SUMÁRIO: 1.1 Conceito de acesso à justiça, 1.2 Obstáculos ao acesso à justiça, 1.3 Ondas renovatórias, 1.3.1 Primeira onda - assistência judiciária, 1.3.2 Segunda onda - instrumentalidade do controle difuso, 1.3.3 Terceira onda - enfoque no acesso à justiça. 2. Defensoria Pública. 2.1 Introito. 2.2 Atribuições da defensoria pública na esfera judicial. 2.3 Atribuições da defensoria na esfera extrajudicial. 2.4 Atribuições da Defensoria Pública na tutela dos direitos humanos. 2.5 Princípio do defensor natural. 2.6 Espécies de Defensoria Pública. Conclusão e Expectativas da Defensoria Pública. Referências.
RESUMO
O estudo em questão visou fazer uma análise da questão do acesso à justiça, focando principalmente na instituição Defensoria Pública. Desse modo, foi feito um aprofundamento acerca do fenômeno da justiça até chegar propriamente a questão do acesso à a justiça e as suas problematizações. Em seguida, foram analisadas soluções para os problemas apresentados, onde foi realizada uma abordagem das ondas renovatórias do acesso à justiça. Em um segundo momento, a instituição Defensoria Pública foi estudada de forma mais profunda, sendo comentadas as suas atribuições nas mais diversas áreas, como, por exemplo, a atuação na área penal, extrajudicial, na tutela coletiva e nos Direitos Humanos. Por fim, foram feitas as considerações finais dentro de uma reflexão sobre as expectativas da Defensoria Pública como instrumento de acesso à justiça.
Palavras-chaves: Acesso. Justiça. Defensoria Pública
RESUMEN
El estudio en cuestión tuvo como objetivo realizar un análisis del tema del acceso a la justicia, centrándose principalmente en la institución Defensor Público. De esta forma, se profundizó sobre el fenómeno de la justicia hasta la cuestión del acceso a la justicia y su problematización. Luego, se analizaron las soluciones a los problemas presentados, donde se realizó un acercamiento a las renovadas olas de acceso a la justicia. En un segundo momento, se estudió con mayor profundidad la institución del Defensor Público, comentando sus atribuciones en las áreas más diversas, como, por ejemplo, el desempeño en el área penal, extrajudicial, en la tutela colectiva y en los Derechos Humanos. Finalmente, las consideraciones finales se hicieron en una reflexión sobre las expectativas del Defensor Público como un instrumento de acceso a la justicia.
Palabras-clave: Acceso. Justicia. Defensor Público
DO ACESSO À JUSTIÇA E DA DEFENSORIA PÚBLICA
1.1 Conceito de acesso à justiça
O conceito de acesso à justiça é de difícil compreensão, pois, de antemão, passa pela imprecisão do termo justiça. A professora e Defensora Pública do Estado de São Paulo Franciane de Fátima Marques afirma:
“A idéia de justiça remete a uma concepção de harmonia, de bem estar. Remete também à idéia de inclinação a uma ordem de convivência que está presente na Constituição, eis que, como fonte primária de valores, ela tem validade na medida em que se caracteriza como ordem justa que satisfaz aos seus destinatários.[1].”
Partindo do raciocínio supracitado, a ideia de justiça estaria vinculada, quando diante de uma lide, à busca da satisfação das partes envolvidas.
Kelsen, em um primeiro momento, com base na doutrina de Platão, demonstra ter achado o conceito de justiça no sentido de resolução de conflitos, ao afirmar que se trata de um sinônimo de felicidade, porém, em seguida, indaga: o que é felicidade?.[2]
Sem esmiuçar o conceito de felicidade, pode-se dizer, seguindo o raciocínio do jurista austríaco, que haverá justiça em um processo, por exemplo, quando ambos os litigantes saírem felizes com o resultado, ou seja: quando um dos litigantes receber o bem da vida pleiteado e outro simplesmente se conformar em perdê-lo. Desta feita, o conceito de Justiça de Kelsen, ao que parece, tem similitude com o conceito de satisfação exposto no começo do presente tópico.
Cappelletti e Garth parecem estar em consonância com a doutrina de Kelsen quando, fazendo um paralelo com as sociedades do laissez-faire, afirmam que o movimento de acesso à justiça aprofundado pelos mesmos, conforme será visto em seguida, “fez-se no sentido de reconhecer os direitos e deveres sociais dos governos, comunidades, associações e indivíduos.”.[3]
Desse modo, o conceito de acesso à justiça, ou acesso à felicidade dentro da doutrina kelsiana, passa pelo acesso aos próprios direitos fundamentais, tais como educação, saúde e família ou simplesmente pelo acesso a qualquer direito constitucionalmente ou legalmente assegurado.
Como afirma Alf Ross: “Justiça é igualdade”[4]. Assim, é preciso que todos tenham as mesmas possibilidades de acesso aos seus direitos ou aos seus mecanismos para obtê-los, de modo que, mesmo não se chegando a uma conclusão acerca do conceito de justiça, é evidente que a mesma não existe em uma sociedade onde parte da população usufrui plenamente dos bens da vida, enquanto outros não têm acesso sequer às necessidades básicas.
