A ilegalidade da Súmula 51 do TJ/SC

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30/04/2020 às 21:43
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3. A Ilegalidade da Súmula nº 51 do TJ/SC

“O pedido de justiça gratuita seguido do pagamento do preparo pelo recorrente é considerado ato incompatível com o interesse de recorrer, impossibilitando o conhecimento do recurso no ponto”. Findas as necessárias considerações, no primeiro capítulo, acerca do contexto e fundamentos que embasaram a orientação proposta na Súmula nº 51 do TJ/SC e, no segundo capítulo, o relato das positivas contribuições do CPC ao regramento e à ressignificação das hipóteses de concessão do benefício, avança-se à demonstração da ilegalidade do Enunciado, a partir do diagnóstico de insubsistência dos fundamentos jurídicos que o amparam, bem como das incoerências que dele resultam.

O exame dos precedentes que antecederam à cristalização da Súmula (Tabela 2) identificou dois eixos argumentativos centrais, a saber, (i) a tese de incompatibilidade entre o recolhimento do preparo e o pedido recursal à gratuidade, precipuamente alicerçada no instituto da preclusão lógica; e (ii) a alegação de renúncia tácita, complementar à tese de incompatibilidade, lastreada no art. 1.000, parágrafo único. Ambos os argumentos, todavia, sucumbem frente às inovações no regramento do benefício proporcionadas pelo CPC.

A preclusão lógica é instituto que obsta a prática de um ato incompatível com outro previamente adotado no processo (ROCHA, 2010, p. 82). Logo, classificar o recolhimento do preparo como ato incompatível com o pedido de concessão da gratuidade de justiça, por pressupor uma oposição diametral entre ambos os atos, realça o apego a uma ultrapassada concepção unitária do benefício, refletindo a incompatibilidade do Enunciado aos atributos de delimitação e fracionamento instituídos pelos §§5º e 6º do art. 98.

Note-se que, recolhido o depósito recursal, a única incompatibilidade processual oponível ao recorrente reside no pedido de isenção às custas do próprio recurso interposto (art. 98, §1º, VIII). Uma vez que, interposto o recurso, o recorrente permanece sujeito ao pagamento (i) integral e (ii) imediato de (iii) todas as demais espécies típicas e atípicas de despesas judiciais, a apreciação pelo órgão colegiado no sentido de concessão (i) percentual, (ii) parcelada ou (iii) seletiva do benefício demonstra-se inequivocamente útil ao recorrente35, não havendo de se falar em não conhecimento da matéria por falta de interesse recursal.

Pelas mesmas razões, tem-se por inaplicável a tese de irrestrita aceitação tácita (art. 1.00036) em desfavor do recorrente que se insurge contra o indeferimento do benefício da gratuidade de justiça e, ao mesmo tempo, promove o recolhimento do preparo recursal37. Em tal cenário, a aceitação tácita deve circunscrever-se à anuência da parte em arcar especificamente com as cutas do recurso interposto, em nada maculando seu interesse recursal em ver-se albergada pela concessão seletiva, percentual ou parcelada das demais espécies de despesas processuais. Ademais, convém salientar que a aceitação tácita é legalmente condicionada a “prática, sem nenhuma reserva, de ato incompatível com a vontade de recorrer.” (art. 1.000, parágrafo único), hipótese não verificada, por óbvio, quando o recorrente expressamente impugna a decisão que indeferiu o benefício.

Pontua-se, ainda, que a tese de preclusão lógica tampouco encontra amparo no art. 99, §7º38, uma vez que, embora prevista a prerrogativa de dispensa do preparo no pedido recursal à gratuidade de justiça, a opção do recorrente pela não utilização de tal prerrogativa, seja em prol da garantia de celeridade na apreciação do recurso39, seja por compreender que o depósito recursal não figura entre as espécies de despesa a que se busca isenção, não deve se transmudar em óbice ao conhecimento do recurso – posicionamento particularmente incoerente quando constatado que, para além da inexistência de prejuízos à parte contrária, o único beneficiado pelo recolhimento do preparo é, precisamente, o Estado-Juiz.

O recolhimento do preparo, à luz dos núcleos argumentativos de preclusão lógica e renúncia tácita, possibilita ao julgador concluir tão somente pela capacidade financeira da parte em arcar, especificamente, com as custas recursais. Poder-se-ia, ainda, ir além, fixando-se o valor de tais custas como vetor de avaliação na concessão do benefício, presumindo-se a capacidade da parte em arcar integralmente com as despesas de valor inferior ao preparo, ou, ainda, adotando-se o valor deste como parâmetro da definição do número de parcelas a serem fixadas ao pagamento de despesas de maior monta.

