Resumo
O presente artigo pretende apresentar os aspectos eugênicos aplicados na atualidade sob a perspectiva do desenvolvimento das técnicas de engenharia genética no que tange à manipulação do código genético de organismos – organismos geneticamente modificados, tanto plantas quanto animais – com o intuito de criar organismos mais fortes e adaptados aos anseios e necessidades vigentes, bem como o desenvolvimento de técnicas de mapeamento que viabilizam práticas como o aborto eugênico e a reprodução assistida, a saber, a prática da eugenia tanto positiva quanto a negativa no âmbito da reprodução.
- A ENGENHARIA GENÉTICA COMO INSTRUMENTO EUGÊNICO
“Se disse que isto aqui é delicioso, foi apenas... meu Ford, porque o progresso é, com efeito, uma coisa deliciosa, não é verdade?”[1]. Se o progresso é algo maravilhoso, é também algo terrível em sua grandiosidade vertiginosa velocidade com que se processa nos tempos atuais. Da descoberta do DNA, ao Projeto Genoma, à engenharia genética atual, vemos uma progressão do conhecimento científico em alarmante escala, que tem o potencial para interferir diretamente no equilíbrio da vida de todo o planeta.
A engenharia genética se destaca como a grande responsável pela possibilidade de intervenções genética, e, dentre as inovações trazidas pelo Projeto Genoma Humano está a Terapia Gênica - uma forma de tratamento que busca corrigir ou diminuir os efeitos de doenças causadas pela herança genética, que consiste em realizar intervenções no DNA do paciente, em busca da sua cura, especificamente nos genes responsáveis pela causa das doenças genéticas. A Terapia Gênica se baseia na Medicina Preditiva, buscando, por meio de mapeamento genético e outros testes, chegar a diagnósticos genéticos, auferindo as chances de desenvolvimento de uma doença de origem genética. Grande parte dos pesquisadores e cientistas parece concordar que a terapia gênica seria admissível apenas em situações em que possa ser utilizada como meio para superar ou diminuir os efeitos de uma enfermidade, e desde que não influa sobre o código genético e não se aplique como instrumento à seleção da raça. Sobre a Terapia Gênica:
“A Terapia Gênica pode ser realizada em células somáticas ou em células germinativas. Na 'terapia gênica de células germinativas' (TGCG) as alterações são transmitidas para as gerações futuras. O mesmo não acontece com a 'terapia gênica de célula somática’ (TGCS), em que há necessidade de se repetir o procedimento periodicamente, a depender do tipo de doença. Nas duas técnicas o novo gene - sem o "defeito" - é inserido no organismo humano por meio de um "vetor" que conduz o gene terapêutico para dentro da célula do doente. Os vetores amplamente usados são vírus. Atualmente, diante dos possíveis problemas que podem surgir com a utilização dos vírus como vetores, foram criadas alternativas aos vírus, tais como um complexo de DNA com lipídios e proteínas, e introdução de um 47º cromossomo (que existiria autonomamente), bem como DNA puro (biobalística e injeção)” [2]
A edição de genoma é outra técnica utilizada pela engenharia genética na manipulação gênica, podendo ser aplicada em plantas, insetos, animais e humanos. A edição de genoma consiste em uma série de técnicas de laboratório para modificar o DNA de organismos vivos. A maioria das técnicas se vale de enzimas que promovem um corte em áreas pré-definidas do genoma, que depois se reestabelece através de inserção, substituição ou remoção de segmentos de DNA. Comumente se uma um tipo de “DNA template” modelo que predetermina a mudança realizada no DNA. As técnicas de edição também utilizam Nucleases de dedo de zinco ou zinc finger nucleases (ZFN – utilizado na seleção das sequências de DNA em genomas complexos); TALENs (transcription activator-like effector nucleases; fusões proteínas TAL e uma nuclease FokI, utilizados para fazer o recorte de sequências específicas de DNA); e sistema CRISPR (repetições palindrômicas curtas agrupadas e regularmente interespaçadas ou clustered regularly interspaced short palindromic repeat). Outras técnicas, como a oligonucleotide directed mutagenesis ou mutagénesis dirigida por oligonucleotídeo (ODM), compreendem na introdução de sequências curtas de DNA sintético que impulsiona as células a alterarem seu DNA a fim de igualar-se ao fragmento de DNA introduzido.
Organismos submetidos ao procedimento de edição genética e organismos geneticamente modificados possuem uma pequena distinção entre si – os organismos que passam pela edição genética não necessariamente possuem DNA estranho ou transgênico transplantado de outras espécies. Não obstante a presença ou não de genes estranho de outra espécie não é o critério de definição e qualificação para a classe de “organismos geneticamente modificados” (OGM’s). A edição genética, em tese, é mais específica ao atingir o gene ou sequência gênica exata que se deseja alterar, principalmente se comparada a procedimentos de inserção aleatória de genes que carregam certas características no organismo que se deseja alterar, sem saber ao certo como esse DNA alterado afeta as interações com os demais genes e processos intracelulares. A problemática, principalmente no que tange o consumo de alimentos que tenham sofrido alterações genéticas está no desconhecimentos dos efeitos e implicações que podem trazer sobre a segurança alimentar – alguns organismos podem reagir com alteração nos níveis de componentes tóxicos ou prejudiciais à saúde, sofrer alterações em seus níveis de valores nutricionais ou produzir novos alergênicos alimentares, comprometendo o equilíbrio do meio ambiente - maior precisão e especificação de caracteres nos organismos em geral não necessariamente significa maior segurança genética. Definitivamente ainda devem ser realizados mais experimentos, pesquisas, criação de modelos por computador e análise de riscos e benefícios de tais intervenções genéticas, antes que se torne um procedimento padronizado e permitido pelos órgãos de controle, para que então possam ser realizados procedimentos com humanos.