Já Aristóteles dizia: “Justiça e igualdade são, portanto, a mesma coisa, sendo ambas boas, ainda que a equidade seja melhor”.[5]
A afirmação supra, em um primeiro momento, pode parecer contraditória. Ora, como justiça e equidade têm o mesmo significado sendo a última melhor que a primeira? Entretanto, em seguida, o filósofo grego afirma: “A origem da dificuldade é que a equidade, embora justa, não é a justiça legal, porém retificação desta”.[6]
Desse modo, para Aristóteles a equidade tem como função corrigir o fato da lei não poder prever todas as situações existentes na natureza, de modo a se afastar da justiça meramente legal, sendo “um tipo especial de justiça”.[7]
Hart, apesar de não vincular o conceito de igualdade ao de justiça, concorda existir desrespeito a essa última quando houver o estabelecimento de “privilégios ou imunidades não-equitativos.”[8]. Mas, em seguida, o mesmo autor ressalta a possibilidade de existir injustiça mesmo quando há respeito à igualdade ao afirmar:
“Mas tais leis poderiam ser injustas de uma maneira bem diversa: porque, ainda que não fazendo discriminação não-equitativas, poderiam abster-se em absoluto de oferecer remédio para certos danos causados de uma pessoa a outra, mesmo que se considerasse moralmente devida uma indemnização. Nesta matéria, o direito poderia ser injusto, ainda que tratando todos da mesma maneira. (sic)” (Idem, 2005, p. 178)
Arthur Kaufmann por outro lado, afirma: “mas se justiça é essencialmente igualdade, isso significa também, como é óbvio, que justiça não é apenas igualdade”[9]. Além da igualdade, como justiça em sentido estrito, o referido autor acrescenta ainda ao conceito de justiça a adequação, como a forma da justiça e a segurança jurídica, como a função da justiça.[10]
Caso se adote o conceito de Kaufmann, alcançar a igualdade, mesmo em seu duplo aspecto (moral e material), não é suficiente para alcançar a justiça. Porém, não há como negar que o tratamento desigual é por si só injusto. Ou seja, mesmo concluindo, assim como faz a maior parte dos estudiosos, ser o conceito de justiça de difícil ou até mesmo de impossível conceituação, em determinadas situações é muito evidente a presença de uma injustiça.
Dessa feita, quando diante da violação de direitos, ou simplesmente quando diante de uma pretensão resistida, deve haver mecanismos capazes de assegurar a todos os cidadãos, e não apenas a parcela deles, a possibilidade de resolver a situação de forma definitiva, de modo a poder existir uma sensação de justiça, de felicidade ou simplesmente satisfação com o resultado obtido, assegurando-se, assim como afirma o doutrinador argentino Omar Luiz Diaz Solimine, “la prestación de justiça a los pobres y a los ricos sin distintión.”[11]
Naturalmente, o objetivo acima mencionado parece ser muito utópico, de modo que mais importante do que oferecer a justiça é oferecer mecanismos para ir a busca dela. Dentro desse contexto, Mauro Cappelletti e Byant Garth comandaram um estudo, denominado Projeto de Florença, cujo relatório foi publicado no Brasil por meio de um livro intitulado Acesso à Justiça, traduzido e revisado pela Ex-Ministra do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie.
No estudo em questão, foram abordados diversos obstáculos ao acesso à justiça e algumas propostas de solução, chamadas pelos autores de ondas renovatórias, que serão objeto de atenção da presente dissertação nos próximos tópicos.
Antes, é importante frisar o fato de alguns autores preferirem a expressão acesso aos direitos devido à imprecisão do termo “justiça”[12]. No direito comparado, por exemplo, a expressão acesso ao direito é constantemente utilizada pela doutrina e pela legislação, assim como acontece no artigo 20(vinte) da Constituição da República Portuguesa, intitulado: “Acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva” [13]. No presente estudo, no entanto, em face da praxe já consolidada, será utilizada a expressão acesso à justiça.
1.2 Obstáculos ao acesso à justiça
Diversos são os obstáculos encontrados para garantir o acesso à justiça, ou acesso aos direitos por parte da população de um modo geral, mormente no caso daqueles desprovidos de recursos, conforme será melhor aprofundado no presente estudo a partir de agora.
O primeiro obstáculo mencionado por Cappelletti e Garth é o alto valor necessário para a existência de um processo, bem como para o custeio dos advogados, principalmente no sistema norte-americano, onde o vencido não é obrigado a arcar com custas do vencedor.[14]
Em seguida, os mesmos autores abordam a questão da falta de recursos financeiros dos possíveis litigantes[15], de modo a existir, assim, um obstáculo econômico.
Nesse ponto, Fernando Fontainha lembra ser equivocado considerar que o obstáculo econômico decorre apenas do fato do processo ser “caro”, uma vez que deve ser avaliada também a situação econômica das partes. [16]
Mesmo nos modelos processuais, como é o caso do processo civil Brasileiro, onde o ônus da sucumbência é arcado pelo vencido, o valor das custas, dos honorários advocatícios e a dificuldade financeira das partes também são obstáculos, pois, antes do término do processo, as partes interessadas necessariamente arcarão com gastos.
No processo penal do Brasil a problemática persiste, pois, assim como afirma Mirabete, “a pobreza do condenado não impede a condenação das custas, pois a inexigibilidade ou não da sua cobrança é matéria de execução e nesta deve ser considerada”.[17]
Já no processo trabalhista pátrio, apesar da existência de normas mais favoráveis ao trabalhador, abrangendo, inclusive, nos termos do parágrafo 3º do artigo 790 da Consolidação das Leis do Trabalho-CLT, as custas quanto aos traslados e instrumentos, a situação do empregador fica ainda mais delicada, conforme se percebe nas palavras de Sérgio Pinto Martins: “a justiça gratuita somente é concedida ao empregado, que é a pessoa que ganha salário. Não será deferida ao empregador, mesmo que não tenha condições financeiras”[18]
Conforme será visto adiante, dois institutos surgem como forma de amenizar essa problemática, quais sejam: a assistência jurídica gratuita e o benefício da Justiça Gratuita.
