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O magistrado e as audiências judiciais.

Para uma aplicabilidade judicial da Teoria da Justiça de Rawls e da Legitimação pelo Procedimento de Luhmann

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23/12/1998 às 00:00
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V - A Teoria da Justiça como Equidade

Essa denominação tem lugar porque se considera que todas as pessoas da sociedade partem de uma posição original de igualdade, daí essa teoria ser vista como uma parte da teoria da escolha racional, inclusive porque vê o contratualismo como melhor caminho à constituição teórica da justiça.

Sua idéia intuitiva é que a estrutura básica da sociedade abarca diferentes situações sociais e aqueles que nascem nessas situações diferentes têm diferentes expectativas de vida (Rawls, 1986: 30). Assim, lança-se postulados à teoria da justiça como equidade.

5.1. Os Postulados da Teoria da Justiça como Equidade.

1º postulado: a escolha dos primeiros princípios - A dificuldade está no fato de que cada pessoa deseja proteger seus interesses e não têm razões para consentir uma perda significativa com o fim de obter um valor líquido de satisfação superior, dessa forma o utilitarismo mostra-se incompatível com a concepção de uma cooperação social entre iguais, destinada a assegurar benefícios mútuos, é que as instituições não podem ser justificadas pelo argumento de que as dificuldades de alguns são compensadas por um maior bem total. "Pode, em certos casos, ser oportuno que alguns tenham menos para que outros possam prosperar, mas tal não é justo. Porém, não há injustiça no facto de alguns conseguirem benefícios maiores que outros, desde que a situação das pessoas menos afortunadas seja, por esse meio, melhorada. A idéia intuitiva é a seguinte: já que o bem-estar de todos depende de um sistema de cooperação sem o qual ninguém poderia ter uma vida satisfatória, a divisão dos benefícios deve ser feita de modo a provocar a cooperação voluntária de todos os que nele tomam parte, incluindo os que estão em pior situação" (Rawls, 1986: 35). Por ser contratualista envolve na escolha a interpretação da situação inicial e o conjunto de princípios suscetíveis de serem objeto dessa escolha.

2º postulado: a formulação da carta fundamental da sociedade - Adotada uma concepção da justiça, poder-se-á escolher a constituição, um sistema de produção de leis e assim por diante (Rawls, 1986: 34).

Entendendo que nenhuma sociedade pode ser um sistema de cooperação no qual se participa de forma voluntária, Rawls afirma que "pelo nascimento todos estamos situados numa sociedade concreta e numa posição determinada e a natureza desta posição afeta naturalmente as nossas perspectivas de vida, porém a teoria da justiça como equidade é a mais próxima do sistema voluntário" (Rawls, 1986: 34), visando evitar essa circunstância, Rawls propõe a expressão posição original.

5.2. Posição Original

5.2.1. Situação Inicial dos Participantes

A posição original (status quo inicial) é hipotética e não histórica, onde todos os cidadãos estariam numa posição de igualdade, em pleno exercício de sua racionalidade e com desinteresse mútuo, ou seja, nela as pessoas são livres, racionais (escolha da via mais efetiva para atingir fins determinados) e mutuamente desinteressadas (não significa serem egoístas mas que não têm interesse nos interesses dos outros). Nesta posição é formulado o contrato original, aquele que tem por objetivo os princípios da justiça aplicáveis à estrutura básica da sociedade (Rawls, 1986: 33).

Numa sociedade há desigualdades inevitáveis, tais como, a posição social, as perspectivas de vida e as vantagens sociais. Como portanto se pode pensar numa posição original nesses padrões? Recorre-se à expressão véu da ignorância.

5.2.2. Véu da Ignorância

Na posição original estamos obrigados a definir as atribuições sem a menor noção de se seremos o presidente da república, um deputado, um magistrado, um professor, um lavrador, um pedreiro etc.. Procedem-se essas escolhas com base em considerações gerais, sem situar-se na nossa posição atual, que só será definida posteriormente. O véu da ignorância é elemento fundamental à teoria da justiça como equidade por nele ser impossível o conhecimento de elementos pormenorizados, o que resultaria no desvio das escolhas das regras da justiça como equidade devido às contingências arbitrárias (Rawls, 1986: 121-23).

