A MPv nº 961/2020 e o Regime Diferenciado de Contratações

Entre as vantagens do regime e os riscos da mensagem

13/05/2020 às 16:17
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O artigo se volta à análise da MPv nº 961/2020, com foco na ampliação da aplicabilidade do Regime Diferenciado de Licitações, analisando suas vantagens, registrando, contudo um temor pelo fato de ser a Lei nº 12.462/2011 formalmente inconstitucional.

 

 

INTRODUÇÃO

 

No dia 06 de maio de 2020, fora editada a Medida Provisória nº 961/2020, introduzindo novas soluções voltadas a facilitar as operações da Administração Pública enquanto perdurar o estado de calamidade ocasionado pelo novo coronavírus. Trata-se, pois, de mais uma das medidas, entre outras adotadas, que visam a instrumentalizar a Administração no momento atual de crise em razão da pandemia.

 

Entre as medidas estatuídas pelo referido ato normativo, encontra-se a permissão para uso do Regime Diferencial de Contratações - RDC, por quaisquer das Administrações Públicas e para quaisquer contratos.

 

No presente, será realizada uma breve apresentação do RDC, das vantagens do Regime, sobretudo no momento atual, pontuando-se, entretanto, os riscos da ampliação de sua utilização, mormente porque regulamentado em lei inconstitucional.

 

1. A MEDIDA PROVISÓRIA Nº 921/2020

 

A Medida Provisória nº 921/2020 advém de uma proposta realizada pelo Ministério da Economia à Presidência da República com a finalidade de facilitar e garantir as contratações públicos durante o estado de calamidade pública enfrentado em razão do coronavírus (covid-19).

 

Já havia, anteriormente, sido editada a Lei nº 13.979/2020, que posteriormente veio a ser alterada pela MPv º 926/2020, oferecendo soluções para as contratações que visam ao combate da emergência de saúde pública decorrente do surto do novo vírus[1]. A nova medida, entretanto, reconhece que as dificuldades a serem enfrentadas pela Administração não serão apenas para as contratações que buscam soluções para o estado emergencial, mas para as contratações em geral, trazendo, portanto, novas medidas.

 

Para tanto, o referido ato normativo admite que, no período de calamidade pública, seja possível o pagamento antecipado em contratações realizadas pelo Poder Público, adequa os limites da dispensa de licitação e amplia o uso do Regime Diferenciado de Contratações, com efeitos para enquanto durar a crise ora em curso.

 

O pagamento antecipado em licitações e contratos administrativos vinha sendo protestado pelos administradores e por demais operadores do Direito que atuam na área. Sobretudo em momentos como atuais, as vantagens obtidas com o pagamento antecipado podem ser diversas. Tornando as contratações públicas mais atraentes para os particulares, permite-se a obtenção de mais ofertas e melhores preços.

 

Em momento de crise, em que a oferta de alguns bens e serviços pode se tornar escassa e ser disputada entre o Estado e particulares, ou mesmo entre o Estado brasileiro e outros Estados, é necessário que a Administração goze de possibilidade normativa para competir, para atrair interessados em contratar e de conseguir melhores ofertas[2].

 

Como visto, há ainda um aumento dos limites financeiros para as dispensas de licitações para obras e serviços de engenharia, bem como para outros serviços e compras (art. 24, I e II, da Lei nº 8.666/93). É fato que a licitação é um procedimento complexo e burocrático e que pode ser contraproducente em momentos de calamidade. A mais, sempre foi questionável se o estabelecimento de valores fixos em leis seja a melhor técnica normativa, sendo certo que o processo legislativo tende a não acompanhar o ritmo das alterações fáticas e os valores tendem a se tornar defasados.

 

Por fim, a MPv permite a aplicação do RDC para licitações e contratações de quaisquer obras, serviços, compras, alienações e locações. Sobre este último aspecto serão debruçados maiores comentários a fim de realizar uma breve apresentação do regime diferenciado, analisar as vantagens de sua aplicação, mas, também, alertar sobre os riscos da ampliação de sua aplicabilidade.