O que o sistema processual vigente não admite, porquanto eivado de flagrante incoerência, é que a manifestação da capacidade em arcar com apenas uma espécie de despesa processual seja utilizada pelo julgador como subterfúgio para sequer conhecer do pedido à isenção ao amplo espectro de despesas remanescentes, tal qual propiciado pela aplicação da Súmula nº 51 do TJ/SC.

O cerceamento do direito de acesso à justiça em igualdade de condições é realçado nas decisões em que, mesmo consignando, de forma expressa, contundentes indícios de hipossuficiência financeira apresentados pela parte, a apreciação do pedido recursal à concessão do benefício é afastada pela incidência da Súmula nº 51 do TJ/SC:

Trecho do voto relator:

RELATÓRIO (...)

Subsidiariamente, requer a minoração do quantum indenizatório arbitrado a título de danos morais e estéticos, alegando que "trabalha como pedreiro tendo renda e patrimônio muito modesto, que mal dá para o sustento de sua família" (fl. 405). Por fim, pleiteia a concessão do benefício da justiça gratuita, colacionando documentos para comprovação da suposta hipossuficiência econômica (fls. 409-416). (...)

VOTO (...)

Requer o apelante, inicialmente, a concessão do benefício da justiça gratuita, ao argumento de não possuir condições de suportar as despesas processuais sem prejuízo do seu sustento e de sua família, colacionado documentos às fls. 409-146 para embasar o pedido (declaração de hipossuficiência, certidão de propriedade, certidão de veículos, comprovante de residência, entre outros).

Ocorre que, ao protocolar a presente irresignação, o insurgente efetuou o pagamento do preparo recursal (fls. 407-408), o que evidencia a prática de ato incompatível com o fundamento do pleito, o qual pressupõe a hipossuficiência econômico-financeira do requerente.

Sobre o tema, o Órgão Especial deste Tribunal de Justiça assentou por meio do verbete sumular 51 que "o pedido de justiça gratuita seguido do pagamento do preparo pelo recorrente é considerado ato incompatível com o interesse de recorrer, impossibilitando o conhecimento do recurso no ponto", ou seja, na parte em que se requer o benefício. (...)

Desse modo, a pretensão não merece ser conhecida.

(TJ-SC - AC: 00008748720138240065 São José do Cedro 0000874-87.2013.8.24.0065, Relator: Luiz Felipe Schuch, Data de Julgamento: 16/05/2019, Sétima Câmara de Direito Civil)

Trecho do voto relator:

RELATÓRIO

Trata-se de agravo de instrumento interposto por Esther Celina Dalmagro de Luca em face de decisão que (...) indeferiu o pedido de gratuidade de justiça formulado pela agravante.

Em suas razões, disse ter juntado aos autos declaração de hipossuficiência, corroborada pelo demonstrativo de seus rendimentos, inferiores a 2 salários mínimos mensais, os quais são insuficientes a fazer frente a suas despesas básicas.

VOTO

Cuida-se de agravo de instrumento interposto contra decisão que indeferiu pedido de gratuidade da justiça.

Todavia, o recurso não merece ser conhecido.

Verifica-se que a recorrente incide em comportamento processual contraditório, o qual é vedado pelo ordenamento jurídico. Isso porque, embora tenha interposto o presente recurso ao argumento de não possuir condições econômicas para arcar com as custas e despesas processuais, promoveu o recolhimento das custas iniciais, após o indeferimento da tutela recursal de urgência, conforme se pode averiguar às fls. 114-116 dos autos de origem.

Ou seja, ao praticar ato incompatível com a vontade de recorrer, a parte incidiu nos termos do art. 1.000, caput e parágrafo único, do CPC/2015, ocorrendo, portando, a preclusão lógica neste tema. (...)

A propósito, corroborando tal posicionamento, preconiza a Súmula n. 51, desta Corte de Justiça, in verbis: "O pedido de justiça gratuita seguido do pagamento do preparo pelo recorrente é considerado ato incompatível com o interesse de recorrer, impossibilitando o conhecimento do recurso no ponto".

