Introdução:
Primeiramente é necessário definir o que são pessoas jurídicas. Tais pessoas podem ser conceituadas como “conjuntos de pessoas ou de bens arrecadados, que adquirem personalidade jurídica própria por uma ficção legal”[1].
Nesse sentido, conforme prescrevia o Código Civil de 1916, em seu artigo 20, a existência das pessoas jurídicas distingue-se das dos seus membros[2].
Isso porque a pessoa jurídica é justamente aquela criada pela unidade de vontades das pessoas físicas ou de bens doados e destacados por elas ou por outras pessoas jurídicas.
A lei, nesse sentido, dá normatividade a essa ficção jurídica, regulando a sua criação. Contudo, o Código Civil de 2002 adotou não somente a teoria da ficção de Friedrich Carl von Savigny como também a teoria da realidade objetiva de Ernst Zitelmann. Esta última descreve a pessoa jurídica como um organismo social, tendo existência autônoma e identidade próprias.
Da mesma forma que Código Civil de 2002 prevê direitos às pessoas naturais, às pessoas jurídicas também são conferidas gamas de direitos, e aqui, neste artigo tratar-se-á sobre especificamente o direito à personalidade, notadamente a sua desconsideração.
Do objetivo da MP da liberdade econômica:
A Medida Provisória de nº 881/2019, convertida na Lei nº 13.874/2019, teve como objetivo preponderante acelerar o desenvolvimento e crescimento econômico do país.
Além disso, prevê em sua exposição de motivos a tentativa de inversão do papel motriz da economia, sugerindo ser o cidadão particular o verdadeiro criador de ambiente de negócios favorável ao crescimento, não somente querendo a simplificação e diminuição de processos burocráticos “O objetivo desta Medida Provisória diferencia-se das tentativas do passado por inverter o instrumento de ação, ao empoderar o Particular e expandir sua proteção contra a intervenção estatal, ao invés de simplesmente almejar a redução de processos que, de tão complexos, somente o mapeamento seria desgastante e indigno, considerando que os mais vulneráveis aguardam por uma solução.”[3]
Entenderam os criadores da MP que ela auxiliará com efeitos imediatos na recuperação da estagnada economia brasileira, conforme estudos científicos presentes em Nota Técnica, especialmente no momento em que mais de 12 (doze) milhões de cidadãos se encontram desempregados.[4]
Pois bem, a intenção da Medida Provisória é clara, no sentido da tentativa de reaquecimento e reativação da estagnada economia brasileira refletida na quantidade de exorbitante de desempregados e desalentados.
Especificamente, em relação à desconsideração da personalidade jurídica, a exposição de motivos prevê: A mais prestigiada e segura conceituação dos requisitos de desconsideração da personalidade jurídica, conforme amplo estudo da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, e em alinhamento com pareceres da Receita Federal, é anotada em parágrafos no art. 50 do Código Civil, de maneira a garantir que aqueles empreendedores que não possuem condições muitas vezes de litigar até as instâncias superiores possam também estar protegidos contra decisões que não reflitam o mais consolidado entendimento.[5]
Embora de louváveis e genuínos os objetivos iniciais da sobredita MP, talvez os requisitos constitucionais, no que tange à elaboração da Medida Provisória em relação à desconsideração da personalidade jurídica não tenham sido observados.
É que o artigo 62 da Constituição Federal prevê o seguinte, verbis: Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
Pois bem, embora sejam conceitos jurídicos indeterminados, a relevância e urgência com o devido acatamento não se observam neste caso.
Isso porque a desconsideração da personalidade jurídica inserta no Código Civil de 2002 desde sua promulgação não foi, ultimamente, objeto de grande discussão e colidência de aplicação.
A desconsideração da personalidade jurídica poderia ser objeto de mais debates e enfrentamentos, passando pelas comissões legislativas e lá serem debruçadas através de um projeto de lei, visto que há urgência, numa visão analítica, acerca da modificação e normatização de requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica de pessoas jurídicas.
O açodamento da tramitação e o surgimento desmedido da norma, impõe sérias discussões acerca da necessidade de seu veículo ser a Medida Provisória, o que, em última análise pode denotar a sua inconstitucionalidade.
Da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas:
As pessoas jurídicas, por serem fruto da criação de pessoas físicas ou de outras pessoas jurídicas, possuem personalidade distinta das de seus membros.[6] É o que dispunha o artigo 20 do Código Civil de 1916.