 

2. O REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES - RDC

 

Em linhas básicas, o Regime Diferenciado de Contratações – RDC foi estatuído pela Lei nº 12.462/2011, como um regime licitatório mais eficiente e voltado às contratações necessárias para a realização da Copa das Confederações de 2013 e da Copa do Mundo de Futebol de 2014, bem como das Paraolimpíadas e Olimpíadas de 2016.

 

Assim, a necessidade de implantação da infraestrutura necessária para a realização dos eventos esportivos em um curto espaço de tempo despontou como oportunidade para a experimentação de um novo modelo licitatório, mais atual.

 

A Lei do RDC possui um caráter regulativo brando, estabelecendo poucas regras com alto grau impositivo. Nele, há possibilidades procedimentais, não estancando “modalidades licitatórias”, como outrora. O procedimento licitatório é maleável, podendo ser definido motivadamente no caso concreto pelo Gestor. Como guia às escolhas que a Administração fará ao “desenhar” a licitação, a Lei determina seus objetivos.

 

A Lei nº 12.462/2011 permite, ainda, que as suas licitações adotem a unificação da fase recursal e a inversão das fases de habilitação e julgamento de propostas, como medidas de simplificação, celeridade e diminuição da litigiosidade. O diploma incentiva o uso de soluções digitais, por meio da internet, como meio de desburocratizar, reduzir os custos, aumentar a possibilidade de participação. Permite que se contrate o segundo colocado no certame, pelo preço por este ofertado, caso o primeiro venha a desistir.

 

O RDC possui uma fase de negociação entre Administração e licitante, que potencializa o alcance da melhor oferta. O orçamento prévio passa a ser, em regra, sigiloso, devendo ser disponibilizado, enquanto sobrestar o certame, apenas aos órgãos de controle externo e interno, a fim de que este não seja parâmetro para a oferta dos licitantes. Há, ainda, possibilidade de remunerar-se de forma variável o contratado, de acordo com seu desempenho, como incentivo a uma boa execução dos objetos contratuais, ao uso dos melhores meios e obtenção dos melhores resultados, inclusive do ponto de vista ambiental.

 

Merece destaque, ainda, no campo das obras e serviços de engenharia, a inserção de um novo regime de execução, a contratação integrada, trata-se de regime de execução indireta de obras e serviços de engenharia através do qual caberá ao contratado e realização de todas as etapas necessária à realização do objeto contratual, desde a elaboração e o desenvolvimento dos projetos básico e executivo, a execução de obras e serviços de engenharia, a montagem, a realização de testes, a pré-operação e todas as demais operações necessárias e suficientes para a entrega final do objeto.

           

2.1. VANTAGENS DO RDC EM TEMPOS DE PANDEMIA

 

Como visto, o RDC prima pela eficiência, disponibilizando, ao Gestor, um procedimento mais simplificado, que visa à obtenção de licitações mais céleres, menos custosas e mais eficazes.

 

Num momento como o atual, de crise causada por uma pandemia, a Administração Pública não apenas se depara com necessidades extraordinárias, como também com dificuldades para tratar de suas obrigações ordinárias. Com efeito, se um procedimento licitatório já é complexo em momentos de normalidade, em momentos como o atual, sua elaboração e execução se torna ainda mais complicada.

 

Assim, facilidades na fase interna da licitação cooperam com o atendimento das dificuldades que a paralização de alguns serviços, a impossibilidade de aglomeração de servidores na repartição pública, com a atenção voltada a outras situações sobrevindas geram.

 

A simplificação do procedimento diminui os esforços necessários, permitindo que os servidores possam se dedicar também a outras atividades que precisam ser adaptadas e atendidas diante da emergência de saúde pública. Tornar mais célere o procedimento, igualmente, permite que os servidores destacados para determinada licitação possam dela se desincumbir com mais rapidez, bem como que a necessidade seja mais prontamente atendida, com a celebração do contrato e início da execução.