A problemática referente à eugenia é que, conforme as teorias precursoras que justificam a prática eugênica, haveria dentre os grupos de indivíduos um grupo considerado superior aos demais. “Os indivíduos superiores têm suas características genéticas perpetuadas, já os inferiores, devem ser de alguma forma, impossibilitados de transcender a sua herança genética para as gerações futuras”.[3] Durante o movimento eugênico nos Estados Unidos, no começo do século XX, prática como a esterilização daqueles considerados depravados e delinquentes, doentes mentais, negros, pobres, e outros grupos considerados inferiores, cuja reprodução apenas perpetuaria genes degenerativos, promovendo uma involução da espécie humana. Em discurso em meio à ascensão do discurso sobre a eugenia, Theodore Roosevelt, presidente dos Estados Unidos entre 1901 e 1909, chegou a afirmar que:
"Um dia perceberemos que o principal dever, o dever inevitável de um cidadão correto digno, é o de deixar sua descendência no mundo. E também que ele não tem o direito de permitir a perpetuação do cidadão incorreto. O grande problema da civilização é assegurar um aumento relativo daquilo que tem valor, quando comparado aos elementos menos valiosos ou nocivos da população. O problema não será resolvido sem uma ampla consideração da imensa influência da hereditariedade. Eu desejo muito que se possa evitar completamente a procriação de pessoas erradas. E o que se deve fazer, quando a natureza maligna dessas pessoas foi suficientemente flagrante? Os criminosos devem ser esterilizados, e aqueles mentalmente retardados devem ser impedidos de deixar descendência. A ênfase deve ser dada à procriação de pessoas adequadas[4]."
“Dentre outros princípios para aplicar técnicas eugênicas no homem, encontra-se a de ‘corrigir’ a causa de algumas doenças (por exemplo, doença fibrocística, algumas imunodeficiências, talassemia). Esta, portanto, seria uma maneira de eugenia moralmente aceitável por alguns indivíduos da sociedade que consideram estas técnicas como soluções aceitáveis para se obter seres humanos perfeitos vivendo em um conjunto social.”[5]
A grande polêmica a respeito da interferência da engenharia genética no DNA humano para seu “melhoramento” é de que genoma humano pode ser considerado patrimônio comum de toda a humanidade, logo, consentir com tais intervenções constituiria uma séria e grave ameaça à identidade da espécie humana. Como meio de reprimir estudos e intervenções em material genético humano in vivo, a Lei nº 11.105/05 dispõe:
Art. 6º - Fica proibido:
I – implementação de projeto relativo a OGM sem a manutenção de registro de seu acompanhamento individual; II – engenharia genética em organismo vivo ou o manejo in vitro de ADN/ARN natural ou recombinante, realizado em desacordo com as normas previstas nesta Lei; III – engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano; IV – clonagem humana;
A permissão do art. 5º da mesma lei se restringe aos fins de pesquisa e terapia, nos termos:
Art. 5º: É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores; §2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa; §3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.
Os que defendem o melhoramento genético argumentam que melhorar os indivíduos por meio da bioengenharia ou pela educação não se diverge. No livro “Contra a Perfeição – ética na era da engenharia genética”, Sandel levanta esse ponto afirmando:
“Será o afã de melhorar os filhos por meio da engenharia genética mais parecido com a educação e a disciplina (algo presumivelmente bom) ou mais parecido com a eugenia (algo presumivelmente ruim)? Os defensores do melhoramento têm razão neste quesito: melhorar os filhos com o uso da engenharia genética é semelhante, em espírito, às práticas de puericultura pesadas e de alta pressão que se tornaram tão comuns hoje. Entretanto isso não justifica o melhoramento genético (...). Há quem veja uma linha distinta entre o melhoramento genético e as outras maneiras que as pessoas utilizam para melhorar a si mesmas e aos seus filhos. A manipulação genética parece de certa forma pior — mais invasiva, mais sinistra — do que outras maneiras de melhorar o desempenho e buscar o sucesso. Mas, do ponto de vista moral, a diferença é menos significativa do que parece. Os que argumentam que a bioengenharia é semelhante em espírito a outras formas por meio das quais os pais ambiciosos moldam seus filhos têm certa razão, porém essa semelhança não é motivo para abraçarmos a manipulação genética das crianças. É, ao contrário, motivo para questionar as práticas de educação dos filhos de baixa tecnologia e alta pressão que aceitamos comumente. O hiperempenho dos pais, tão familiar em nossos tempos, representa um excesso ansioso de maestria e dominação que deixa de lado o sentido de dádiva da vida. Isso o aproxima de modo perturbador da eugenia.” (SANDEL, Michael J., 2013)
No que tange a engenharia genética, vejamos o Projeto Genoma: quando pensamos no que diferencia um ser humano de outro, temos que 1% do DNA é o responsável pelas variações, e o Projeto Genoma tem em seu escopo identificar justamente essas variantes do código genético e suas consequências – vulnerabilidade e propensão a doenças, vícios, depressão, anomalias, deficiências, etc.