As pequenas causas, muitas vezes de fácil solução, acabam, no entanto, sendo outro obstáculo ao acesso à justiça, pois constantemente o valor do processo pode ultrapassar o valor do objeto do litígio.[19]
A criação dos juizados de pequenas causas é uma forma de contornar essa situação, porém a referida solução deve ser seguida de estudos onde possa ser averiguado que valor e quais espécies de causas seriam da alçada do referido juizado, bem como quais mecanismos devem existir para garantir a celeridade sem ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa.
Medidas como possibilitar o acesso aos juizados sem a necessidade de advogado é uma forma de viabilizar o acesso ao Judiciário, mas não necessariamente à justiça, pois a ausência de defesa técnica pode inviabilizar o efetivo acesso aos direitos dos jurisdicionados. Nesse sentido, oportunas são as palavras de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro: “Os juizados jamais funcionarão adequadamente, com todo o seu potencial, de sorte a cumprir as finalidades que levaram à sua criação, sem que estejam dotados de um eficiente serviço de assistência judiciária”.[20]
Ademais, não adianta, em busca de um desfecho menos custoso e mais rápido, passar por cima das garantias constitucionais, assim como fica sem utilidade a criação de varas especializadas em pequenas demandas, mas sem a estrutura e quantidade de juízes e servidores necessários para a melhor apreciação da causa.
A demora do processo também é um problema que deve ser levado em consideração[21]. Boaventura Souza Santos ainda adverte que a lentidão processual pode acabar sendo convertida em mais gastos econômicos para os litigantes, principalmente, de forma proporcional, para os menos favorecidos de recursos.[22]
Dentro do ordenamento jurídico brasileiro, institutos como a antecipação dos efeitos da tutela e a medida cautelar visam atenuar as delongas processuais, pois protegem os bens da vida pleiteados, impedindo a perda do objeto das demandas judiciais em face da sua perduração no tempo.
Por outro lado, a previsão constitucional da “duração razoável do processo” é desprovida de maiores efeitos práticos[23], por apenas trazer a obrigatoriedade de respeito a um conceito jurídico indeterminado, de modo a ser necessária a existência de mecanismos que desafoguem o Poder Judiciário.
Outro obstáculo é o chamado “juridiquês”, ou a língua falada nos tribunais, por ser extremamente complexa e não está acessível a todos. Os textos legais, a doutrina do Direito e a jurisprudência pátrias utilizam um linguajar próprio, muitas vezes, como lembra o professor Francisco Caetano Pereira, com a presença do latim, em virtude da influência do Direito Romano e do Direito Canônico[24], o que acaba dificultando o acesso à justiça por parte dos leigos, principalmente devido ao fato da população, de uma maneira geral, ter um baixo nível de instrução, de modo a ser o Direito, assim como afirma Tércio Sampaio Ferraz Junior, “acessível apenas a uns poucos especialistas.”[25]
Nesse sentido, Pierre Bourdieu, no seu livro “O Poder Simbólico”, afirma:
“A constituição do campo jurídico é inseparável da instauração do monopólio dos profissionais sobre a produção e a comercialização desta categoria particular de produtos que são serviços jurídicos. A competência jurídica é um poder específico que permite que se controle o acesso ao campo jurídico, determinando os conflitos que merecem entrar neles e a forma específica de que se devem revestir para se constituírem em debates propriamente jurídicos: só ela pode fornecer os recursos necessários para fazer trabalho de construção que, mediante uma seleção das propriedades pertinentes, permite reduzir a realidade à sua definição jurídica, essa ficção eficaz”[26]
Desse modo, só tem acesso ao “campo jurídico” aqueles que os operadores do direito permitem o seu ingresso e na medida e na forma dos interesses desses profissionais. A dificuldade em se compreender o direito é uma forma de garantir aos profissionais da referida área o monopólio sobre a resolução dos conflitos, de modo a prevalecer os interesses meramente corporativistas em detrimentos dos interesses da sociedade de um modo geral.
Em verdade, Bice Mortara Garavelli frisa que não há uma língua própria do direito, mas sim uma reutilização de termos especializados da língua ordinária[27], o que, de qualquer forma, torna mais difícil a interpretação dos termos jurídicos em comparação com os falados e escritos pela população em geral.