Disso se extrai que as pessoas jurídicas possuem autonomia patrimonial, podendo aumentar, adquirir, transformar seus patrimônios como bem lhe aprouver, por serem sujeitos de deveres e obrigações.
O Código Civil de 2002, em sua versão original, não previa disposição acerca da distinção patrimonial entre a pessoa jurídica e seus e membros. Isso porque decorre logicamente do instituto das pessoas jurídicas tal distinção.
Não faria sentido a criação de pessoas jurídicas para em última análise os seus membros, instituidores, sócios, fundadores e afins responderem com seu próprio patrimônio, não havendo destaque daquilo que é patrimônio da própria pessoa jurídica.
Contudo, a fim de reforçar a necessidade da distinção patrimonial entre a pessoas jurídicas e os seus membros, a Medida Provisória objeto deste artigo, trouxe o artigo 49-A no bojo do Código Civil, verbis:
Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.
Daí surge a indagação e crítica acerca da desnecessidade de se inserir tal artigo no bojo de uma Medida Provisória.
De fato, não há relevância, muito menos urgência em trazer vigência a dispositivo praticamente idêntico ao que vigia desde a versão original do Código Civil de 1916.
Primeiro porque a doutrina e a própria essência do instituto corroboram no sentido de inexistir vinculação obrigacional, patrimonial, entre a pessoa jurídica e seus membros. Trata-se de uma regra inerente e essencial à pessoa jurídica.
Segundo porque não se vê caracterizada a urgência da medida. Repristinar a regra que vigia há mais de 100 (cem) anos não é urgente e muito menos relevante.
Portanto a par das explanações acima, entende-se haver indício de inconstitucionalidade a Medida Provisória já convertida em lei, vez que seus requisitos caracterizadores não ficaram comprovados.
Das teorias da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas jurídicas:
Para se discutir acerca da desconsideração da personalidade jurídica é necessário destacar que a autonomia patrimonial e a distinção da pessoa jurídica da de seus membros, é uma das garantias de sua atuação no mundo fenomenológico.
Não é demais reforçar que para a consecução do objeto social das pessoas jurídicas elas devem sempre se pautar na boa-fé, ética e na função social, princípios que norteiam todo o Código Civil e as relações comerciais.
Contudo, tal proteção, não pode ser encarada como escudo a fim de blindar o seu patrimônio quando verificado o abuso de direito e fraudes, gerando seu enriquecimento ilícito e prejuízo de pessoas jurídicas ou físicas com as quais transaciona.
Se, eventualmente, a pessoa jurídica comete tais fraudes e abusos, ela pode ter, momentaneamente, desconsiderada sua personalidade jurídica a fim de que eventuais prejuízos causados a terceiros sejam ressarcidos com o patrimônio de seus membros, sócios e demais associados.
Não visa a desconsideração da personalidade jurídica a dissolução da pessoa jurídica. É apenas um mecanismo conferido ao juiz para que no caso concreto o credor não sofra prejuízos sob o pretexto de se levar à última consequência a autonomia patrimonial da pessoa jurídica.
Diante disso, a doutrina, basicamente, separa em duas as teorias da desconsideração da personalidade jurídica, a teoria maior e teoria menor.
A teoria maior prevê que para a desconsideração da personalidade jurídica, deve haver a comprovação do abuso. Além é claro, do prejuízo ao credor.
Já a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica prevê para sua caracterização apenas o prejuízo ao credor. Essa teoria é adotada no artigo 28 e seus parágrafos do Código de Defesa do Consumidor e na Lei nº9.605/98 para os danos ambientais.
A medida Provisória modificou o artigo 50 do Código Civil que trata da desconsideração da personalidade jurídica, trazendo algumas inovações acerca dos requisitos de sua caracterização, transcreve-se o seu teor:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
A MP, convertida na Lei nº 13.874 de 2019, quis enquadrar as hipóteses para a desconsideração da personalidade jurídica.
Nesse sentido, explicitou o que desvio de finalidade deve ser entendido como a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza, excluindo dessa hipótese a utilização da pessoa jurídica para outros fins além daqueles previstos em contrato ou objeto social.
Determinou como deve ser entendida a confusão patrimonial em hipóteses taxativas, deixando ao fim cláusula aberta para a sua caracterização.
Por fim, exclui-se a possiblidade de caracterização da desconsideração da personalidade jurídica pela mera existência de grupo econômico.
