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O direito à prova, as provas ilícitas e as novas tecnologias

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01/11/1999 às 01:00
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5 - PROVAS MODERNAS

Outro problema enfrentado pelo direito processual é o do surgimento de novos meios de provas, devido aos progressos tecnológicos e ainda não disciplinados de forma expressa pela lei. A lei, em muitos casos, não consegue acompanhar a evolução da tecnologia.

Ainda que não se aceite uma relação necessária e suficiente entre o problema da informática sobre os direitos fundamentais e a solução adotada por diversos países, com a promulgação de leis consagradoras de princípios de boas práticas de coleta e tratamento de dados, há de se registrar o impacto produzido pelas novas técnicas legislativas de informação não apenas no plano das políticas, sobretudo legislativas, que passaram a serem adotadas desde então, mas principalmente na redefinição do sentido de intimidade, de sua identificação com posturas assépticas e isolamento, próprias do pensamento individualista reinante no final do século passado. (27)

Não resta dúvida que nessa seara é o "direito à intimidade" um dos bens jurídicos mais afetados e propensos à agressões. Sozinho ou aliado ao princípio da "dignidade da pessoa humana" devem os mesmos serem observados conquanto a produção de qualquer desses novos atos processuais que se apresentam.

Dentro dessa gama de novos meios de prova que podem ser apresentar no âmbito do direito processual, podemos arrolar: a prova judicial via satélite, o interrogatório do acusado no processo penal, atos cometidos no meio eletrônico via internet etc.

5.1 PROVA JUDICIAL VIA SATÉLITE 

Sob a "prova judicial via satélite" temos um caso no direito comparado, noticiado por Edson Prata, onde num litígio que tramitava em Boston, nos Estados Unidos, tornou-se absolutamente indispensável a audição de uma testemunha, aquilo que normalmente chamamos de testemunha-chave. Essa testemunha não pode comparecer no dia do julgamento diante do Supremo Tribunal e foi ouvida mediante uma conexão de televisão entre os Estados Unidos e a Austrália, via satélite(28).

Transmitido o depoimento via satélite, a imagem da testemunha aparecia em uma tela nitidamente possibilitando ao juiz sentir as relações de sua fisionomia (fundamental na prova testemunhal, quando o julgador percebe perfeitamente as reações fisionômicas do depoente) (29).

Ora, impossível não lembrarmos da pureza das imagens transmitidas para todo o mundo via CNN, do depoimento do Presidente dos Estados Unidos William Jefferson Clinton, durante o depoimento, via satélite, ao Congresso Norte Americano, no caso conhecido popularmente como " Escândalo Mônica Lewinskin".

Com a concordância do Tribunal de Justiça e das partes conflitantes, então, pela primeira vez na história do Direito Internacional, o seu depoimento foi colhido por uma conexão de televisão entre Sidney e Boston. (30)

Não resta dúvida de que aqui não houve nenhum prejuízo para o processo. A busca da prova foi atingida como se houvesse sido colhida pessoalmente pelo juiz do processo na mesma sala de audiências. Existiu, com certeza, foi um ganho, melhor realizado do que pelo meio comum do procedimento via carta rogatória, onde inexiste qualquer possibilidade do juiz do local de origem verificar as reações físicas da testemunha ou realizar perguntas aproveitando-se de questões surgidas durante o depoimento.

A utilização do presente recurso tecnológico, com as devidas precauções por parte do Poder Judiciário, com certeza trará ganhos ao descobrimento da verdade no processo.

5.2. INTERROGATÓRIO À DISTÂNCIA

Já, por outro lado, deve-se analisar o experimento "interrogatório à distância", realizado pelo Doutor Luiz Flávio Gomes, no ano de 1.996, quando o interrogatório do acusado (art. 185, do CPP, e seguintes) foi realizado com a intermediação do computador, estando o juiz em comarca diferente do interrogado, sendo os sinais transmitidos por meio eletrônico.

O evento foi amplamente divulgado pela imprensa da época e merece toda a atenção e discussão quanto às garantias materiais do acusado.