 

A mais, dar escolhas ao Gestor para formular o seu certame de acordo com o caso concreto é essencial em um momento em que adaptações precisam ser emergencialmente adotadas para que a Administração continue a exercer suas atividades.

 

Embora as medidas inovadoras do RDC ainda sofram avaliações de seus operadores, que por vezes discordam sobre suas vantagens e desvantagens, é algo cada vez mais unanime que, de um ponto de vista generalizado, as contratações por ele realizadas, são, de fato, mais eficientes que a Lei nº 8.666/93, cuja obsolescência há muito é denunciada. Se a eficiência já é algo a ser prosseguido em momentos de normalidade, com mais força se torna necessária em um momento de crise como o atual.

           

2.2. DESVANTAGENS: OS RISCOS DA AMPLIAÇÃO DE UMA LEI INCONSTITUCIONAL

 

Há vantagens claras na adoção do RDC, sendo, contudo, necessário apontar-se os riscos que há na ampliação de sua aplicabilidade. A Lei nº 12.462/2011 possui grave inconstitucionalidade formal para a qual, até a presente data, não foi ofertada resposta contundente.

 

A Lei do RDC nasceu da conversão irregular da MPv nº 527/2011 em lei. Ocorre que, a referida MPv trazia medidas relacionadas a organização da Administração Pública e acerca da aviação civil tal como expunha seu preâmbulo[3].

 

Percebe-se que a norma não guarda nem mesmo semelhança temática com a lei decorrente de sua conversão[4], norma geral sobre licitações que é[5]. Tramitam, no Supremo Tribunal Federal – STF, a ADI 4645 e a ADI 4655, que se insurgem contra a inconstitucionalidade formal da Lei.

 

Há, portanto, na edição da Lei nº 12.462/2011, evidente abuso do poder de emendar medidas provisórias, atentando contra o devido processo legislativo, contra a separação dos poderes e, mesmo, contra a ordem democrática. A medida provisória foi instituída, pelo Constituinte, como competência do Chefe do Executivo Federal, como medida excepcional, para que este, que possui contato direto com a conjuntura pública do país, diante da situação de relevância e urgência, possa adotar medidas com força de lei sem que haja necessidade de se submeter às maiores formalidades do processo legislativo. Não se trata, entretanto - e evidentemente -, de ato normativo instrumental para que o Legislativo utilize de “carta branca” para injetar matérias que lhe pareçam convenientes.

 

A Lei 12.462/2011, outrossim, que surgiu como um diploma transitório, teve sua aplicação ampliada por reformas posteriores, a despeito de sua inconstitucionalidade.

 

A utilização do regime já está permitida também para as ações integrantes do Programa de Aceleração do Crescimento; para a realização de obras e serviços de engenharia no âmbito dos sistemas públicos de ensino e também no âmbito do Sistema Único de Saúde; para obras e serviços de engenharia para construção, ampliação e reforma e administração de estabelecimentos penais e de unidades de atendimento socioeducativo;  nas ações no âmbito da segurança pública; para obras e serviços de engenharia, relacionadas a melhorias na mobilidade urbana ou ampliação de infraestrutura logística; para locações sob medida (built to suit); nas ações em órgãos e entidades dedicados à ciência, à tecnologia e à inovação; entre outras contratações previstas em leis esparsas.

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A Lei inconstitucional se pereniza no ordenamento jurídico. É de se notar, ainda, que a imensa maioria das alterações no âmbito de aplicação do RDC foi operacionalizada por medidas provisórias, que, por mais que constitucionalmente previstas, e posteriormente convertidas em Lei, deveriam ser um instrumento excepcional, para necessidades extremas.