A problemática da aplicação da bioengenharia para melhoramento genético vai além da espécie humana – a engenharia genética, há muito tempo, já vem sido utilizada como instrumento para desenvolver culturas transgênicas e na criação de animais. A transgenia na modernidade possui reflexos econômicos e sociais, e através de sua aplicação à agricultura remete a uma nova forma de eugenia, a chamada de “eugenia comercial” ou “transgenia”, o que pode vir a se transformar em um problema ordem socioambiental. A transgenia, a utilização da engenharia genética na seleção e desenvolvimento de plantas transgênicas, se manifesta como uma resposta às disposições econômicas, a necessidade de produzir em maior quantidade, menor tempo, menor custo, plantações mais resistentes, maximizando os lucros.
Atualmente, cerca de 85% das lavouras de milho no Brasil e nos Estados Unidos são transgênicos e receberam genes para torna-los mais resistentes à herbicidas e insetos; a soja transgênica, resistentes à herbicidas e insetos, ocupa quase um terço de toda a área dedicada à agricultura no Brasil; outros alimentos comuns do dia-a-dia como mamão, arroz, feijão, e outros cereais e frutas disponíveis no mercado também são organismos geneticamente modificados (OGM’s), e, segundo dados do IBGE as lavouras de transgênicos no Brasil representam mais da metade da área cultivada. Entretanto surgem preocupações em relação aos alimentos transgênicos no que tange à segurança alimentar (seriam esses OGMs de alguma forma prejudiciais à saúde dos consumidores?), uma vez que nem mesmo a FDA (Food and Drugs Administration) pode chegar à resultados conclusivos sobre os possíveis efeitos danosos dos transgênicos. Há também preocupações de ordem ambiental, pois, um transgênico uma vez inserido no meio ambiente dele não poderá ser desassociado, afetando a biodiversidade e o equilíbrio natural com o risco de contaminação e cruzamento.
“Neste sentido, a transgenia, na forma em que se materializa na modernidade, pode ser entendida como uma tecnologia transformadora e homogeneizante, na medida em que a transformação das sementes gera impactos práticos (como a diminuição de variedades de sementes) e simbólicos (como a re-significação do que vem a ser a semente pela sociedade). (...) Por mais que algumas empresas defendam-se afirmando que a presença dos transgênicos é indispensável para o futuro humano, questiona-se, por outro lado, os valores e os interesses que regem o discurso de defesa da transgenia como algo indispensável[6].”
O direito dos consumidores também é colocado em análise sob a ótica do direito à informação sobre os produtos comercializados, visto que alguns países não permitem, enquanto outros obrigam a diferenciação e identificação nos rótulos das embalagens de produtos transgênicos e não transgênicos. Surge aqui um debate entre as empresas que comercializam produtos que contém DNA transgênico, que afirmam que tal identificação nas embalagens promove a discriminação e recusa aos seus produtos, criando barreiras comerciais; por outro lado, o direito do consumidor de conhecer a origem dos produtos que consome (grande parte dos transgênicos também são direcionados como ração para alimentação animal), uma vez que esses produtos trazem possíveis riscos à saúde dos consumidores. Países como Rússia, Dinamarca, Reino Unido, França e Irlanda do Norte possuem legislação que restringe o plantio de lavouras transgênicas.
“Por mais que algumas empresas defendam-se afirmando que a presença dos transgênicos é indispensável para o futuro humano, questiona-se, por outro lado, os valores e os interesses que regem o discurso de defesa da transgenia como algo indispensável. (...) conglomerados internacionais afirmam que a rotulagem não deve ser implementada, porque com o passar de alguns anos ela tende a ser inócua, já que a transgenia abrangerá a totalidade de uma cadeia agroalimentar, sendo então incorporada, em maior ou menor grau, em quase todos os produtos existentes[7]”.
Organismos geneticamente modificados por intervenção da bioengenharia não se limitam às espécies vegetais. A edição genética já é uma realidade para animais também. No final de 2015 cientistas chineses divulgaram[8] estudos realizados com cães que consistiam na edição do genoma para criar cães com o dobro da massa muscular, através da manipulação do gene Miostatina (fator 8 de crescimento e diferenciação). Há também a aplicação da engenharia genética na criação de outras espécies de animais em miniatura[9] (porcos, cães, gatos, etc) como animais domésticos; alguns institutos especializados em manipulação genética têm comercializados animais “sob encomenda”, definindo seu tamanho, cor, padrão de pelagem, entre outros – tudo feito a partir de métodos de edição genética. O problema é que a interferência genética nas criações de pode promover desequilíbrios ecológicos. A transmissão dessas características pela reprodução
A importância da variabilidade genética se manifesta através do potencial evolutivo - quando espécies passam por mudanças ambientais apenas indivíduos com maior diversidade genética conseguem sobreviver nas novas condições. A perda da variabilidade genética acarreta em perda na habilidade de adaptação e fragilidade populacional.