Em relação às audiências judiciais, verifica-se o véu da ignorância, pois a certeza promovida pelo direito é que uma decisão será tomada e não a previsibilidade do conteúdo desta (Luhmann, 1980: 46 e 53); além de que, no procedimento judicial, as partes impõem papéis aos outros e a si mesmo, como o compromisso de participar do processo e aceitar a decisão final, este compromisso não repousa na lei, mas na liberdade de proceder (1980: 81). Há pois uma ignorância das posições que eles, os litigantes, assumirão após a sentença transitada em julgado. Daí revelar-se um processo de aprendizagem com o procedimento judicial, pois a participação das partes é indispensável à formação do conteúdo da decisão judicial (1980: 72-3).

É, pois, através do véu da ignorância que as pessoas podem realizar suas escolhas abstraídas de sua posição social, nele as pessoas só têm conhecimentos gerais, não têm condições de saber qual o seu lugar na sociedade, sua posição de classe, sua fortuna ou distribuição de talentos naturais, suas capacidades, sua inteligência, sua força etc., por isso não sabem como é que as várias alternativas vão afetar a sua posterior situação concreta. Assim, dois princípios se mostram irrefutáveis à justiça como equidade.


VI. Dois Princípios da Justiça

Na posição original dois princípios da justiça seriam os escolhidos por todos: primeiro, "cada pessoa deve ter um direito igual ao mais extenso sistema de liberdade básicas que seja compatível com um sistema de liberdades idêntico para as outras"; e, o segundo, "as desigualdades econômicas e sociais devem ser distribuídas por forma a que, simultaneamente: a) redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados, de uma forma que seja compatível com o princípio da poupança justa, e b) sejam a conseqüência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circunstância de igualdade eqüitativa de oportunidades" (Rawls, 1986: 239).

6.1. Princípio das Iguais Liberdades Básicas

Trata-se dos princípios da liberdade. O debate passa pela questão da liberdade individual reclamada por todos versus a necessidade de institucionalização, reconhecida por todos. Mesmo reconhecendo-se a necessidade de existir uma instituição definidora dos padrões de comportamento, as pessoas gostam de escolher seus modos de vida. Assim, qual princípio seria o escolhido na posição original para resolver este impasse?

Rawls analisa o princípio do paternalismo; o princípio da utilidade; e a concepção contratualista, para enfim afirmar que "o ponto essencial é que as pessoas na posição original não se representam como sujeitos individuais isolados. Pelo contrário, admitem que têm interesses que devem proteger o melhor que podem e que estão ligadas a certos membros da geração seguinte, os quais formularão pretensões semelhantes às suas. Quando as partes tomam consciência desses factos, a argumentação em favor dos princípios da justiça é reforçada". (Rawls, 1986: 171)

Como a liberdade de consciência igual para todos se funda na idéia de que os sujeitos não se apresentam isolados, mas admitem que têm interesses que devem proteger, tais como suas convicções religiosas e morais, na posição inicial, com o véu da ignorância, elimina-se a perspectiva do princípio do paternalismo e do utilitarismo, pois o princípio do paternalismo está limitado ao se cogitar liberdade de consciência igual para todos, é que o pai para garantir os direitos de seus descendentes procurará decidir adotando o princípio da igual liberdade (Rawls, 1986: 173).