Dessa feita, em razão da prática de ato incompatível com a vontade de recorrer, o presente agravo não pode ser conhecido.

(TJ-SC - AI: 40122188520198240000 São Miguel do Oeste 4012218-85.2019.8.24.0000, Relator: André Luiz Dacol, Data de Julgamento: 02/07/2019, Sexta Câmara de Direito Civil)

As decisões supramencionadas, embora resultem na sucumbência da garantia legal (art. 7º e art. 139, §1º) e constitucional (art. 5º, LXXIV, da CF) de isonomia processual frente a uma ultrapassada concepção da gratuidade de justiça, ainda não refletem, em sua inteireza, o modus operandi que se instaurou na Corte catarinense após o referendo da Súmula nº 51 do TJ/SC.

Isto porque, conquanto as referidas decisões, ao menos, mencionem as condições financeiras alegadas pelas partes aos autos, impera, por incidência do Enunciado, a regra de sequer verificar e/ou relatar os fundamentos e documentos apresentados pela parte recorrente à gratuidade de justiça quando essa, por ocasião do recurso, recolhe o preparo.

Valendo-se da plataforma de pesquisa disponibilizada pelo sítio eletrônico40 Jusbrasil41, foram pesquisados acórdãos por meio das palavras-chave (i) “Súmula 51”, isolada por aspas, e (ii) gratuidade de justiça, restringindo-se o âmbito de busca a julgados da Corte catarinense. Em todos os trinta resultados válidos42, o pedido recursal à justiça gratuita, por aplicabilidade da Súmula nº 51 do TJ/SC, não foi conhecido, sendo que, em 67% das decisões, sequer há menção aos fundamentos e documentos financeiros apresentados pelas partes, conforme delineado no gráfico abaixo e na Tabela 3 (Anexo).

Constata-se que a ampla projeção de que goza a Súmula nº 51 do TJ/SC, associada à conveniência de seu teor eminentemente defensivo, implica acelerada anulação de todo o avanço legislativo no regramento da gratuidade de justiça, favorecendo a replicação sistemática de decisões incoerentes que soterram as inovações consagradas pelos §§5º e 6º do art. 98.

Cabe pontuar que a força vinculante conferida à concepção unitária do benefício, a partir da cristalização de um entendimento tido por majoritário (art. 926, §1º), termina, de forma contraditória, por anular os esforços do próprio TJ/SC em conferir eficácia aos §§5º e 6º do art. 98, conforme orientação transmitida pelo Conselho de Magistratura da Corte aos magistrados e oficiais de justiça a ela vinculados:

RESOLUÇÃO CM N. 11. DE 12 DE NOVEMBRO DE 201843

Art. 1º Fica recomendado:

I - aos magistrados, quando da análise do pedido de gratuidade da justiça, observadas a natureza do pleito e a urgência da tutela jurisdicional requerida:

(...)

e) analisar a possibilidade de incidência das alternativas de deferimento parcial ou parcelado descritas nos §§ 5º e 6º do art. 98. do Código de Processo Civil.

II - aos oficiais de justiça, quando for o caso, por ocasião do cumprimento de mandados:

1. esclarecer à parte o alcance da gratuidade da justiça (incisos I a IX do § 1º do art. 98. do Código de Processo Civil), especialmente em relação aos honorários advocatícios, bem como a possibilidade de incidência das alternativas descritas nos termos dos §§ 5º e 6º do art. 98. do Código de Processo Civil; e (...)

Delineada essa breve digressão quanto à inconsistência entre normativos do próprio Tribunal, realça-se que, seja sob a interpretação extensiva do art. 13. da Lei nº 1.060/50, seja sob previsão expressa dos §§5º e 6º do art. 98, carece de sentido pressupor que o recolhimento do preparo afastaria o interesse da parte recorrente em ver-se albergada pela incidência, percentual ou total, do benefício da gratuidade nas outras inúmeras despesas processuais, tais como o custeio dos emolumentos cartoriais (art. 98, §1º, IX) ou a tradução juramentada de documentos (art. 98, §1º, VI).

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Impende reafirmar que, à luz das normas norteadoras do processo civil consagradas pelo CPC, é direito fundamental das partes, calcado no princípio da paridade de armas (art. 7º), precaver-se quanto à isenção, integral ou parcial (seletiva, percentual ou parcelada), das custas processuais inerentes ao acolhimento da pretensão formulada em Juízo. Se arguido em preliminar de apelação o direito à realização de prova pericial indeferida pelo Juízo a quo, não se pode questionar o interesse da parte em pleitear tanto a realização da perícia quanto a isenção ao respectivo custeio (art. 98, VI), ainda que, por exemplo, tenha-se recolhido o depósito recursal.