Nesse contexto, Carlos Simões Fonseca afirma:
“Dentre as razões que dificultam a entrada do indivíduo no sistema jurisdicional podem ser destacadas: a carência de informações indispensáveis ao pleno exercício da cidadania devido ao baixo nível de instrução da população, o baixo poder aquisitivo de significativa parcela da sociedade e o alto custo das taxas judiciais[28]. (Grifos de Agora)”
É dentro dessa linha de raciocínio que Cappelletti e Garth trazem como um dos obstáculos para o acesso à justiça “a Aptidão para Reconhecer um Direito e propor uma Ação ou Sua Defesa.”[29], bem como que Fernando Pagani Mattos afirma:
“Um outro importante entrave ao efetivo acesso à justiça está intimamente ligado à carência de recursos econômicos, mencionado alhures, e diz respeito ao desconhecimento por parte do cidadão dos seus direitos básicos e principalmente dos instrumentos processuais que os possam garantir.[30]”
Também nesse sentido, José Cichocki Neto afirma em seu livro “Limitações do acesso à justiça”:
“Sob essa ótica, o acesso à justiça não implica somente na existência de um ordenamento jurídico regulador das atividades individuais e sociais mas, concomitantemente, na distribuição legislativa justa dos direitos e faculdades substanciais. Assim, no conceito de acesso à justiça, compreende-se toda a atividade jurídica, desde a criação de normas jurídicas, sua interpretação, integração e aplicação, com justiça. É exatamente nesse sentido mais amplo que deve ser tomada a expressão acesso à justiça[31].”(Grifos de Agora)
Dentro desse raciocínio, um dos corolários do acesso à justiça deve ser justamente a interpretação dos textos legais, de modo a torná-los acessíveis a todos, mormente àqueles menos instruídos, assim como pode ser retirado das palavras de Mozdzenski, quando o mesmo afirma: “Além disso, a compreensão de determinados termos jurídicos e de seu contexto é que torna possível, em princípio, o efetivo exercício da cidadania”.[32]
Assim, não resta dúvida ser uma das funções das instituições que garantam o acesso à justiça a colaboração com a compreensão dos textos legais e com o esclarecimento do direito de um modo geral. Dentre as carreiras jurídicas responsáveis por garantir o acesso à justiça por meio desses esclarecimentos está justamente a Defensoria Pública, que deve ter a cautela de não fazer prevalecer os interesses classistas em detrimento das necessidades dos cidadãos hipossuficientes.
Cappelletti e Garth também se preocupam com a situação dos direitos chamados fragmentados ou coletivos, em virtude de duas dificuldades encontradas, quais sejam: a falta de reunião das partes envolvidas para discutir os problemas em comum, bem como a falta de interesse de individualmente resolver a situação[33]. Desse modo, estar-se-á diante do obstáculo chamado organizacional.
Como possíveis soluções para esses problemas, surgem instituições públicas ou privadas, como o Ministério Público, a Defensoria Pública e as Associações, bem como instrumentos processuais, tais como as Ações Civis Pública, aptos para ingressarem em juízo e serem ajuizados, respectivamente, em prol dos interesses coletivos.
Por fim, existem ainda os obstáculos psicológicos. Adentrar em um Fórum ou procurar um causídico não é algo simples para todo e qualquer leigo, principalmente no caso dos hipossuficientes, até mesmo a “arquitetura imponente dos tribunais”[34] é motivo para afastar as pessoas da busca pelos seus direitos.
Assim, muitos litígios deixam de ser resolvidos ou muitas pessoas abrem mãos dos bens da vida, essenciais ou não, tão-somente porque não têm coragem, estimulo ou disposição de fazerem parte da burocracia judicial.
1.3 Ondas renovatórias
1.3.1 Primeira onda - assistência judiciária.
Diante de todos os obstáculos encontrados, Cappelletti e Bryant, com intuito de resolvê-los e/ou amenizá-los, trouxeram 3(três) ondas renovatórias: a assistência judiciária, a instrumentalidade do controle difuso e o novo enfoque ao acesso à justiça[35]. A partir de então, será realizada uma breve análise de cada uma dessas situações.
A primeira onda tem como preocupação os chamados obstáculos econômicos que dificultam o acesso à justiça e especificamente ao Poder Judiciário, especialmente por parte da parte da população desprovida de recursos financeiros.
Assim, nessa parte do estudo do projeto de Florença houve um foco nas formas de garantir o acesso ao referido poder.
1.3.2 Segunda onda - instrumentalidade do controle difuso
Aqui a preocupação se dá com os já mencionados obstáculos organizacionais. Surge, assim, a preocupação com a tutela dos interesses difusos, bem como, assim como já mencionado, com a criação de instrumentos capazes de atingir os referidos direitos e com instituições que tenham entre as suas preocupações/obrigações a resolução da referida problemática.
1.3.3 Terceira onda - enfoque no acesso à justiça
A última onda mencionada tem uma concepção mais abstrata que as demais, por isso urge a necessidade de colacionar as palavras de Mauro Cappelletti e Bryant Garth:
“O novo enfoque do acesso à justiça, no entanto, tem alcance muito mais amplo. Essa “terceira onda” de reforma inclui a advocacia, judicial ou extrajudicial, seja por meio de advogados particulares ou públicos, mas vai além. Ela centra sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimento utilizados para processar e mesmo prevenir disputas na sociedade. Nós os denominamos “o enfoque do acesso à justiça” por sua abrangência. Seu método não consiste em abandonar as técnicas das duas primeiras ondas de reforma, mas em tratá-las como apenas algumas de uma série de possibilidades para melhorar o acesso[36]”
Assim, é na onda em comento onde foram realizados, juntamente com a preocupação de procurar mecanismos capazes de tornar o processo mais célere, estudos mais aprofundados em relação às formas de resolução extrajudicial de conflitos.
Diante dessas considerações, passemos a analisar a Defensoria Pública, instituição que pode colaborar com as 3(três) ondas renovatórias aqui mencionadas.
2. Defensoria Pública
2.1 Introito
A Defensoria Pública está prevista na Constituição nos seguintes termos:
“Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.”
Desse modo, conforme se percebe, a Defensoria Pública é responsável pela tutela jurídica dos mais necessitados, em todas as esferas, judicial extrajudicial, de forma individual ou coletiva.
Passemos a analisar as atribuições do órgão defensoria nos tópicos seguintes.
2.2 Atribuições da defensoria pública na esfera judicial
Após o advento da Lei Complementar número 132/09, a Lei Complementar 80/94 passou a prever de forma expressa, em seu artigo 4º, uma série de atribuições para a Defensoria Pública garantir o efetivo acesso à justiça.