“Mas não podemos permitir à ciência que desfaça o bom trabalho que realizou. Aqui está porque estabelecemos com tanto cuidado os limites das suas investigações, eis porque estive prestes a ser enviado para uma ilha (...). É curioso -continuou depois de uma curta pausa - ler o que se escrevia na época de Nosso Ford acerca do progresso científico. Parece que pensavam que se lhe podia permitir que se processasse indefinidamente, sem consideração por qualquer outra coisa. O saber era o deus mais alto, a verdade o valor supremo. Tudo o mais era secundário e subordinado. É verdade, também, que as ideias começaram a modificar-se a partir dessa época. Nosso Ford fez muito para tirar à verdade e à beleza a importância que lhe concediam, transferindo essa importância para o conforto e para a felicidade. A produção em massa exigia esta transferência. A felicidade universal mantinha as engrenagens em funcionamento muito regular, a verdade e a beleza não eram capazes de tal. E, esclareça-se, cada vez que as massas se apoderavam do poder político era a felicidade, mais que a verdade e a beleza, o que importava. Todavia, e apesar de tudo, as investigações científicas sem restrições eram ainda autorizadas. Continuava-se sempre a falar da verdade e da beleza como se fossem os bens supremos. Até à época da Guerra dos Nove Anos, que os forçou a falar noutro tom, posso garantir-lhes! Que sabor pode ter a verdade ou a beleza quando as bombas de antracite rebentam à nossa volta? Foi então que a ciência começou a ter as rédeas apertadas, depois da Guerra dos Nove Anos. Nesse momento as pessoas estavam até dispostas a deixar encurtar as rédeas ao apetite. Fosse o que fosse, desde que pudessem viver sossegadas. Desde então continuamos a apertar as rédeas. Isso não foi lá grande coisa para a verdade, claro. Mas foi excelente para a felicidade. É impossível conseguir-se alguma coisa por nada. A felicidade tem de ser paga. O senhor paga, senhor Watson, o senhor paga porque me parece que se interessa excessivamente pela beleza. Eu interessava-me muito pela verdade. Por isso também paguei.” (HUXLEY, Aldous, “Admirável Mundo Novo”, 1932; grifo nosso)
- EUGENIA E SUAS REPERCUSSÕES: ABORTO EUGÊNICO
Antes de realizado o devido aprofundamento sobre o tema “aborto eugênico” deve ser estabelecido um recorte metodológico delimitando o que se entende, terminologicamente, sobre essa expressão em seu universo semântico. A definição do conceito de aborto reside na retirada do elemento da fecundação, qual seja, o feto, antes do decorrido período de tempo natural que lhe concede a dádiva da vida. Em outras palavras, consiste na interrupção da gestação, seguida ou não de expulsão do produto da concepção, antes de sua maturidade, abrangendo, assim, para a sua configuração, o período que vai desde a concepção até o fim do parto.[10]
O conceito tradicional de eugenia, por sua vez, trata-se da manipulação do material genético com a finalidade de produzir indivíduos geneticamente melhorados ou ditos “superiores racialmente”. Também partilha dessa visão o mestre em Filosofia do Direito Antonio Baptista Gonçalves ao versar que a eugenia nada mais é do que a ciência que estuda as possibilidades de apurar a espécie humana sob o ângulo genético.[11] Essa definição, entretanto, não cabe à perfeita compreensão do termo na expressão “aborto eugênico”.
A eugenia, nesse sentido, diz respeito à observância do material genético do feto a fim de identificar características genéticas debilitantes, possível unicamente com o avanço tecnológico na área da medicina por meio de técnicas e instrumentos médicos adequados. Aborto eugênico, portanto, caracteriza a remoção do feto quando este, após submetido e analisado, normalmente por ultrassom ou coleta do líquido amniótico para estudo laboratorial, for diagnosticado, indubitavelmente, com doença terminal que inviabilize sua vida extrauterina.
Esse procedimento abortivo é realizado em casos de malformação congênita que impossibilite qualquer chance de sobrevivência do produto da concepção fora da barriga da mãe. Algumas das mais comuns malformações congênitas que impedem o desenvolvimento do feto são: mutação genética, aberrações cromossômicas e fatores ambientais intrauterinos adversos (virose materna, toxoplasmose, má nutrição, inalação de tabaco, etc.).
- DILEMA MORAL
O procedimento do aborto eugênico é altamente criticado por duas questões de cunho moral. A primeira delas aponta como inadmissível a deliberação arbitrária sobre a vida de um ser que ainda não possui capacidade de, sequer, defender seu próprio direito de existência, como aponta a jurista Maria Helena Diniz ao dizer que o:
[...] fruto de uma longa e criteriosa meditação, motivada pela preocupante diretriz que vem seguindo a humanidade, tomando a senda de uma barbárie inadmissível, a da permissividade do aborto, que nega o direito ao respeito à vida de pequeninos, inocentes e indefesos seres humanos, sacrificando-os em “holocausto” não só em nome de ideologias sociais, econômicas e políticas, como também de interesses privados.[12]
Essa problemática está enraizada na tradição histórico-religiosa do Brasil que, imerso no universo valorativo do cristianismo, repudia veemente a aniquilação de qualquer vida inocente, afinal, Deus, em seu quinto mandamento dita: “Não matarás”! Como se já não bastasse, a eugenia é vista, com base nos preceitos terminológicos supracitados, como uma tentativa humana de modificar as características concedidas pela divindade. Essa ciência, por conseguinte, é vista, pejorativamente, como uma tentativa de “brincar de Deus”, o que caracteriza uma afronta àqueles que pregam que as motivações do Senhor, por ser o grande maestro que rege os acontecimentos mundanos, não devem ser em hipótese alguma questionadas.
O debate acerca da origem ética, enquanto estudo filosófico da moral, dos comportamentos humanos é, entretanto, ponto polêmico cuja discussão não remete ao presente trabalho. Ressalva-se, porém, a crítica do doutor em teologia moral Javier Gafo que reconhece que, numa sociedade pluralista como a nossa, a bioética fica bastante reduzida à lei como fonte de moralidade.[13] Nessa esteira também percorre o pós-doutor em Bioética Mario Antônio Sanches ao afirmar que as duas opções éticas, “moral racional” e “moral cristã”, não somente não se opõem, mas convergem para uma unidade superior. Aceitando a necessária convalidação entre ambas, poderão estruturar-se os pilares de uma civilização e de uma história que não tem porque ser formalmente religiosa ou ateia, tem que ser simplesmente humana.[14]
Reitera-se, assim, que praticamente toda ética se estrutura embasada em preceitos morais advindos de algum dogma religioso e, como já foi dito, a detentora majoritária das rédeas sobre a convenção desses preceitos morais, por ser a religião predominante no país, é o ideário cristão. Seria um tanto quanto ingênuo acreditar que a construção dos valores seguidos em nossa sociedade estaria isenta da influência dos dogmas da Igreja. Esta instituição, por sua vez, identifica o início da vida no momento da concepção, ou seja, a partir do encontro dos gametas masculino e feminino no ventre materno e, por conseguinte, considera inadmissível um atentado à suposta vida do produto da concepção sendo, portanto, veementemente contrária à prática do aborto.