Nos casos de pronta concessão ao requerimento acostado à petição inicial, o cerceamento do direito à isonomia processual, patrocinado pela aplicação da Súmula nº 51, é igualmente observável, sendo verificado, inclusive, em julgado da Corte catarinense posterior à aprovação do Enunciado:

Trecho do voto relator:

RELATÓRIO

Trata-se de apelação cível interposta por Antonio Liebel em face de decisório prolatado pelo Juízo da 2ª Vara Cível da Comarca de Mafra que, nos autos do cumprimento de sentença manejado em face do espólio de Thereza Emília Liebl, reconheceu a ocorrência da prescrição intercorrente e extinguiu o processo, nos seguintes termos (fls. 112/113): (...)

A exigibilidade das despesas processuais e dos honorários advocatícios está suspensa com relação à(s) parte (s) ativa, durante o prazo extintivo de 5 (cinco) anos, em face da concessão dos benefícios da Gratuidade da Justiça, nos termos dos arts. 98. a 102 do CPC e da Lei 1.060/1950. (Trecho extraído da sentença e acostado ao relatório) (...)

DISPOSITIVO

Ante o exposto, com fulcro no art. 932, IV, c do CPC/15, 1) conheço do presente recurso e nego-lhe provimento, por estar o recurso em confronto com entendimento firmado no tema IAC 01, do STJ; 2) fixo honorários sucumbenciais recursais no valor de 2% (dois por cento) sobre o valor atualizado da causa em favor da apelada, com fulcro no art. 85, §§ 2º, 8º e 11, do CPC/15, na forma da fundamentação, deixando-se de suspender os encargos sucumbenciais pois o recolhimento do preparo recursal é ato incompatível com o deferimento adrede concedido (Súmula 51 do Órgão Especial do TJSC).

Custas pelo apelante. Intimem-se.

(TJ-SC - AC: 00001624419918240041 Mafra 0000162-44.1991.8.24.0041, Relator: Gerson Cherem II, Data de Julgamento: 30/08/2019, Primeira Câmara de Direito Civil)

O julgado supramencionado consiste, senão, manifesta teratologia referendada pela inteligência da Súmula nº 51 do TJ/SC, por meio da qual a gratuidade de justiça, previamente deferida, é integralmente afastada ao se constatar o recolhimento do preparo. Assim, tão somente em razão do recolhimento das custas recursais, a parte, antes contemplada pelo benefício em razão de comprovada hipossuficiência financeira, é submetida ao pronto custeio integral do processo, inclusive, honorários advocatícios de 12% sobre o valor atualizado (art. 85, §2º) de causa iniciada em 1991.

A desvirtuada concepção do benefício culmina em cenários nos quais o recolhimento do preparo pelo advogado resulta em presunção de capacidade financeira da parte (!). Não obstante a manifesta incompatibilidade de tal assertiva com o caráter personalíssimo e intransmissível do benefício (§§5º e 6º do art. 99), esse foi o entendimento adotado pela Corte catarinense em julgados destacados como predecessores44 da Súmula nº 51 do TJ/SC (vide Tabela 2):

Trecho do voto relator:

VOTO

1. Gratuidade da justiça

De início, os Apelantes informaram não terem condições financeiras de arcar com as despesas do processo e requereram a respectiva isenção, inclusive com a dispensa de recolhimento do preparo recursal.

Ao apreciar o pedido, a Magistrada de origem instou os Interessados para que evidenciassem a necessidade da benesse por eles postulada (fl. 411).

Os Apelantes discorreram, então, sobre suas situações patrimoniais e juntaram certidões emitidas pelas Serventias Extrajudiciais de Registro de Imóveis, as quais atestavam a inexistência de bens imóveis registrados em seus nomes (fls. 417-427).

Ao analisar os elementos colacionados, a Julgadora indeferiu-o, intimando os Insurgentes para recolherem o preparo (fl. 439). E contra essa decisão, os Recorrentes não se insurgiram.

Em seguida, aportou no feito petição informando que o Patrono dos Recorrentes, teria pago as custas recursais, atuando pro bono (fls. 441-443).