Já o utilitarismo, nos moldes de Mill, provoca a reflexão da realização da liberdade de consciência para a tomada de decisão na posição original. Mill aponta três fundamentos paras as instituições livres: o primeiro refere-se ao desenvolvimento das capacidades e potências; o segundo é ver a liberdade como instituição, de onde as preferências por uma ou outra atividade é definida racional e informativamente; o terceiro, fundamento à preferência que os seres humanos têm de viver em instituições que respeitem a liberdade, pois "apesar de os homens se queixarem do peso da liberdade e da cultura, têm um desejo imperioso de determinar o modo como vivem e decidir os seus próprios assuntos. Como o utilitarismo pressupõe a existência de uma capacidade igual de todos, pensa na sociedade maximizando a possibilidade de realização dos seus objetivos, o princípio da utilidade não justifica a liberdade de todos exatamente porque os seres humanos não gozam das mesmas disposições e potências para realizar as atividades. O utilitarismo, com seu teleologismo, mostra-se auto-refutável, pois retirando-se a suposição da capacidade igual de todos para realizar atividades, conclui-se que "a prossecução dos objectivos humanos pode ser compatível com a opressão de certas pessoas, ou pelo menos com a atribuição de uma liberdade limitada. Sempre que a sociedade se dispõe a maximizar o total do valor intrínseco ou o saldo líquido de satisfação de interesses, arrisca-se a descobrir que a recusa da liberdade para alguns é justificada em nome desse objectivo isolado" (Rawls, 1986: 173-74).

Cabe então refletir sobre a capacidade e necessidade da tolerância como fator preponderante à realização da liberdade de consciência. É o que Rawls passa a abordar através do princípio das desigualdades, inclusive tratando da tolerância para com os intolerantes (Rawls, 1986: 175-81).

6.2. Princípio das Desigualdades

A teoria da justiça como equidade deve oferecer, para servir à condução de uma sociedade justa, por que entre iguais, mecanismos capazes de amenizar as desigualdades. São eles:

a) as desigualdades econômicas, devem ser equilibradas de forma que os rendimentos sejam distribuídos em benefício de todos. Supera-se assim a argumentação de a distribuição da riqueza e do rendimento ter que ser igual. Esse argumento é substituído pela idéia de essa distribuição dever ser realizada em benefício de todos (Rawls, 1986: 68).

as desigualdades sociais, restam controladas a partir da noção de se admitir o acesso às funções e posições sociais para todos. As posições de autoridade e responsabilidade devem ser acessíveis a todos. Todos devem poder dispor da faculdade de acesso a essas posições sociais (Rawls, 1986: 68,9). Posteriormente, trata da família como instituição que possa vir a servir de barreira à igualdade de oportunidades (Rawls, 1986: 238).

Só tratando assim essas desigualdades é que se pode construir uma sociedade de iguais e conseqüentemente formas as instituições capazes de propiciar a justiça como equidade, pois cada indivíduo se beneficia com as desigualdades admissíveis da estrutura básica da sociedade.


VII - Aplicabilidade dos Princípios da Justiça

Após escolhidos os princípios da justiça como equidade na posição original, Rawls retoma a posição dos indivíduos em seus lugares na sociedade, em seus respectivos status quo, e afirma que então passam a julgar as exigências e situações próprias do convívio social baseados nesses princípios. Rawls analisa a aplicação dos princípios da justiça quanto às instituições (1986: 163, 260) e quanto ao indivíduo (1986: 261,301). Limitar-nos-emos à primeira aplicação.

Tratando por instituições a estrutura básica da sociedade, Rawls demonstra o modo de aplicação dos princípios da justiça nas instituições e aponta três raciocínios que o cidadão teria que fazer: primeiro, "deve apreciar a justiça da legislação e da política social", porém as afirmações sobre essas justiças não são unânimes, as opiniões e as convicções tendem a ser diferentes, principalmente quando interesses estão em jogo (Rawls, 1986: 163); segundo, "decidir quais soluções constitucionais, de um modo justo, podem conciliar as opiniões contrárias quanto à justiça", considerando o mecanismo do processo político como meio mais justo que outros, aceita-se que a justiça não seja concebida só ao se apreciar leis e medidas políticas, mas também através de uma hierarquia dos "processos políticos que selecionam qual a opinião política que é transformada em lei"; terceiro, "o cidadão deve distinguir quando é que as decisões da maioria devem ser obedecidas e quando é que dever ser rejeitadas como não vinculativas" (Rawls, 1986: 164).

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Quanto ao primeiro princípio, das liberdades básicas para todos, os direitos e liberdades básicas são definidos pelas regras públicas da estrutura básica. A liberdade constitui um padrão para as formas sociais, pois as liberdades individuais são determinadas pelos direitos e deveres estabelecidos pelas instituições, assim, considera por única razão para limitar as liberdades, evitar que colidam entres si (Rawls, 1986: 69).