A discussão moral circundante à pratica do aborto eugênico reside, portanto, no suposto exercício arbitrário de aniquilação de uma vida e das motivações, após comprovação genética, que levam as gestantes a optarem pela operação. Observa-se, assim, o dilema moral em torno da gravidez: permitir o nascimento do filho com baixa ou nenhuma expectativa de vida, ou praticar o aborto?[15]
Condição de arbitrariedade defendida pelos críticos do aborto previamente desqualificada uma vez que, ao estabelecer terminologicamente a expressão, delimitou-se que o propósito dessa atividade é a retirada do produto da concepção do ambiente uterino em função da inviabilidade de sua vida extrauterina. Quanto às motivações para prática, mediante comprovação genética indubitável, não poderiam ser mais nobres. Submeter a gestante, compulsoriamente, ao desgaste físico, emocional e psicológico de gerir um feto que, sabidamente, não possuirá capacidade de vida extrauterina é, sem sombra de dúvida, uma atitude, no mínimo, cruel.
- APARENTE CONFLITO ENTRE DIREITOS PERSONALÍSSIMOS
Após desmitificada a questão moral quanto ao tema, percebe-se, ainda, juridicamente, um suposto conflito entre direitos fundamentais na discussão sobre o aborto eugênico. O conflito, a nosso ver, ocorre entre direito à vida do feto versus dignidade da pessoa humana da gestante. Os críticos da prática abortiva incessantemente invocam o direito à vida, garantido legalmente no caput do artigo quinto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, como argumento para o impedimento da prática. Vejamos:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]
A elucidação da questão do direito à vida, inviolável segundo nosso ordenamento, salvo casos especificados em lei, trazida pelos críticos da prática abortiva deve, antes de tudo, responder à seguinte pergunta: “quando se inicia a vida? ”. Parece-nos estéril uma discussão acerca da proibição ou não do aborto sem que se delimite, de antemão, quando se entende que se inicia a vida. Percebendo a multiplicidade de respostas a esse questionamento, em função das variadas crenças, morais, ideologias e costumes, estabelecer-se-á o ordenamento jurídico como parâmetro de avaliação. Vale ressaltar que reconhecemos que as leis não devem ser adotadas como a fonte da razão suprema sem uma prévia reflexão sobre seu conteúdo. Lição valiosa aprendida, infelizmente, após o regime imputado na Alemanha nazista de Adolf Hitler.
É, portanto, uma indagação sobre a definição de pressupostos que, no âmbito jurídico, apresenta-se por meio das teorias da aquisição da personalidade, cujas mais famosas são: natalista, concepcionalista e condicionalista.
Discorrendo, grosso modo, a teoria natalista, adotada por Caio Mário da Silva Pereira e Silvio Rodrigues, dentre outros, revela que a aquisição da personalidade ocorre no momento do nascimento com vida, que se consuma com a respiração.[16] A teoria concepcionalista, por sua vez, entende que o direito à vida surge desde a concepção, e não apenas com o nascimento com vida. Assim, o nascituro possui proteção jurídica, fundamento defendido por Francisco Amaral e Maria Helena Diniz.[17] Já a teoria condicionalista, sustentada na doutrina de Fábio Ulhoa Coelho e Sílvio de Salvo Venosa, que dizem ser o nascituro uma pessoa com personalidade, estando o gozo de sua capacidade condicionado ao nascimento com vida.[18]
A matéria concernente ao momento da aquisição da personalidade jurídica está disciplinada no artigo segundo do Código Civil brasileiro de 2002, como pode ser observado a seguir:
Art. 2º. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
A redação desse artigo parece, em um primeiro momento, abarcar o conteúdo das três teorias da aquisição da personalidade supracitadas, porém, em uma análise minuciosa sobre o texto é possível reaver essa interpretação. Entendemos que o texto de lei mencionado declara que o indivíduo se torna de fato, um sujeito de direitos, apenas a partir de seu nascimento com vida, isto é, após a expulsão completa do feto do organismo da mãe e a observação de seus primeiros sinais vitais,[19] condição claramente explicitada na parte ab initio do referido artigo. Esse trabalho adota como pressuposto, por conseguinte, a teoria natalista como aquela vigente no ordenamento jurídico brasileiro.
O nascituro, por sua vez, não é considerado pessoa em função de ainda não ter alcançado o marco inicial determinado pelo sistema para pertencer a tal condição, qual seja, o nascimento com vida, tendo seus direitos condicionados a esse fato jurídico, sendo esses, assim, apenas expectativas de direitos.
Segundo o ordenamento, portanto, a aquisição da personalidade, isto é, pertencimento à qualificação de pessoa, está condicionada ao nascimento com vida do feto. Salienta-se que o fundamento máximo do sistema jurídico brasileiro, segundo o artigo primeiro, inciso terceiro da Constituição Federal de 1988, é a proteção da dignidade da pessoa humana e que, dessa maneira, em hipótese alguma sua incolumidade deve ser violada.