Assim, tem-se ante a prática de ato incompatível com o pleito de isenção das despesas do processo, ainda que pelo Advogado, por prejudicado o pedido em questão, de modo que dele não se conhece.

E, ante o preenchimento dos pressupostos de admissibilidade, conhece-se dos demais aspectos do Recurso.

(TJ-SC - AC: 00026134819948240005 Balneário Camboriú 0002613-48.1994.8.24.0005, Relator: Rosane Portella Wolff, Data de Julgamento: 22/11/2018, Primeira Câmara de Direito Civil)

Trecho do voto relator:

RELATÓRIO

(...) Sustenta, em suma, que: a) o recolhimento das custas judiciais não pode ser considerado contraditório com o pedido de concessão do benefício da Justiça Gratuita, uma vez que o pagamento foi realizado por seu advogado para evitar a extinção do feito; b) está suficientemente comprovada nos autos a sua hipossuficiência financeira; c) "se a qualquer tempo pode o magistrado revogar o benefício concedido, considerados os elementos apurados nos autos, certo é que também a qualquer tempo - no caso, supervenientemente - pode tê-lo por comprovado"; d) não foi intimado da decisão que indeferiu provisoriamente o benefício, não servindo a carga dos autos como ciência inequívoca; e) não tem conteúdo decisório o despacho que determinou o recolhimento das custas processuais (fl. 167), de forma que não pode ser ele tomado como um indeferimento definitivo do benefício da Justiça Gratuita; f) como não houve decisão definitiva sobre o pedido de concessão do benefício na origem, a matéria pode ser invocada no recurso de apelação. (...)

VOTO

Registre-se que o fato de o preparo e as custas iniciais terem sido eventualmente pagos por seu advogado, como forma de evitar a extinção do processo ou o não conhecimento do recurso, não é capaz de alterar esse quadro: ainda assim está caracterizada a preclusão lógica, já que o agravante conseguiu reunir recursos para pagar as despesas do processo.

(TJ-SC - AGV: 00027270720108240011 Brusque 0002727-07.2010.8.24.001145, Relator: Marcus Tulio Sartorato, Data de Julgamento: 31/10/2017, Terceira Câmara de Direito Civil)

Para além do caráter estritamente pessoal e intransmissível, é evidente que o custeio da despesa processual por terceiro não implica o afastamento do direito da parte à isenção das despesas judiciais, mormente quando o custeio externo em nada concerne à insuficiência de recursos da parte (art. 98, caput e art. 5º, LXXIV, da CF). Contudo, a alegação de recolhimento do preparo pelo patrono da causa sequer fora apreciada pelos órgãos da Corte catarinense, os quais, à luz da concepção unitária do benefício, interpretam o pagamento das custas recursais por terceiro como presunção de absoluta suficiência financeira da parte recorrente.

A cristalização da concepção unitária da gratuidade de justiça no Enunciado da Súmula nº 51 transmuda-o, portanto, em manifesto instrumento de cerceamento ao direito de isonomia processual.

Embora o aprofundamento da temática à luz do CPC realce a impropriedade dos provimentos jurisdicionais delineados nas Tabelas 2 e 3, a análise superficial da matéria, tal qual efetuada pelos desembargadores relatores quando da aplicação da Súmula nº 51 do TJ/SC, dificulta a mensuração da ilegalidade do Enunciado, porquanto a cristalização do precedente vinculante visa, precisamente, afastar as rediscussões acerca de tema já pacificado46.

Nesse sentido, o afastamento da orientação jurisdicional cristalizada na Súmula nº 51 do TJ/SC requer, por previsão legal expressa (489, §1º, VI), a demonstração de distinção (distinguishing) ou superação do precedente. À luz do Enunciado sob análise, é dizer: uma vez recolhido o preparo, o conhecimento do pedido recursal à concessão da gratuidade de justiça encontra-se necessariamente condicionado ao exercício de distinção ou superação da norma jurisdicional.