Destarte o professor Luiz Flávio Gomes ter garantido formalmente que todos os mecanismo processuais fossem respeitados, mantendo funcionários da Justiça para identificar, qualificar e dar ciência ao acusado, em voz alta, das perguntas formuladas pelo juiz, inexiste dúvidas de que o citado procedimento traz prejuízos para o acusado.

Podemos, de plano, questionar a inconstitucionalidade do referido procedimento à luz do princípio constitucional da "dignidade da pessoa humana", acolhido de forma expressa pela Constituição Federal de 1988 (Título I, Dos Princípios Fundamentais, art. 1º, III).

A palavra princípio tem duas acepções; uma de natureza moral, e outra de ordem lógica. Quando dizemos que um indivíduo é homem de princípios, estamos empregando, evidentemente, o vocábulo na sua acepção ética, para dizer que se trata de um homem de virtudes, de boa formação e que sempre se conduz fundado em razões morais. (31)

A outra de ordem lógica pode nos ser explicada pela Filosofia do Direito na seguinte forma. Para isso devemos nos ater aos conhecimentos revelados pelos juízos, que são apreciações a respeito de algo e, quando combinamos juízos entre si segundo um nexo lógico de consequência, dizemos que estamos refletindo, que estamos na verdade raciocinando. Raciocínio, portanto, é um conjunto ordenado e coerente de juízos. (32) Não é possível haver ciência, é claro, sem esta operação elementar de enunciar juízos e de combinar juízos entre si. A ciência implica sempre uma coerência entre juízos que se enunciam. É necessário que os enunciados – e a enunciação é a essência do juízo – não se choquem e nem se conflitem, mas se ordenem de tal maneira que entre eles exista um nexo comum que lhes assegure coerência e validez. (33)

O Direito não se furta a essa realidade. São várias as legislações que incluem entre as formas subsidiárias do direito, além dos costumes, os princípios gerais do direito, tais como a brasileira, argentina , mexicana, italiana etc..

Os princípios se conceituam como proposições ideais que informam a compreensão do fenômeno jurídico. São diretrizes centrais que se inferem de um sistema jurídico e que, após inferidas, a eles se reportam, informando-o. (34) As coisas tendem a persistir enquanto não cessarem as razões que lhes ditaram o surgimento. Assim também, os princípios de direito vieram antes da lei e sobrevivem a elas. (35)

Pode-se concluir que a idéia de princípio ou sua conceituação, seja lá qual for o campo do saber que se tenha em mente, designa a estruturação de um sistema de idéias, pensamentos ou normas de uma idéia mestra, por um pensamento chave, por uma baliza normativa, donde todas as demais idéias, pensamentos ou normas derivam, reconduzem e/ou se subordinam. (36)

O princípio da "dignidade da pessoa humana" é definido como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (Título I, Dos Princípios Fundamentais, art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988). Mais do que um princípio geral do direito agora ele se encontra positivado no instrumento jurídico máximo do Estado brasileiro.

Não há de se negar ao princípio constitucional sua natureza de norma, de lei, de preceito jurídico, ainda que com características estruturais e funcionais bem diferentes de outras normas jurídicas, como as regras de direito. Por sua própria essência, evidencia mais do que comandos generalíssimos estampados em normas, em normas da Constituição; expressam opções políticas fundamentais, configuram eleição de valores éticos e sociais como fundantes de uma idéia de Estado e de Sociedade. (37)

Reforçando tal idéia vem a lição do eminente Professor J.J. Gomes Canotilho da Faculdade de Direito de Coimbra: "Perante as experiências históricas da aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos) a dignidade da pessoa humana como base da república significa, sem transcedências ou metafísicas, o reconhecimento do "homo noumenon", ou seja, o indivíduo como limite e fundamento do domínio político da república". (38)

Não se contenta o Estado Democrático em fornecer os meios legais e materiais para a proteção da vida corpórea, mas busca também imbuí-la de um sentimento pessoal de satisfação pela própria vida que deve lhe devotar o homem ao contemplá-la e compreendê-la. (39)

Como garantir esses direitos ao acusado impedindo-o de contatar pessoalmente o juiz, durante a realização do interrogatório ? Se já não existe a proteção do "princípio da identidade física do juiz" no processo penal, possibilitando que juizes condenem, com muita freqüência, pessoas que nem sequer conheceram, o que será de se permitir que os interrogatório passem a serem realizados à distância, de forma asséptica, evitando-se o contato do acusado com o juiz.