Retornando à questão do conflito entre os direitos personalíssimos mencionado, qual seja, o direito à vida do feto versus a dignidade da gestante, acreditamos ser inaceitável a ponderação favorável ao suposto direito à vida de um ser que, para o ordenamento, não é nem mesmo ainda considerado pessoa, enquanto do outro lado, encontra-se uma pessoa de fato cuja proteção é garantida e obrigatória segundo à lei. Seguindo essa linha, destaca-se importantíssimo trecho escrito pela jurista Maria Helena Diniz:
Os bioeticistas devem ter como paradigma o respeito à dignidade da pessoa humana, que é o fundamento do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, III) e o cerne de todo o ordenamento jurídico. Deveras, a pessoa humana e sua dignidade constituem fundamento e fim da sociedade e do Estado.[20]
Percebe-se que a defesa da incolumidade da dignidade humana da gestante, pautada na proteção de todos os aspectos que garantam uma vida digna a sua pessoa, quais sejam, a integridade física, mental, psicológica e emocional, devem ser respeitados e garantidos por todos a fim de que o objetivo central do ordenamento, isto é, a proteção da dignidade da pessoa humana, seja efetivado.
- ABORTO ANENCEFÁLICO
Retomando à problemática do aborto eugênico, diversos juízes nos últimos anos passaram a decidir favoravelmente à realização da prática em um caso específico de mutação congênita, qual seja, o caso de anencefalia, criando uma jurisprudência cuja visão garantia o direito de escolha da gestante quanto à prática abortiva. Essa doença, segundo a conceituação do cientista William Bell, é a malformação letal na qual a abóbada do crânio é ausente e o crânio exposto é amorfo[21] e entre 75 e 80 por cento desses recém-nascidos são natimortos e os restantes sucumbem dentro de horas ou poucos dias após o nascimento.[22]
Se por um lado há controvérsias quanto à existência da vida propriamente dita do produto da concepção nos casos ordinários de aborto, na questão do feto anencefálico essa dúvida se desfalece. Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM) os anencéfalos são natimortos cerebrais, em função da ausência do encéfalo em sua cavidade craniana. Fetos anencéfalos são, portanto, seres que sobrevivem às custas do organismo materno, não há que se falar, assim, em vida quando se trata desses organismos. Especialmente após a resolução nº 1.480/97 do CFM que determina que a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte.
Sobre essa questão, mostra-se crucial a observação de trecho presente na decisão do alvará emitido pela comarca de Londrina em sua segunda vara criminal em 01/12/1992:
[...] Não há razão para deixar de afirmar que, no caso de anencefalia, a vida que subsiste não é propriamente falando uma vida humana, a vida de um ser destinado a chegar a ser pessoa humana. Não se está admitindo a indicação eugênica com o propósito de melhorar a raça ou evitar que o ser em gestação venha a nascer cego, aleijado ou mentalmente débil. Busca-se evitar o nascimento de um feto cientificamente sem vida, inteiramente desprovido de cérebro e incapaz de existir por si só [...]
O Supremo Tribunal Federal decidiu, em abril de 2012, a permissividade da prática abortiva em casos de feto anencefálico. Ressalta-se que essa decisão não obriga as gestantes a realizarem o aborto no caso de anencefalia, mas as concede a possibilidade de o fazê-lo caso queiram. Os defensores do aborto eugênico, entretanto, vão além, defendem a interrupção seletiva da gravidez em todos os casos de anomalia genética irreversível que impeçam a vida extrauterina.
Essa interrupção deve, porém, ser pautada em três pontos essenciais: (i) somente anomalia do feto que inviabilize sua vida extrauterina; (ii) o diagnóstico deverá ser inquestionável; (iii) também deve ser considerado o dano psicológico para a mulher, decorrente de uma gravidez, cujo feto não apresentaria sobrevida. Os juízes, portanto, na fundamentação das sentenças a fim de permitir o aborto no caso de doenças genéticas irreversíveis, sustentam a ideia de que os referidos fetos não possuem vida ou, não serão capazes de dar continuidade à “pouca vida” que possuem e, como argumento secundário, remetem ao dano psicológico irreversível à incolumidade psicossomática da gestante.
A interrupção seletiva da gravidez em casos de impossibilidade de vida extrauterina do feto, decorrente de mutação congênita irreversível, deve ser permitida e regulamentada no ordenamento jurídico visando a proteção de um direito personalíssimo fundamental da mulher gestante, qual seja, a sua dignidade humana. Críticos dessa prática abortiva se respaldam nas normas morais imputadas na sociedade, em grande parte e, nesse caso específico, pela Igreja Católica, que dita o início da vida no momento da fecundação e, em decorrência disso, a impossibilidade do aborto. Promovendo, assim, o aparente conflito entre direitos personalíssimos, qual seja, o direito à vida do feto x dignidade humana da gestante.
Esse trabalho, entretanto, parte do pressuposto, embasado na análise jurídica do Código, de que a teoria vigente no sistema jurídico é a natalista. Devido a isso, o início da vida se dá a partir do nascimento com vida do produto da concepção e, com isso, exercer o direito ao aborto não seria uma violação ao direito fundamental à vida garantido constitucionalmente, uma vez que o ser em gestação não é propriamente qualificado como pessoa.