Quanto ao segundo princípio, das desigualdades, refere-se aos sujeitos representantes que ocupam posições sociais ou funções estabelecidas pela estrutura básica. Há, pois, a exigência de que todos ganhem com certa desigualdade. Ao alargar as expectativas de um sujeito representativo colocado numa dada posição, alarga-se ou restringe-se as de outros sujeitos representativos colocados em posição diferente, assim, "a situação em que alguém considera o problema de distribuir certos bens entre pessoas necessitadas que ele conhece pessoalmente não cabe no âmbito dos princípios. Estes destinam-se a revelar a organização de instituições básicas" (Rawls, 1986: 70). É quando fala-se em imparcialidade como elemento essencial para que os magistrados tomem suas decisões judiciais.


VIII – As Audiências Como Instrumento Legitimador das Decisões Judiciais

Aplicar essa concepção de justiça nas audiências é possível, inclusive porque nela há uma situação semelhante à da posição original. Os litigantes não sabem qual será a decisão futura a ser proferida, o que permite falar em igualdade de todos devido ao véu da ignorância, ou seja, por não se saber qual sua posição social após a sentença, o que pode resultar das escolhas dos princípios de justiça efetuadas na posição original. Assim, na posição posterior, mesmo formada por desigualdades de rendimento e diferença de autoridade, todos conduzir-se-ão considerando os princípios de justiça escolhidos na posição original, o que forma a harmonia de uma concepção geral de justiça, resultando na melhoria das condições, posições de todos, em benefício de todos.

A seqüência é que na posição original, primeiro escolhe-se os princípios da justiça; depois, uma constituição básica (escolha da constituição justa que seja mais efetiva, aquela que satisfaça os princípios da justiça e que seja melhor concebida para permitir a obtenção de legislação que seja também justa e efetiva); e em seguida, distinguem-se dois problemas: o do processo justo e o de selecionar entre as estruturas justas a que tem maiores condições de levar a uma ordem jurídica justa e efetiva (processo legislativo - os representantes não têm informações detalhadas sobre si próprio - lei justa ou injusta depende das diferenças de opinião; por fim, a aplicação das regras existentes a casos concretos feita por juízes e autoridades administrativas, todos dispõem de acesso a todos os fatos, deixa de haver limite ao conhecimento) (Rawls, 1986: 165,66).

Uma constituição justa é aquela que os delegados racionais adotariam para a sua sociedade. Leis e políticas justas são as que seriam escolhidas na etapa legislativa. (Rawls, 1986: 167). Assim, a teoria da justiça como equidade será uma teoria válida se definir um domínio para a justiça que esteja mais de acordo com os nossos juízos ponderados do que as teorias existentes e caso mostre, com maior acuidade, os erros graves que uma sociedade deve evitar (Rawls, 1986: 167).

Para aplicar estas idéias no exercício da atividade judicial, basta aos magistrados alertarem-se à noção de que a participação das partes processuais no processo decisório, conexa à ascese erótica cognitiva do julgador, é um mecanismo à legitimação da decisão. Dar, então, aos litigantes espaço para exporem, relatarem suas visões, serve para ampliar a convicção do julgador. A postura, portanto, do magistrado durante as audiências é uma situação social que não está, nem pode ser, submetida ao crivo do direito estatal, está fora de sua alçada. Mesmo que se pensasse em criar uma lei sobre esse assunto, esta jamais teria eficácia. Enfim, ao se decidir pelo indeferimento de perguntas, ao se negar a constar em ata a pergunta indeferida, bem conceder a palavra diretamente às partes são meios de legitimar a decisão final e de atuar com justeza e não uma questão de direito estatal.

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Sobre o autor
Artur Stamford

professor da Faculdade de Direito de Olinda (FADO), da Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6ª Região (ESMATRA VI), e da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco (ESMAPE), doutorando em Direito pela UFPE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

STAMFORD, Artur. O magistrado e as audiências judiciais.: Para uma aplicabilidade judicial da Teoria da Justiça de Rawls e da Legitimação pelo Procedimento de Luhmann. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/810. Acesso em: 18 mai. 2024.

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