É o interrogatório o momento próprio do acusado participar direta e ativamente no processo, demonstrando ou não sua inocência, tem ele o direito de manter um "diálogo humano" com o seu julgador, levando-o sua emoções, versões, sentimentos e expressões, a fim de que o mesmo avalie de melhor forma o seu depoimento.

Fulminando mortalmente, temos ainda o argumento de Renê Ariel Dotti:

" Todas as observações críticas deságuam na convicção alimentada pela visão humanista do processo penal: a tecnologia não poderá substituir o cérebro pelo computador e muito menos o pensamento pela digitação. É necessário usar a reflexão como contraponto da massificação. É preciso ler nos lábios as palavras que estão sendo ditas; ver a alma do acusado através de seus olhos; descobrir a face humana que se escondera por trás da máscara do delinqüente. É preciso, enfim, a aproximação física entre o Senhor da Justiça e o homem do crime , num gesto da alegoria que imita o toque dos dedos, o afresco pintado pelo gênio de Michelângelo na Capela Sistina e representativo da criação de Adão(40).

O interrogatório on-line inaugura um novo estilo de cerimônia degradante. O conceito "status-degration cerimony" foi introduzida em 1956 por H. Garfinkel e referia-se a procedimentos ritualizados nos quais um indivíduo é condenado e despojado de sua identidade e recebe outra (degradada). Pode ser reforçada pela "teoria do etiquetamento" dos criminólogos também, e foi relembrada por Figueiredo Dias e Costa Andrade: "O julgamento criminal é a mais expressiva – mas não a única – das cerimônias degradantes(41) ".

O presente "interrogatório on-line" determinará outra situação de desigualdade, pois no nosso desigual sistema penal, os acusados que possuem advogados não ficam detidos durante o processo, na maioria das vezes, e certamente, somente acusados pobres, etc. se submeterão ao sistema de interrogatório "on-line", trazendo mais desigualdade ao referido sistema.

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No mesmo sentido, o Professor da USP, Maurício Antonio Ribeiro Lopes:

"Não há oportunidade para modismos informáticos na garantia da liberdade individual e a primeira forma de proteção desta é o exercício pleno do direito de defesa, que implica o direito do acusado de ir a Juízo e dizer o seu direito. Ética na cibernética." (42)

Outro detalhe, esquecido por muitos é de que muitas vezes, em especial, quando o acusado não tem condição de pagar seu próprio advogado, está o mesmo desacompanhado de advogado no interrogatório, sendo que no final deste, o juiz nomeia um defensor dativo ou público a fim de que , a partir daquele momento, faça a defesa do acusado. Afirmar que a dispensabilidade do advogado neste ato, tendo em vista que o mesmo é pessoal e do juiz, sendo realizado por meio eletrônico, já não terá tantos defensores(43).

5.3 DIREITO À INTIMIDADE

É um desafio ao direito moderno a exata definição e delimitação do "direito à intimidade". Uma pergunta inicial é de qual é o âmbito do "direito à intimidade ", o que deve ser considerado parte do universo e o que não deve ser protegido ?

Temos de encará-lo como um fenômeno sócio-psíquico, em que os valores vigentes em cada época e lugar exercem influência significativa sobre o indivíduo, que em razão desses mesmos valores sente a necessidade de resguardar do conhecimento das outras pessoas aspectos mais particulares de sua vida(44).

Qualquer um de nós tem uma definição, mais ou menos próxima, do que seja desrespeito à nossa intimidade. Já no campo das definições, estamos longe de alcançar uma precisão no tema, ficando apenas algumas a título de ilustração.