Os incisos I,V, VII, IX, XV e XIX do dispositivo legal em comento demonstram ter a Defensoria Pública atuação absolutamente completa em todos os tipos de demandas judiciais, sejam elas individuais ou coletivas, sejam elas ordinárias, sumárias ou sumaríssimas; assim como em todo e qualquer ramo do direito (penal, cível, administrativo, eleitoral, trabalhista e tributário, dentre outros).
É atribuição do Órgão Defensorial defender os interesses de pessoas físicas, bem como jurídicas, com a possibilidade do ajuizamento, por exemplo, do hábeas corpus, do hábeas data, do mandado de segurança, de todos os recursos previstos em lei, da ação rescisória, da revisão criminal, da Ação Civil Pública, ou seja, de todo remédio processual passível de atingir os interesses dos necessitados.
Existe uma discussão, fomentada por interesses meramente corporativas do Ministério Público, acerca da constitucionalidade da legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de Ação Civil Pública-ACP.
Frise-se que a referida discussão é absolutamente desvirtuada. Explicando: a Ação Civil Pública não é um poder dado a determinado ente, trata-se apenas de mais um instrumento de ordem processual à disposição dos operadores de direito com o objetivo de garantir acesso ao Poder Judiciário, assim como foi mencionado pelo saudoso Defensor Público Federal Paulo Alfredo Unes Pereira, em palestra proferida no dia 19/08/2008, no Curso de Formação para ingresso na Carreira de Defensor Público da União.[37]
A própria Constituição da República de 1988, no parágrafo 1º do seu artigo 129, inciso III, que prevê a legitimidade do parquet para propor ACP, afirma o seguinte: “A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei”.
Por uma questão de ordem prática, o referido instrumento não poderia ser ofertado aos advogados privados. Ora, quem pagaria os honorários dos mesmos? Todos os beneficiados? Entretanto, em se tratando de órgão público ou de caráter público, como as associações, não há porque haver qualquer tipo de limitação.
No caso da Defensoria Pública, seja ela em sua ramificação estadual ou em sua ramificação federal, a questão sempre foi muito simples de compreender: a referida instituição jurídica defende os necessitados; assim, a referida ação coletiva pode ser utilizada pelo Órgão Defensorial quando os interesses dos seus tutelados de alguma forma, mesmo indiretamente, possam estar em jogo.
Foi o entendimento supracitado o adotado pela Lei Complementar 80/94, com redação dada pela Lei Complementar 132/09, ao trazer o seguinte condicionamento para a propositura de ACP pela Defensoria Pública: “quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes”.
Assim, basta um hipossuficiente poder ser beneficiado e já existirá a referida legitimidade. Os exemplos também são infinitos, como a possibilidade de entrar com uma ação coletiva requerendo o recall de um carro de luxo quando houver a falha de uma peça passível de causar acidentes aos transeuntes.
Ademais, é de bom alvitre lembrar o conceito amplo de necessitado dado por alguns autores (o hipossuficiente organizacional ou social), conforme já mencionado anteriormente nesta mesmo obra.
Interessante também frisar a atuação da Defensoria Pública nos processos criminais visando garantir a ampla defesa e o contraditório.[38] Na seara penal, assim como acontece, como regra, no âmbito civil e diferentemente do que acontece na justiça laboral, a defesa só pode ser realizada por advogado ou por um Defensor Público, de modo que as partes processuais não têm capacidade postulatória. Cabe aos Defensores Públicos, estaduais, federais ou distritais, a depender da natureza do crime praticado, prestarem a assistência jurídica gratuita no âmbito criminal.
A peculiaridade no presente caso é que no processo penal brasileiro o direito de defesa é indisponível, de modo a não haver o que se falar em efeitos da revelia, conforme norma que se extrai do artigo 261 do Código de Processo Penal, in verbis: “Art. 261. Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”.
Nesse sentido, afirma Tourinho Filho:
Aliás, em todo processo de tipo acusatório, como o nosso, vigora esse princípio, segundo o qual o acusado, isto é, a pessoa em relação à qual se propõe a ação penal, goza de direito “primário e absoluto” da defesa. O réu deve conhecer a acusação que se lhe imputa para poder contrariá-la, evitando, assim, possa ser condenado sem ser ouvido.[39](Grifos do Autor)
O STF, por seu turno, editou a Súmula 523 com o seguinte teor: “No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova do prejuízo para o réu”.
Frise-se, ainda, que o entendimento ora exposto decorre também do previsto no Pacto de San Jose da Costa Rica, que foi devidamente ratificado pelo Brasil em 1992, ao afirmar ser “direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor”.
Desse modo, caso a parte intimada não ofereça defesa em um processo penal, caberá à Defensoria Pública, independentemente da condição econômica do réu, apresentar a defesa cabível, sob pena de nulidade.
Existe, ainda, uma possibilidade aparentemente curiosa, prevista no Código de Processo Penal, qual seja: a Defensoria Pública estar no polo ativo(acusação), ao lado do Ministério Público, em um processo criminal, quando atua nas ações penais privadas e subsidiárias da pública.
Na esfera cível individual a atuação prevista em lei da Defensoria Pública é a mais ampla possível, com plena atuação no Judiciário Comum, nas instâncias ordinárias, nos juizados, perante os juízes de primeiro grau, bem como todos os tribunais. O mesmo acontecendo perante o Judiciário Federal, o Judiciário Trabalhista, assim como o Eleitoral.