Destarte é preciso mencionar que, novamente, para a determinação destas hipóteses e requisitos a MP foi veículo inadequado.
A alteração de artigos e requisitos de institutos do Código Civil, demandaria maiores e melhores debates e deveria ser objeto de projeto de lei específico para tanto. Não há urgência e relevância aptas a ensejar a edição de uma Medida Provisória.
Mas há que se destacar que quis se enquadrar o termo ‘desvio de finalidade’ impedindo interpretações no caso concreto do entendimento de que é vício que afasta o ato de sua finalidade legal.
Apenas aqui delimitou-se como sendo ato que visa lesar credores ou praticar ilícitos, não tendo andado bem nesse sentido, desvirtuando o termo em questão.
Resta saber se a doutrina, diante de tais inovações, vai manter suas premissas acerca das definições doutrinárias do tema ou irá se apenas se curvar diante das novidades legislativas.
A desconsideração prevista no Código de Defesa do Consumidor:
Há previsão da desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor.
A doutrina entende que a desconsideração prevista neste diploma legal se enquadra na teoria menor da desconsideração, bastando o mero inadimplemento ou prejuízo ao consumidor.
É que se consegue extrair da leitura do artigo 28, §5º do Código de Defesa do Consumidor, verbis:
SEÇÃO V
Da Desconsideração da Personalidade Jurídica
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 1° (Vetado).
§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
Portanto, o instituto também é utilizado em leis especiais, especialmente no microssistema do Código de Defesa do Consumidor que aliás fora o precursor da positivação da até então teoria.
A desconsideração inversa ou invertida da personalidade jurídica:
Aduziu-se acima a possibilidade da desconsideração, no caso concreto e momentânea da personalidade jurídica a fim de que seja afastada a autonomia patrimonial da sociedade ou pessoa jurídica para que o patrimônio do membro da sociedade fosse responsável pelo eventual prejuízo causado.
Entretanto há também a possiblidade da desconsideração inversa ou invertida. Ou seja, a autonomia patrimonial da pessoa jurídica fica afastada quando o sócio ou seu membro, em negociações particulares cometer abuso de direito e utilizar da pessoa jurídica da qual é membro como veículo da ilicitude.
Visa-se com a desconsideração inversa responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio, ou seja, a pessoa jurídica pela atitude de seu membro.
Nesses casos a estrutura societária, ou a pessoa jurídica, não pode servir de instrumento para ocultação patrimonial ou cometimento de abusos a fim de impedir a responsabilização da pessoa física que a cometeu.
Encontrou no Código de Processo Civil a normatização de tal instituto, especificamente no seu artigo 133, §2º verbis:
Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
§ 1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.
§ 2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Conclusão:
Portanto, nota-se que a desconsideração da personalidade jurídica – instituto de direito civil há anos já consolidado em jurisprudência, legislações e na doutrina – sofreu forte mudança com o advento da Medida Provisória nº 881/2019 Convertida na Lei nº 13.874, de 2019.
Tais mudanças, com o objetivo de trazer a mais prestigiada e segura conceituação dos requisitos de desconsideração da personalidade jurídica, conforme amplo estudo da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[7] positivou alguns incisos e delimitou a interpretação de conceitos jurídicos como confusão patrimonial e desvio de finalidade a fim de impedir ou dificultar a sua incidência em processos judiciais em que se discutem a incidência do instituto.
Nesse sentido, andou mal o legislador ou os legitimados para propositura da legislação ou para edição de Medida Provisória, vez que, não ficaram caracterizados os requisitos constitucionais para a edição da Medida Provisória.
Não se pode, através de instrumento que exige o requisito de relevância e urgência, modificar instituto de Direito Civil e repristinar artigo que vigia no Código Civil de 1916.
O debate acerca de tais matérias deveria ter sido tratado em Projeto de Lei específico com o adequado enfretamento de juristas e demais afetados com a medida, a fim de que o açodamento não contaminasse o Direito Civil.
Embora louváveis os objetivos, não se pode afirmar o mesmo em relação ao modo do surgimento da medida no âmbito normativo.
Referências Bibliográficas:
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 6. Ed. Ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Esquematizado, volume I. São Paulo: Saraiva, 2011.
[1] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 6. Ed. Ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016
[2] Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros.
[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP-881-19.pdf
[4] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP-881-19.pdf
[5] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP-881-19.pdf
[6] Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros.
[7] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP-881-19.pdf