Nos Estados Unidos indicam-na sob o nome de right of privacy ou right to be alone; em França, como droit a la vie privée ou droit a líntimité. Na Itália distinguem diritto alla riservatezza e dirrito alla segretezza ou al rispeto della vita privatta, sendo este último o direito de impedir que terceiros conheçam ou descubram a intimidade da vida privada da pessoa e aquele outro surgiria em um momento posterior, como direito de impedir a divulgação de aspectos da intimidade, depois de licitamente conhecida pelo divulgador(45).

No Brasil a falta de um texto de lei que trate expressamente do assunto é indicado com um dos motivos do parco desenvolvimento do instituto entre nós. Aqui, recebe alguns conceitos , tais como: "direito à intimidade", "direito de estar só", "direito ao recato", "direito de privacidade" etc.

O direito à intimidade é um direito de personalidade, está ligada diretamente à essência do indivíduo. É a opinião majoritária da doutrina sobre o assunto.

O direito à intimidade é intransmissível, pois não podemos separar a honra, a intimidade de seu titular. A natureza do objeto é que torna intransmissível o bem. É da essência da vida, da honra, da intimidade, da imagem. Não podemos conceber a vida de um indivíduo sem essas características; tem caráter de essencialidade, portanto. (46)

Não cabe nesse texto, pelas suas próprias limitações, uma exposição casuística dos casos que sejam classificados como "direito à intimidade", todavia, ainda bem recente na história da nação brasileira a transmissão e depois reprodução por toda imprensa nacional da "conversa franca" entre o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricúpero e o jornalista Carlos Monforte, que pela antena parabólica de terceiros, foi captada e acarretou desdobramentos que levaram à queda do então Ministro da Fazenda.

Num outro paralelo, todos podem se lembrar, também, das fotos tiradas de Jaqueline Kenedy Onassis na ilha de Skorpius, num desrepeito total ao direito de intimidade das pessoas, e que foram veiculadas mundo afora, numa afronta à seriedade das pessoas.

O episódio da morte da Princesa Diana da Inglaterra, um acidente de fins trágicos, quem não pode lembrar da participação (involuntária que seja), dessa classe de pessoas chamadas "paparazzi", que por dinheiro vendem fotos de pessoas famosas (muitas vezes para jornais populares) e com câmaras de alta resolução invadem a intimidade das pessoas, seja aonde estiverem e da forma que estejam.

A produção desse tipo de provas num processo deve ser submeter ao máximo de rigorosidade pelo juiz, a fim de se evitar excessos, e sobrepesando-se os interesses em jogo. Se possível a produção por outros meios de prova ordinariamente admitidos, devem ser rechaçadas pelo juiz, a fim de se preservar os direitos da personalidade.

A despeito da falta de texto específico regulando a proteção do direito à intimidade, a existência do mesmo pode ser confirmada com um rápido cotejo de alguns textos esparsos, que buscam resguardar aspectos pessoais da vida das pessoas. (47)

Na Constituição Federal de 1988 encontramos nos Direitos e Garantias Individuais (artigo 5o) a inviolabilidade do domicílio, da correspondência e das comunicações em geral, representando , segundo Edson Ferreira da Silva, o aspecto mais tradicional da proteção da intimidade, da paz e do sossego. (48)

A disposição mais específica sobre o tema, incluída no campo das garantias fundamentais, é a do artigo 5º, X:

          X – São invioláveis a intimidade , a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral de corrente de sua violação.

De forma expressa, o direito á intimidade passou a ser um direito subjetivo constitucional, pondo fim à discussão prejudicial sobre a possibilidade ou não da existência de um direito geral à intimidade, que em face desse inciso do artigo 5º não pode mais ser questionada.

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Sobre o autor
Lélio Braga Calhau

promotor de Justiça em Minas Gerais, pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha), mestre em Direito pela Universidade Gama Filho (RJ), conselheiro do Instituto de Ciências Penais do Estado de Minas Gerais (ICP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CALHAU, Lélio Braga. O direito à prova, as provas ilícitas e as novas tecnologias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 36, 1 nov. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/818. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

A presente monografia foi apresentada na matéria Teoria Geral do Processo do Curso de Mestrado em Direito do Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro. Professor: Doutor Leonardo Greco.

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