De fato, em algumas situações a presença de um advogado ou defensor público é dispensada pela lei, como, por exemplo, nas causas trabalhistas, em face do criticado jus postulandi. Também há dispensabilidade da presença de um causídico nas causas da competência dos juizados especiais estaduais até vinte salários mínimos, bem como dos juizados federais. Entretanto, mesmo nos casos onde o advogado é dispensado, é um direito das partes ser assistido por um advogado ou, no caso de ser hipossuficiente, por um Defensor Público quando assim for do seu interesse, até mesmo porque a opção por um profissional do direito é uma garantia de uma defesa técnica e, naturalmente, mais qualificada.
No âmbito do processo administrativo, o Supremo Tribunal Federal-STF editou a súmula vinculante número cinco com o seguinte teor: “a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”.
A constitucionalidade da súmula acima mencionada é muito duvidosa, entretanto a regra que se tira da mesma é a seguinte: caso a parte tenha optado por não constituir advogado ou defensor público, o processo não será nulo. Porém, na eventualidade da parte ter optado por um causídico e este direito lhe tiver sido negado, o processo será nulo por ofensa ao inciso LV da Constituição da República, que assegura o contraditório e a ampla defesa tanto no âmbito do processo judicial como no âmbito do processo administrativo.
Enfim, com uma Defensoria Pública devidamente estruturada, assim como já vem acontecendo em alguns estados-membros, como o Rio de Janeiro[40], a máxima Cura pauperibus clausa est (O tribunal está fechado para os pobres)[41] não terá mais respaldo no seio da sociedade brasileira.
2.3 Atribuições da defensoria na esfera extrajudicial
O inciso II do artigo 4º da Lei Complementar número 80/94 deixa bem claro ser uma prioridade da Defensoria Pública a resolução extrajudicial dos conflitos. O referido dispositivo legal de antemão consolida dois entendimentos: o da importância da resolução dos conflitos por outras vias além do Poder Judiciário e o poder-dever do Órgão Defensorial de tentar resolver os conflitos de forma amigável, antes do ajuizamento de qualquer procedimento no âmbito judicial.
Várias são as possíveis vantagens da solução extrajudicial dos conflitos, tais como: a diminuição da quantidade de processos; um Poder Judiciário mais “leve”, ou seja: com menos processos; uma celeridade maior nos demais feitos judiciais de modo a colaborar, inclusive, com o direito fundamental à razoável duração do processo; uma solução rápida e definitiva das lides.
A última vantagem merece uma explicação mais aprofundada. Quando uma pessoa consegue uma liminar antecipatória em um processo, em um primeiro momento já começa a usufruir determinado bem da vida, mas o faz de forma precária, na condição de sub judice.
Quando o conflito é resolvido pela via administrativa, a situação já se torna definitiva de plano, afastando eventual insegurança jurídica.
Além disso, com uma lide resolvida de imediato, diminuem as possibilidades de expansão do dano. Melhor explicando: uma situação que é apenas um mero dissabor pode acabar virando um dano moral com o decorrer das discussões.
É fato que, na atualidade, boa parte das ações judiciais pede danos morais, de modo que uma atuação prévia extrajudicial pode acalmar os ânimos. A postura de um Defensor Público pode servir para as partes se entenderem, até mesmo sem precisar de qualquer valor pecuniário a título de dano moral.
Neste sentido, lecionam as Defensoras Públicas e Professoras Cinthia Robert e Elida Séguin:
Assim, ao atuar dentro – e atém mesmo fora – de sua designação o Defensor Público possibilita que o futuro jurisidicionado conheça o pretenso direito que possa ter. Dizemos futuro jurisdicionado em obediência ao Princípio da Demanda insculpido no artigo 2º do CPC, considerando ainda que na maioria das vezes não chega ao Estado juiz grande parte dos conflitos pré-processuais já que dentre as funções da Defensoria Pública está conciliar as partes envolvidas. O Defensor Público – verdadeiro Ombudsman – dá Acesso ao Direito e permite Acesso aos Tribunais.[42]
Na primeira parte do inciso I, bem como no inciso III, do mesmo artigo 4º, existem outros mecanismos de resolução extrajudicial dos conflitos, quais sejam: a mera orientação e a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico.
Quando um cidadão procura a Defensoria Pública o mesmo não está apenas em busca de um bem da vida, mas, muitas vezes também, ou mesmo tão-somente, em busca do conhecimento dos seus direitos.
Em muitas situações o hipossuficiente procura o Defensor Público acreditando ter determinado direito e acaba sendo convencido por aquele de não estar com a razão, de modo a ser evitada uma demanda judicial inútil. Assim, o cidadão tem acesso à justiça, obtém satisfação e o Poder Judiciário fica menos sobrecarregado.
Em outras situações, não fica o chamado assistido satisfeito com a explicação fornecida e, mesmo desprovido de direito, insiste na propositura da demanda. Diante dessa situação, fica a dúvida: estaria o Defensor Público obrigado a propor a demanda?
A resposta é não. O inciso I do artigo 43, o Inciso I do artigo 89 e Inciso I do artigo 127, todos da Lei Complementar número 80/94, preveem a independência funcional, respectivamente, do Defensor Público Federal, do Defensor Público Distrital e do Defensor Público Estadual, estando os mesmos atrelados, tão-somente, aos mandamentos da Constituição, das leis, bem como às suas consciências.