Pautado nas premissas demonstradas, entendemos que a permissividade do direito à prática abortiva nos casos de anencefalia é essencial e fundamental. A problemática presente nos casos ordinários de aborto não se apresenta nas situações de aborto anencefálico, uma vez que a discussão subjetiva quanto ao início da vida já não encontra unanimidade entre os próprios críticos, dado que esse feto não possui massa encefálica, constatação sabidamente definida pela Medicina, e, portanto, seriam incapazes de adquirir a capacidade única e exclusiva dos seres humanos, qual seja, consciência e humanitude. Paralelamente a essa questão, está a grave violação à dignidade da mulher ao obrigá-la, compulsoriamente, a gerir um feto sabidamente natimorto ou, na melhor das hipóteses, morto dentro de alguns dias.
Seguindo essa linha de raciocínio na problemática do aborto eugênico, a proteção da dignidade humana da mãe na defesa da remoção do feto, cuja expectativa de vida é baixa ou inexistente, é incontestável. A partir da argumentação demonstrada nesse artigo científico, propõe-se a adição de um inciso, na forma de excludente de ilicitude, no art. 128 do Código Penal, que determina quais são as hipóteses de realização da prática abortiva sem que haja sanção estatal. Esse excludente de ilicitude deve propor, em sua hipótese normativa, a permissividade do aborto de feto anencefálico como fato jurídico lícito resguardado pelo Estado.
- EUGENIA POSITIVA E NEGATIVA
Novos temas das ciências biomédicas têm ocupado com maior frequência páginas de jornais, revistas e artigos, suscitando questões éticas e legais, que poderão influir a ponto de promover alteração ou até mesmo, a criação de novas leis para regulamentar seus usos, como a Lei nº 8.974, de 06 de janeiro de 1995, que foi criada para proibir a clonagem humana e a manipulação genética de células germinais.[23]
Neste trabalho será abordado o tema da eugenia, que foi tida como vilã no século XX devido ao mau uso dos cientistas nazistas, mas começou a ser vista com melhores olhos a partir de sua utilização na prevenção de genes malquistos - um traço da eugenia negativa. Tanto a eugenia negativa, bem como a eugenia positiva serão abordadas neste trabalho.
O enfoque será na reprodução eugênica positiva e negativa e para falar sobre este tema, não tem como deixar de conceituar ambas. Elucidativos foram os conceitos de eugenia positiva e negativa citados por Fraga; Silva (2010, apud SCHRAMM apud SANTOS, CALDEIRA, FONSECA, BRITO, JÚNIOR e ALMEIDA (2013, p. 5), que dizem:
A eugenia positiva é dada por uma ação positiva de seleção, ou seja, numa conduta explícita de seleção de gametas voltada para obtenção de características desejadas.[...]
[...] A eugenia negativa, por sua vez, é dada pela supressão de dados caracteres que venham a ocasionar num futuro próximo ou remoto, doenças ou moléstias no indivíduo.
Deste modo, a eugenia positiva pode ser caracterizada pela escolha de determinadas características, como: “inteligência elevada, com constituição corpórea distinta ou com alguma característica escolhida pelos pais em laboratório.” [24] Já a eugenia negativa consiste em poupar-se de ter filhos com más formações genéticas (seja com o fim de evitar-lhes sofrimentos, ou para promover proteção própria e dos demais filhos) seja adotando cautelas para não ter filhos, seja para assegurar-se de que nascerão sadios.[25] Medidas como os anticoncepcionais, a esterilização e o aborto eugênico tratam-se de medidas eugênicas negativas[26].
Quanto aos dilemas morais, a eugenia positiva não é bem aceita por gerar uma preferência por fenótipos e características psicofísicas consideradas “ideais”, por sua vez, suscitando preconceito; em relação à eugenia negativa, sendo mais bem aceita pela sociedade, dado o caráter de saúde implícito no seu uso. Porém, segundo Mai; Angerami (2006, p. 4):
[...] algumas medidas negativas eram aceitas e apoiadas, outras mais radicais como o controle da natalidade, a segregação e esterilização dos inaptos e o aborto eugênico geravam grande discussão e polêmica, tornando-se alvo de fortes oposições de setores como a Igreja e alguns grupos médicos mais conservadores.
Faz-se mister pontuar, o fato de a eugenia positiva e negativa diferenciarem-se da eugenética positiva e negativa. Assim como explicitado, por Mai; Angerami (2006, p. 7):
“(...), no início do século XX, eugenia positiva implicava em ações para estimular a boa reprodução; eugenia negativa em ações para limitar a má reprodução. Por outro lado, no início do século XXI, eugenética negativa implica em ações para prevenir doenças genéticas; eugenética positiva especula sobre criar ou melhorar características físicas e mentais do futuro ser.”
Ademais, o conceito trazido por Schramm (apud FRAGA; AGUIAR, 2010, p. 6), faz-se complementar ao anterior:
“Num sentido mais técnico, eugenia é um termo genérico do século XIX, que indica a ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento da espécie humana; eugenética representa a forma contemporânea da eugenia, uma tecnociência nascida, nos anos 70, do encontro entre genética, biologia molecular e engenharia genética;(...)"
- PRÁTICAS REPRODUTIVAS EUGÊNICAS
Tendo em vista a eugenia, Casabona (1999) traz três paradigmas essenciais a regulação da eugenia que se projetam fundamentalmente nas práticas reprodutivas: (1) autorresponsabilidade; (2) a responsabilidade reprodutiva e (3) as limitações reprodutivas.
O primeiro, por tratar-se de algo relacionado à decisões privadas, é considerado pelo autor como juridicamente irrelevante. Portanto, abordaremos a responsabilidade reprodutiva e as limitações reprodutivas. Essa é provocada compulsivamente nos interessados e, nestes casos, comporta restrições indiretas à liberdade de reprodução[27]; e a segunda, por sua vez, restringe ou proíbe o direito à reprodução em determinadas circunstâncias. Ambas serão abordadas a seguir.
