Primeiras impressões a respeito da Medida Provisória 948

Segurança jurídica para a realização de cancelamentos, reembolsos e remarcações; inconstitucionalidade da não reparação de danos

Leia nesta página:

O presente artigo científico apresenta uma análise geral da Medida Provisória 948, que trata sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura em razão do estado de calamidade causado pela pandemia da Covid-19.

     O Governo Federal publicou na última quarta-feira – 08 de abril de 2020 – a Medida Provisória (MP) n. 948, a qual trata especificamente de um tema que tem impactado de forma avassaladora agências de viagens neste período de pandemia da Covid-19: o cancelamento, remarcação e o reembolso de reservas.

     As MPs são uma espécie legislativa prevista na Constituição Federal (CRFB), de competência exclusiva do Presidente da República, que têm a natureza de uma lei sob condição resolutiva, isto é, ela surte efeitos de imediato, até que o Congresso Nacional a ratifique ou desaprove.

     A CRFB exige que haja relevância e urgência para que sejam editadas MPs. No atual cenário é possível se afirmar que o governo tardou em atuar para regular a temática. Isso porque os impactos que o fechamento de fronteiras internacionais e as medidas de isolamento social causaram no trade turístico foram apenas a complementação dos reflexos que companhias aéreas, hotéis e agências de viagens já vinham sentindo desde que o Coronavírus começou a se propagar na China.

     Basta verificar os números do mercado financeiro, que em fevereiro já teve as ações de companhias do setor turístico com as maiores quedas, o que prosseguiu no mês de março. Os reflexos também já foram sentidos no caixa real das empresas.

     Se é fato que o turismo terá perdas neste período, pela própria natureza dos serviços prestados, os impactos estão sendo ainda mais agravados pelas intervenções diretas que têm sido feitas pelo Estado. Eram sim necessárias e urgentes intervenções para diminuir as perdas. A MP traz maior segurança jurídica ao setor, mas não deixa de fornecer debates sobre sua constitucionalidade.

     A impossibilidade de realização de viagens causou enorme procura dos clientes para o adiamento ou cancelamento dos pacotes de viagem. Como cada empresa do setor possui uma política de reembolso/cancelamento, os consumidores buscaram canais de proteção em busca de orientações. As recomendações obtidas não consideravam a realidade completamente excepcional pela qual o setor turístico estava passando e, se levadas à risca, poderiam levar muitas empresas à quebra.

     Os Procons e até mesmo uma Lei Estadual do Rio de Janeiro (Lei 8767/2020) estavam impondo que as agencias, de forma imediata e integral, ressarcissem os valores pagos pelos consumidores sob a justificativa de que os cancelamentos eram causados por casos fortuitos/força maior.

     Ocorre que tal ressarcimento imediato é faticamente impossível, porque os valores pagos não ficam retidos no caixa de apenas uma pessoa jurídica. A Lei Nacional do Turismo (11.771/2008) define, por exemplo, agências de turismo como as pessoas jurídicas que intermedeiam a aquisição de produtos turísticos entre os prestadores e os consumidores. Pelo seu serviço elas recebem uma comissão em cima do valor repassado aos fornecedores, não ficando com o total da quantia envolvida no negócio realizado.

     Tais orientações, que se tornaram norma legal no Estado do Rio de Janeiro, são decorrência de uma lacuna gerada pela forma federativa de Estado adotada pelo país. A CRFB reconhece a autonomia de União, Estados, Municípios e o Distrito federal, indicando qual a competência de atuação de cada um deles, bem como sobre o que cada um pode legislar, sem que haja hierarquia entre normas.

     Pois bem, de acordo com a CRFB cabe aos Estados e à União legislarem sobre consumo[1] (o que engloba o ressarcimento), com a União tendo a incumbência de trazer normas gerais e os Estados podendo suplementá-las. A norma da União é o conhecido Código de Defesa do Consumidor (CDC) o qual não traz de forma específica disposições a respeito de como deve ser feito o reembolso de valores relativos a cancelamentos de serviços[2].

     É dessa questionada omissão que surgiram as orientações de órgãos de defesa do consumidor e de onde decorreu a brecha para que o Estado do Rio de Janeiro legislasse. Apesar de ser uma forma de integração do ordenamento jurídico, na prática essa permissão acarretou desequilíbrio nas relações econômicas, desfavorecendo empresas do setor turístico do Estado do Rio de Janeiro.

     Considerou-se apenas a ótica dos consumidores, que são o lado mais vulnerável da relação e que devem sim serem protegidos, contudo, a situação fática decorrente do caso fortuito/força maior impõe uma análise mais acurada, que não foi alvo de consideração pelo legislador fluminense e nem pelos Procons. Não se pode intervir de forma desarrazoada no negócio dos empresários, sob pena de ferir a livre iniciativa e inviabilizar a realização da atividade econômica.