O artigo 44, XII, da Lei Complementar 80/94 (dispositivo referente à Defensoria Pública da União – DPU, com redação repetida no inciso XII do artigo 89 e VII do artigo 128, referentes respectivamente às Defensorias Distrital e Estaduais) prevê o seguinte:
Art. 44. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública da União:
XII - deixar de patrocinar ação, quando ela for manifestamente incabível ou inconveniente aos interesses da parte sob seu patrocínio, comunicando o fato ao Defensor PúblicoGeral, com as razões de seu proceder;
Desse modo, com base em sua independência funcional, pode o Defensor Público deixar de patrocinar ações em duas situações, conforme será analisado a partir de agora.
Quanto à primeira delas, ser manifestamente incabível, o doutrinador e Defensor Público Federal Frederico Rodrigues Viana de Lima comenta o seguinte:
“Na primeira hipótese, evita-se que se ingresse desnecessariamente com demanda da qual se sabe, de antemão, que culminará com resultado infrutífero. Inibem-se pretensões aventureiras e infundadas, e que, em última análise, poderiam conduzir a litigância de má fé.”[43]
Assiste razão ao doutrinador acima mencionado, não entrar com a ação em caso infundados é uma das mais brilhantes formas de colaborar com o acesso à justiça ou com uma ordem jurídica mais justa.
As vantagens para o assistido são evidentes: evita-se a criação de falsas esperanças e o risco de uma condenação pecuniária por litigância de má-fé. As vantagens para a sociedade são tão importantes quanto: diminui-se o número de ações e, em consequência, o excessivo volume de trabalho das varas judiciais.
No entanto, é importante frisar não ser possível ao Defensor deixar de entrar com a demanda judicial em face de mera dúvida quanto ao direito do assistido, pois não tem o referido profissional, salvo se investido na função de árbitro, o poder de dirimir dúvidas, ou seja: de dizer o direito(jurisdição). Em verdade, deve existir convicção quanto à inviabilidade da pretensão. Nesse sentido, afirma o Defensor Público Estadual do Rio de Janeiro e Professor Cleber Francisco Alves:
“De acordo com as normas legais vigentes no Brasil, somente em casos, digamos, “teratológicos” será possível ao Defensor Público recusar-se a prestar a assistência jurídica - e conseqüentemente deixar de propor medida judicial pretendida – que lhe seja solicitada por um cidadão que se qualifique pessoalmente como destinatário do serviço.”
A segunda hipótese legal onde há permissão para a não propositura de demanda judicial, quando solicitada, é na hipótese da mesma ser inconveniente ao interesse da parte. Aqui a importância da “não atuação” da Defensoria Pública é também de grande relevância. O termo está entre aspas por um único motivo: em verdade, o Defensor Público não está postulando em juízo, porém está atuando de forma a proteger o próprio assistido, como, por exemplo, quando esse último pretende abrir mão de um direito indisponível.
Além disso, a segunda hipótese também colabora com a diminuição do número de demandas perante o Poder Judiciário e, em consequência, com toda a sociedade, pois os demais litigantes, os que necessariamente ou preferencialmente procuram o referido poder, poderão usufruir das benesses inerentes a um número menor de feitos.
Em suma, não há como o Defensor Público agir de forma arbitrária ou macular um erro profissional (como perder um prazo) quando o mesmo não entrar com determinada demanda, haja vista a obrigatoriedade de comunicar, de forma fundamentada, ao DefensorPúblico Geral a sua decisão.
A medida acima mencionada não diminui a autonomia funcional do Defensor Público, em face da impossibilidade do DefensorGeral obrigá-lo a patrocinar a ação, porém traz a garantia para o assistido pelo Órgão Defensorial da lisura do procedimento adotado e do grau de comprometimento do profissional com o seu labor social.
Outra atribuição da Defensoria Pública extrajudicial de extrema importância é promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico. Atuação possível de ser realizada por meio de palestras, congressos e elaboração e feitura de panfletos, cartazes e manuais explicativos de direito. Assim, a Defensoria Pública colabora com o a conscientização e com o amadurecimento da sociedade, o que também pode evitar lides.
Por fim, também existe previsão de atuação do Órgão Defensorial em procedimentos administrativos, inclusive no próprio inquérito policial, assegurando por completo, o previsto no inciso LV da Constituição da República: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.” (Grifos de Agora).
2.4 Atribuições da Defensoria Pública na tutela dos direitos humanos
A atuação da Defensoria Pública em prol dos direitos humanos não se resume à existência de conflitos entres as pessoas.
O inciso XVII do artigo 4º da mesma Lei Orgânica da Defensoria Pública prevê a atuação do Órgão Defensorial dentro dos estabelecimentos policias, penitenciários e de internação de adolescente. O referido dispositivo legal finalmente deu a importância devida à atuação da referida instituição dentro dos estabelecimentos prisionais.
Trata-se de uma função predominantemente fiscalizadora e totalmente em consonância com a função defensorial de atuar em prol dos direitos humanos e em benefício dos necessitados, como é o caso da grande maioria dos detentos brasileiros.
A mesma lógica é encontrada no inciso XVIII do mesmo artigo ao falar da atuação da Defensoria na preservação e reparação das vítimas de tortura, abusos sexuais e descriminação. O referido inciso fala, ainda, em atendimento interdisciplinar, o que gera a necessidade da existência de outros profissionais dentro da instituição em comento, como psicólogos, sociólogos e assistentes sociais, além dos profissionais de direito.
Existindo qualquer conselho cuja temática seja a preservação dos direitos acima, caberá, à luz do inciso XX do mesmo artigo, a participação da Defensoria Pública.