- EUGENIA: RESPONSABILIDADE PRODUTIVA
Os direitos reprodutivos, implicitamente, sempre foram reconhecidos e tinham restrições apenas quanto à idade. Porém, em face do avanço da tecnologia genética e a sua disponibilização à sociedade, alguns direitos têm sido reformulados, especialmente os relacionados às manifestações negativas da eugenia. (CASABONA, 1999, p.178-179).
Segundo Casabona (1999, p. 179), estas formulações implicaram na denominada “Responsabilidade reprodutiva”, que é a parte que cabe aos pais e ao Estado prover as condições de saúde dos descendentes. Com base nesta responsabilidade, alguns países criaram leis e procedimentos de controle da natalidade dos genes imperfeitos. Como é o caso de Chipre, que exige o teste genético em exames pré-nupciais:
Assim, a verificação de teste genético em relação à talessemia, é obrigatório para todas as pessoas, antes de contrair matrimônio no Chipre, devendo-se submeter unicamente os membros do casal unicamente às provas correspondentes e conhecer seus resultados mediante certificado pré-nupcial, que foi aceito pela igreja chipriota. (Casabona, p. 181)
Dentro do parâmetro da ‘Responsabilidade Reprodutiva’ o casal deveria ter a liberdade de escolher qual método de eugenia seria melhor praticar, se a eugenia positiva (reprodução assistida) ou eugenia negativa (anticoncepcionais, esterilização e aborto), ou se não queria praticar qualquer que fosse o método, mas a obrigatoriedade do diagnóstico pré-nupcial tem se tornado polêmica devido à possibilidade de ter ofendido o seu direito à procriação, o qual é um direito fundamental. Pois, quando a sua liberdade de escolha é viciada por um procedimento determinado por terceiros - ainda que seja o Estado em nome de uma provável saúde - e em função disso seu direito fundamental de reprodução é violado, entra-se em outro parâmetro da eugenia: as Limitações Reprodutivas.
- EUGENIA: LIMITAÇÕES REPRODUTIVAS
Conforme Casabona (1999, p. 184) a polêmica ao redor da obrigatoriedade do diagnóstico pré-conceptivo e de rastreamento genético imposto pelos poderes públicos de anticonceptivo, esterilização, aborto e matrimônio, como tem acontecido na República da China tem causado grande discussão:
Na República Popular da China, todos os casais devem obter um certificado pré-matrimonial, antes de contrair matrimônio, que consistirá na realização de provas sobre três grupos de doenças: a) doenças genéticas graves, b) doenças infecciosas, e c) doenças mentais graves (art. 8º) (CASABONA, 1999, p. 181).
Esta imposição, como é o caso da China tem gerado debates mundiais, pois furta-se ao casal o direito fundamental de reprodução. Quando uma família é tolhida do direito de poder ter descendência pelo risco da imperfeição, seja pela esterilização ou o aborto, ela sofre uma grande agressão. No caso do aborto imposto, o dano psicológico é ainda maior, pois o filho já está no imaginário daquela família e pode já ser amado, independente dos padrões de perfeição.
Destarte, quando se analisa do ponto de vista da obrigatoriedade, em que o Estado assume um controle rígido da natalidade, com o propósito de uma sociedade perfeita, ele fere os direitos fundamentais da dignidade humana, impedindo a pessoa da liberdade ser quem é, podendo este estado incorrer na prática de preconceito e barbárie praticada na antiguidade, o qual sacrificava e escondia crianças “com defeito”. É possível através da eugenia também auxiliar e muito o casal sem os abusos de autoridade e sem agredir lhes direitos fundamentais, quando lança mão método da Eugenia Positiva e da Reprodução Assistida para resolver os problemas de concepção do casal.
- EUGENIA POSITIVA E A REPRODUÇÃO ASSISTIDA
As técnicas de reprodução assistida permitiram que casais que sonhavam em ter filhos, mas não o faziam por medo de tê-los com doenças ou malformações - identificados através do diagnóstico pré-conceptivo ou pré-implantatório, pudessem escolher os gametas ou zigotos, eliminando ou diminuindo os riscos de problemas de origem genética.
Porém, faz-se necessário assinalar que a eugenia positiva pode ser utilizada não apenas para descarte de zigotos ou gametas patógenos, mas também para predileção de características ansiadas.
O direito, em contrapartida, regula esta utilização abusiva de direito, não acolhendo este uso. Por exemplo, pode-se citar o direito norueguês e alemão, os quais proíbem terminantemente o uso da reprodução assistida com a finalidade de escolha do sexo, a não ser que na família tenha problemas genéticos que costumam desenvolver-se em determinado sexo, ou seja, somente é permitida a escolha do sexo para prevenir patologias.
Nota-se o quão defasada ainda é nossa sociedade atual quanto ao respeito da dignidade dos seres humanos. Não há aqui a pretensão de se posicionar contrário a utilização da tecnologia para tocar no gene humano – a Eugenia, mas contrário à barbárie praticada em nome de um ideal de sociedade. É obvio que as discussões são válidas para chegar-se a consenso, pois existem parâmetros de saúde que necessitam de intervenção, principalmente se há tecnologia para ajudar a diminuir e até evitar o sofrimento de uma família, por que não fazê-lo? No entanto não se pode perder de vista os direitos fundamentais que todo ser humano tem, os quais devem ser estendidos a ele como família.
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