     A MP 948 supriu essa lacuna e retirou a possibilidade de legislação em contrário por parte dos Estados[3]. Hoje está vem vigor, pelo período em que durar o estado de calamidade decorrente do Coronavírus, norma geral que trata sobre como deve ser feito o cancelamento de serviços, reservas e eventos. Os detalhes a respeito dos cancelamentos, ressarcimentos e reembolsos não são o objeto deste estudo, para fins desta análise vamos nos limitar a comentar sua constitucionalidade.

    Já despontam entre os especialistas em direito do consumidor[4] questionamentos sobre a MP, o que pode trazer preocupação sobre a possibilidade de ela ser suspensa pelo Supremo Tribunal Federal[5].

     O que se destaca como possível afronta ao texto constitucional é o artigo 5º da MP, o qual não permite condenações de pagamentos de danos morais, multas ou penalidades administrativas por parte dos fornecedores. Nisso sim devem os empresários do trade turístico ficar atentos, porque a vedação vai de encontro ao direito que todos têm de serem indenizados por danos sofridos[6] e é bastante passível de ser declarada nula.

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     Os consumidores podem sim pleitear, por exemplo, condenação da agência de viagens por danos morais que tenha sofrido durante a tratativa para o cancelamento de um pacote de viagem. O dano não é consequência direta da pandemia, decorre de eventual ato ilícito praticado pela agência, e por isso deve ser analisado por um juiz em ação própria. Conferir um salvo conduto para ofensas a direitos do consumidor, impedindo que eles busquem reparação no Judiciário, é medida desarrazoada trazida pela MP.

    Contudo, quanto às políticas de reembolso, remarcação e crédito, a nosso sentir não se afiguram como desarrazoadas e nem ofendem os direitos do consumidor. Trata-se de uma ponderação entre o direito que possui o lado menos favorecido da relação de consumo, com a livre iniciativa e outros princípios que regem a ordem econômica, dentre eles a função social da empresa. A manutenção do funcionamento de agências de viagens, por exemplo, gera renda e emprego, bem como arrecadação por parte do Estado com os tributos gerados, além do desenvolvimento de todo o setor turístico.

     Sopesando essa interferência pontual com as possíveis consequências que a não atuação por parte da União poderia causar, seja com a aceitação da interpretação que vinha sendo imposta por órgãos protetivos dos consumidores, seja com leis estaduais, verifica-se que a maior parte do texto MP 948 – se considerada em um viés conglobante – é constitucional.

     Deve-se aguardar a manifestação do Congresso Nacional sobre a conversão dela em lei, mas até lá suas disposições estão em pleno vigor e já podem ser utilizadas para negociação com os clientes. Se algo mudar, os empresários não ficarão desassistidos, pois cabe ao Congresso ditar como as relações que foram travadas durante a vigência da MP devem ser tratadas e, se não o fizer, conforme dispõe a Constituição, vale o texto da MP.

 


[1] Artigo 24, V e VIII.

[2] Defendemos que há sim no CDC disposições sobre o tema: o artigo 53 e sua interpretação dada pelo verbete de número 543 da súmula do Superior Tribunal de Justiça falam de restituição imediata para resolução causada por culpa do fornecedor. O que se tem no cenário atual é uma desistência por parte do consumidor ou a impossibilidade da realização da viagem em razão do caso fortuito/força maior, o que isenta o fornecedor de culpa e, de forma indireta, não obriga o ressarcimento integral e imediato.

[3] Importante destacar que ela não revoga leis Estaduais. Estas apenas deixam de ser aplicadas naquilo que afrontarem a norma geral da União.

[4] Flávio Tartuce e Landolfo Andrade questionaram, por meio de suas redes sociais, a validade de pelo menos um artigo em específico.

[5] Suspensão simular ocorreu com a MP 936, que trata da redução das jornadas de trabalho e salários no período da pandemia.

[6] CRFB, artigo 5º, X.

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Sobre os autores
Daniel Rodrigues Thomazelli

Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Professor de Direito Empresarial da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Direito pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Graduado em Direito com Láurea Acadêmica pela Universidade Federal Fluminense.

Laísa Galvão de Lima

Turismóloga. MBA em Gestão de Empreendimentos Turísticos pela Universidade Federal Fluminense. Consultora de Viagens.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Texto publicado originalmente no Panrotas: https://www.panrotas.com.br/mercado/opiniao/2020/04/advogado-e-turismologa-analisam-as-medidas-da-mp-948_172717.html

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