 

A Lei nº 12.462/2011 possui, portanto, um histórico de relativização da Constituição Federal extremamente nocivo. Trata-se diploma que em sua origem, bem como nas alterações sofridas, é marcado pela fuga ao processo legislativo.

 

Por tal motivo se falar no risco de sua ampliação para todas as contratações públicas formuladas pela MPv nº 961/2020. O desrespeito ao processo legislativo é um desrespeito à democracia, é um desrespeito aos valores republicanos, é uma subversão do papel do Legislativo como representante da vontade popular, papel este que, por sinal, já sofre outros desgastes.

 

A Lei fora editada em 2011 e já nessa época se denunciava a sua inconstitucionalidade.  O Legislativo possuiu tempo suficiente para propor uma regularização para a situação, para editar um diploma mais atual para reger as licitações e contratos nacionais, que bebesse dos aprendizados do Lei nº 8.666/93, da Lei nº 12.462/2011 e das demais legislações sobre a temática. O judiciário, provocado pelas ADIs propostas, possuiu, igualmente, longo prazo para exercer a proteção da Constituição e apontar a inconstitucionalidade da Lei do RDC.

 

Ampliar o RDC, elevá-lo à condição de regra, é difundir uma mensagem que a Constituição pode ser relativizada por “jeitinhos”, por “puxadinhos” em diplomas normativos.

 

NOTAS FINAIS

 

Mostrou-se, no presente, que a permissão de utilização do Regime Diferenciado de Contratações para qualquer contratação pública a ser realizada no período de crise gerada pela pandemia do novo coronavírus possui vantagens de relevo, sobretudo por permitir contratações mais céleres, econômicas e eficazes num período que a Administração Pública enfrenta dificuldades que há meses atrás seriam inimagináveis e incalculáveis.

 

Contudo, não se pôde deixar de pontuar os riscos que há em se permitir, em tamanha amplitude, o uso de uma lei inconstitucional. Firmou-se, portanto, posição no sentido de que há muito o Poder Público deveria ter adotado medidas para editar um diplomar mais eficiente para reger as licitações e contratos administrativos, com respeito ao processo legislativo, e, portanto, da própria democracia.

 


[1] Sobre a Lei nº 13.979/2020, escrevemos em: < QUINTELLA, Luiz; GONZAGA, Júlia de Almeida. Dispensa de licitação para combate ao coronavírus: análise da hipótese de contratação direta da Lei 13.979/2020. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6117, 31 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80678 >. Acesso em: 8 maio 2020.

[2] Sobre o tema, recomenda-se a leitura de artigo recentemente disponibilizado: PEDRA, Anderson Sant’Ana; et. al. A Mística da Impossibilidade de Pagamento Antecipado pela Administração Pública. Disponível em: < https://ronnycharles.com.br/a-mistica-da-impossibilidade-de-pagamento-antecipado-pela-administracao-publica/> . Acesso em: 08 de maio de 2020.

[3] Para ser mais exato, a Lei 12.462/2011 ainda possui, como “Capítulo II”, regras pertinentes ao texto original da Medida Provisória, que, ficam, entretanto, à sombra das regras de licitações, obscuramente inseridas no diploma.

[4] Vide: ROSILHO, André. O Regime Diferenciado de Contratações/RDC e Seu Controle. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Coord). Contratações Públicas e seu Controle. São Paulo: Melhoramentos, 2013.  p. 151.

[5] Sobre a Lei nº 8.666/93 como norma geral de licitação pública nos manifestamos em: QUINTELLA, Luiz. A Lei 12.462/2011 como norma geral de licitações. Breves (e pontuais) comentários acerca do Regime Diferenciado de Contratações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4128, 20 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30394. Acesso em: 12 maio 2020.

 

Sobre o autor
Luiz Quintella

Advogado no Escritório Jacoby Fernandes & Reolon. Mestre em Direito Administrativo pela Universidade de Lisboa. Especialista em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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