Assim, a assistência prestada pela Defensoria Pública vai além da existência dos conflitos, sendo o Defensor Público uma figura de grande relevância dentro da sociedade, pois deve estar presente em todas as esferas sociais em defesa dos necessitados e em busca da efetivação dos direitos humanos.
2.5 Princípio do defensor natural
No artigo 4º-A da Lei Complementar número 80 de 1994, em seu inciso IV, está previsto como direito dos assistidos pela Defensoria Pública: “o patrocínio de seus direitos e interesses pelo defensor natural”.
Em relação ao princípio do Juiz Natural, o Membro do Ministério Público Federal Roberto Moreira de Almeida afirma: “Cada pessoa tem o direito constitucional de ser submetida a um julgamento isento, imparcial e emanado de um magistrado não suspeito e não impedido e regularmente investido na função jurisdicional”[45]
Desse modo, em analogia, pode-se dizer de antemão ser uma das facetas do Princípio do Defensor Natural o direito de ser assistido por um profissional isento, sem qualquer impedimento ou suspeição e que exerce o cargo nos termos da lei, ou seja: em decorrência de provimento decorrente da aprovação em concurso público, respeitada a ordem de classificação.
Entretanto, o Princípio do Defensor Natural, assim como acontece com o Princípio do Juiz Natural, tem outra faceta, qual seja: o profissional não pode ser escolhido aleatoriamente, nem pelo Poder Judiciário ou pela Defensoria Pública, nem muito menos pela parte envolvida no julgamento ou beneficiária da assistência jurídica gratuita, de modo que a “designação para atuar esteja previamente definida com base em normas objetivas.”[46]
Nesse sentido, afirma Frederico Lima:
“A assistência jurídica integral e gratuita promovida pela Defensoria Pública deve recair sobre um Defensor específico, escolhido segundo as regras internas de distribuição. É incabível a opção por este ou aquele Defensor, a partir de gostos pessoais ou de interesses políticos.”[47]
Desse modo, o beneficiário da assistência jurídica gratuita terá a segurança de não ser defendido por um profissional escolhido aleatoriamente ou até mesmo arbitrariamente, porém não poderá também escolher o profissional de sua preferência.
2.6 Espécies de Defensoria Pública
Pode-se falar, como consequência do princípio da unidade, existir apenas um Órgão Defensorial, no caso: a Defensoria Pública do Brasil. Entretanto, a Lei Complementar número 80/94 menciona três espécies, ou subespécies, de Defensoria Publica, quais sejam: as estaduais; a distrital e da União.
As Defensorias Estaduais têm a função de atuar perante o Poder Judiciário Estadual em todas as suas instâncias, exceto nas causas eleitorais.
A Defensoria Pública Distrital tem a função de atuar perante o Poder Judiciário do Distrito Federal e Territórios, salvo, assim como acontece com as Defensorias Estaduais, nas causas eleitorais.
Finalmente, cabe à Defensoria Pública da União, por meio dos seus Defensores Públicos Federais, atuar perante o Judiciário Federal, o Judiciário Militar da União, o Judiciário Trabalhista, bem como perante os tribunais e juízes eleitorais.
Desse modo, a Defensoria Pública da União, objeto mais aprofundado da presente obra, atua nas causas onde a União, as Autarquias Federais, as Fundações Públicas Federais e as Empresas Públicas Federais estão direta ou até mesmo indiretamente envolvidas.
Conclusão e Expectativas da Defensoria Pública
O presente estudo visou demonstrar como Defensoria Pública, como expressão do modelo de assistência jurídica gratuita adotado no Brasil, é um instrumento de acesso à justiça.
Percebeu-se a existência de três espécies de Defensoria Pública, qual seja: a Defensoria Pública da União, as Defensorias Públicas dos estados-membros e a Defensoria Pública do Distrito Federal.
O modelo adotado de assistência jurídica gratuita adotado pelo Brasil, de profissionais do direito contratados de forma efetiva pelo Estado, também chamado de staff model, tem as suas falhas, porém tem algumas vantagens, tais como: o estímulo para a resolução extrajudicial de conflitos, uma atuação judicial com mais compromisso em face da exclusividade no exercício da função e uma atuação em prol dos Direitos Humanos.
Em verdade, as críticas atualmente realizadas à Defensoria Pública não se dão primordialmente em relação ao modelo adotado e sim ao fato dos governantes não valorizarem a instituição Defensoria Pública como deveriam, o que acaba gerando uma demandada nos quadros e, até mesmo, uma falta de compromisso por parte de alguns profissionais, além de uma grande dificuldade para exercer a profissão em face da falta de estrutura de trabalho.
Soma-se a isso o fato da Defensoria Pública ainda não estar devidamente instalada em todo o Brasil. Dentro desse Contexto, o Ex-Defensor Público-Geral Federal José Rômulo Plácido Sales afirma: “apenas 37% das Unidades Jurisdicionais no país dispõe de pelo menos um órgão da Defensoria Pública para dar atendimento à população carente. Em média, cada defensor recebeu 1.689 pessoas em seus gabinetes no ano de 2005.”[48]
Apesar do levantamento em questão ter mais de 10(dez) anos, a realidade acima persiste até a presente data.
Assim, urge a necessidade de valorização da Defensoria Pública no Brasil, o que pode colaborar com as três ondas renovatórias de Capelletti, uma vez que o Órgão Defensorial garante o acesso à assistência jurídica gratuita, viabiliza o manejo de ações coletivas em prol dos mais necessitados e também é um instrumento para a resolução extrajudicial dos conflitos.
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