houve também ao promotor e ao próprio juiz, que acessam os autos com maior rapidez dentro de seus gabinetes, agilizando a tramitação. Naturalmente, essa característica também se estende aos advogados, defensores públicos, que em muitos procedimentos acabam tendo acesso e exercendo suas funções já na primeira fase da persecução penal.

Muito comum, portanto, o advogado comparecer em unidades policiais para visualização do inquérito policial físico ou digital.

Essa prerrogativa do defensor está prevista no próprio Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994, in verbis:

Art. 7º São direitos do advogado:

XIII - examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estiverem sujeitos a sigilo ou segredo de justiça, assegurada a obtenção de cópias, com possibilidade de tomar apontamentos;

Acerca do tema, destaca-se a súmula vinculante nº 14, do STF, que aduz:

É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.

Indiscutível, pois, o direito de acesso ao inquérito policial ou outro procedimento investigativo pelo advogado, porém, ressalvadas as hipóteses legais, vejamos.

1.1 Exigência de REQUERIMENTO

Não há que se falar em conduta ilegal por parte da autoridade policial ou de seus agentes em exigir requerimento escrito para o acesso ao inquérito policial ou a outro procedimento interno.

Antes, porém, deve certificar-se de sua condição de advogado, lembrando que nos termos do artigo 13 da Lei nº 8.069/94, está obrigado a portar a carteira da O.A.B. quando no exercício das suas funções.

Na impossibilidade física do interessado requerer por escrito o acesso aos autos, será elaborada certidão pelo escrivão do feito, concedendo vistas ao defensor.

A exigência de requerimento para acesso aos autos do inquérito policial ou termo circunstanciado trata-se de procedimento cautelar que deve adotar o Delegado de Polícia, a fim de resguardar os direitos constitucionais das próprias partes dos autos, pois há de existir um controle rigoroso das pessoas que tiveram acesso àquele determinado procedimento. A razão dessa formalidade é que no bojo do procedimento de investigação podem existir informações que, sendo divulgadas, afronta os direitos constitucionais do cidadão, como o da intimidade, a exemplo de fotografias de suspeitos ou pessoas que com eles guardam semelhanças e que eventualmente constem dos autos; imagens de laudos de exame de corpo de delito das partes (vítimas ou investigados); informações pessoais como endereços, telefones e, quiçá até intimidades reveladas em termos de declarações e depoimentos prestados durante o procedimento, os quais merecem controle de acesso.

Portanto, manter registro no acesso aos autos pela administração pública é proteger os direitos previstos na Carta Magna.

1.2 Exigência de PROCURAÇÃO

Em que pese o artigo 7º, inciso XIII do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Lei nº 8.906/1994, prever como direito do advogado o acesso aos autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, o mencionado dispositivo é claro em mencionar a ressalva quando os autos estiverem em sigilo ou segredo de justiça.

Nessa toada, o § 10 do mesmo artigo 7º estabelece: “Nos autos sujeitos a sigilo, deve o advogado apresentar procuração para o exercício dos direitos de que trata o inciso XIV”.   

Portanto, é prerrogativa do Delegado de Polícia exigir procuração do advogado para que tenha acesso ao procedimento considerado sigiloso.

Sobre a sigilosidade, o inquérito policial tem caráter restringível e de acordo com Gustavo Henrique Badaró Righi Ivahy, Jaime Pimentel Júnior e Rafael Francisco Marcondes de Moraes[1], poderá ter seu sigilo enquadrado em três níveis, a saber:

1º) Publicidade externa: representa a regra geral, com acesso aos autos investigatórios a todo cidadão, não se exigindo procuração do advogado para acesso (Estatuto da OAB, art. 7º, XIV);

2º) Publicidade interna ou sigilo externo: segundo nível correspondente ao denominado segredo de justiça, tornando os autos acessíveis apenas às partes diretamente interessadas e seus respectivos advogados, exigindo procuração (Estatuto da OAB, art. 7º, § 10);

3º) Sigilo interno: terceiro e excepcional nível, afeto aos elementos relacionados a diligências em andamento e ainda não documentadas nos autos investigatórios principais, normalmente tramitando em autos apartados, com acesso restrito às autoridades e agentes públicos, por imprescindível prazo determinado (Estatuto da OAB, art. 7º,§ 11).

Com efeito, o inquérito policial estará sempre à disposição do defensor, exceto quando houver diligência em andamento e o seu acesso for considerado prejudicial às investigações, como ocorre por exemplo em casos de interceptação telefônica em curso.