(...) exige-se uma carga argumentativa qualificada ao magistrado que pretenda se afastar da ratio decidendi de precedente aplicável ao caso em julgamento. Exige-se do julgador uma fundamentação qualificada, com pesado ônus argumentativo, do qual se desincumbirá apenas se demonstrar superação (overruling) do precedente (...) ou a distinção (distinguishing). (KOEHLER, 2017, p. 365)

Dentre ambas as opções, tem-se que o exercício de distinção demonstra-se inaplicável. Segundo se extrai da inteligência do art. 966, §5º47, o distinguishing pressupõe a inadequação entre a questão controvertida e o padrão decisório que levou à cristalização do precedente48. Uma vez que, conforme exposto, houve a estabilização no TJ/SC, em linha com outros Tribunais, da tese de incompatibilidade (preclusão lógica e renúncia tácita) entre o recolhimento do preparo e o pedido recursal à gratuidade de justiça (Tabela 2), a negativa de conhecimento ao recurso lastreada na juntada do depósito recursal (compatibilidade fática com o precedente) não destoa do padrão decisório que pavimentou o Enunciado da Súmula nº 51 do TJ/SC (ratio decidendi).

Contornar o gargalo processual erigido pelo referido Enunciado perpassa, portanto, a superação do precedente no qual se projeta uma errônea concepção do benefício da gratuidade de justiça.

Oportuno assinalar que o dever dos Tribunais à manutenção de sua jurisprudência íntegra, estável e coerente (art. 926) não deve ser interpretado como eterna sujeição à orientação firmada, a qual deve ser fundamentadamente alterada quando constatados motivos para tal. Nesse sentido:

A possibilidade de mudança do entendimento é inerente ao sistema de precedentes judiciais. O dever de estabilidade da jurisprudência não impede a alteração do entendimento; ele impede alteração injustificada desse entendimento. A modificação do entendimento pode revelar-se um imperativo de justiça. Este é o ponto. (DIDIER; BRAGA; OLIVERA, 2016, p. 509).

As considerações ora apresentadas permitem concluir quanto à ilegalidade da norma jurisdicional apregoada à Súmula nº 51 do TJ/SC, seja porque reflete uma concepção unitária incompatível com os atributos de delimitação e fracionamento consagrados pelos §§5º e 6º do art. 98, seja porque importa em manifesto cerceamento do direito à isonomia processual.

Constatada a ilegalidade de precedente vinculante, o exercício de superação pode ser efetuado por Juízo singular ou colegiado, conforme se extrai de lição constante do Enunciado 324 do Fórum Permanente de Processualistas Civis:

Lei nova, incompatível com o precedente judicial, é fato que acarreta a não aplicação do precedente por qualquer juiz ou tribunal, ressalvado o reconhecimento de sua inconstitucionalidade, a realização de interpretação conforme ou a pronúncia de nulidade sem redução de texto.

Embora editada após a vigência do CPC, a Súmula nº 51 do TJ/SC claramente incorpora uma concepção unitária do benefício, incompatível com a legislação processual em vigor, fato que desobriga a replicação compulsória pelo magistrado:

Nesta hipótese [alteração legislativa], a não aplicação do precedente pode ser feita por qualquer juiz, não irá necessitar do ônus argumentativo existente para a decisão de superação típica e nem será necessária a ponderação da revogação com o princípio da segurança jurídica. (DIDIER; BRAGA; OLIVERA, 2016, p. 512).

Conquanto possível o afastamento da incidência do Enunciado em casos concretos, a irrefletida proliferação de decisões que anulam as contribuições proporcionadas pelo CPC demanda a premente revogação do Enunciado, a partir da aplicação da técnica do overruling 49 pelo Órgão Especial50 da Corte catarinense:

Com efeito, as cortes superiores podem, então, substituir - overruled - um determinado precedente por ser considerado ultrapassado ou, ainda, errado (per incuriam ou per ignorantia legis). A decisão que acolhe nova orientação incumbe-se de revogar expressamente a ratio decidendi anterior (express overruling). Nesse caso, o antigo paradigma hermenêutico perde todo o seu valor vinculante. (TUCCI, 2012, p. 113)

Assim, sem prejuízo do necessário afastamento do precedente vinculante na apreciação de casos concretos, a demonstrada ilegalidade da Súmula nº 51 do TJ/SC, cuja exegese é irrefletidamente reproduzida em julgados que incoerentemente cerceiam o direito à isonomia processual, assinala o alheamento da norma jurisprudencial ao ordenamento processual vigente, fato que impõe a mobilização do Órgão Especial do Tribunal com vistas ao pronto cancelamento do Enunciado.

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Sobre o autor
Gabriel Rodrigues Soares

Advogado. Graduado pela Universidade de Brasília (UnB) Atuação: Direito do Consumidor; Cível; Trabalhista

Informações sobre o texto

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