Nesse sentido, fazendo menção à súmula vinculante nº 14, acima transcrita, reafirma o professor Rogério Sanches Cunha[2] que “os defensores têm direito de acesso somente às provas já documentadas, ou seja, já incorporadas aos autos”. Ocorre in casu o chamado contraditório diferido, ou seja, a ampla defesa será exercida oportunamente, “após a colheita da prova, após a juntada dos autos da interceptação aos autos principais (art. 8º. da lei 9296/1996)”.

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Nessa toada, pela Polícia Civil do Estado de São Paulo foi editada a Súmula nº 3, quando do seminário “Polícia Judiciária e a Nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019)”, realizado na Academia de Polícia do Estado de São Paulo, a saber:

Súmula nº 3: O Delegado de Polícia decretará o sigilo externo de procedimento investigatório, fundamentadamente, para a tutela da intimidade ou do interesse social e, do mesmo modo, determinará o sigilo interno quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências a serem realizadas.

A nova lei de abuso de autoridade, Lei nº 13.869/2019, tem como elemento subjetivo o dolo específico, que pode ocorrer em três situações específicas, a saber: a) atuar visando prejudicar alguém, b) agir para beneficiar a si mesmo ou a terceiro ou, ainda, c) praticar a conduta por mero capricho ou satisfação pessoal, assim delineadas pelo artigo 1º, § 1º da Lei:

As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.

Destarte, sendo restringido o acesso pelo advogado ao procedimento de investigação, não há razão para se falar em abuso de autoridade pelo Delegado de Polícia, desde que a negativa decorra de decisão fundamentada e em casos permitidos. A razão é uma só: a decisão carece do especial fim de agir para abusar do poder, elemento essencial à configuração do crime de abuso de autoridade.

1.3 Senha para acesso aos inquéritos policiais eletrônicos

Em São Paulo, as unidades policiais não detém meios para o fornecimento de senhas para o acesso ao inquérito policial eletrônico, devendo os nobres advogados acessarem os procedimentos através do portal e-SAJ (https://esaj.tjsp.jus.br), como comumente o fazem em processos judiciais.

Assim, em situação de prisão em flagrante, no mesmo dia o inquérito policial eletrônico estará disponível no sistema, pois, ao ser distribuído recebe o número do processo e poderá ser acessado através do portal e-SAJ, por meio de computador, tablet, celular, etc.

Com relação aos procedimentos não aforados, isto é, aqueles que ainda não foram distribuídos judicialmente (não receberam número de processos e a designação da vara competente), não há como visualizá-los pelo e-SAJ, cumprindo ao advogado obter os apontamentos diretamente na própria unidade policial, seja através do comparecimento físico ou por correio eletrônico, a depender de cada procedimento adotado pelo Delegado de Polícia, ressalvadas as características da sigilação mencionada anteriormente.

Já nos autos em que foi decretado sigilo externo (acessíveis apenas às partes diretamente interessadas e seus respectivos advogados), em que se exige a procuração para o acesso, o advogado deve recorrer diretamente ao cartório judicial responsável pela tramitação do procedimento, solicitando a habilitação ao acesso mediante senha própria.

1.4 Conclusão

Por derradeiro, é direito de qualquer investigado, vítima ou qualquer parte envolvida nos autos de inquérito policial, ter suas garantias constitucionais protegidas pela autoridade policial, a quem está incumbida a tarefa de protegê-los, devendo controlar o acesso ao procedimento mediante a apresentação de requerimento pelo interessado, exigindo, quando for o caso, a apresentação da necessária procuração.

Em situações específicas, quando houver diligências ainda não findas e as provas ainda não foram anexadas ao bojo do procedimento principal, como ocorre com a interceptação telefônica, o defensor não poderá ter acesso aos autos apartados, de modo a garantir a efetividade da medida e garantir o necessário sigilo.

Com efeito, à luz de todo o exposto, o fato de a autoridade policial impedir o acesso aos autos de investigação por parte do advogado, por si só, não há que se falar em crime de abuso de autoridade, exceto se restar demonstrada a intenção de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. Deve-se, pois, preservar o interesse público e a busca pela verdade, função primordial de um procedimento de investigação.


[1]  MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; PIMENTEL JR., Jaime. Polícia judiciária e a atuação da defesa na investigação criminal. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 205-212; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p. 27.

[2] CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista; Renee do, Ó Souza. Crime Organizado. Comentários à Lei 12.85/2013. Salvador: JusPodivm. 2020. p. 48. 

Sobre o autor
Alexandre Batalha

Delegado de Polícia no Estado de São Paulo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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