A verdade real, formal e processo penal brasileiro.

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23/05/2020 às 09:07

Resumo:


  • A verdade processual é um elemento essencial no processo penal brasileiro, visando a reprodução mais fiel possível dos fatos que originaram o delito.

  • O princípio da verdade real no processo penal exige do juiz uma postura ativa na busca por provas, diferentemente da verdade formal adotada no processo civil, onde prevalece o que foi apresentado pelas partes.

  • Embora a busca pela verdade real seja um ideal, na prática, o que se obtém é uma verdade processual ou aproximada, limitada pelas provas e pela interpretação jurídica dos fatos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

[1] A contemporânea noção de verdade fora erigida ao longo de séculos e, desde a Antiguidade seu conteúdo foi misturando a concepção grega, latina e hebraica. Em grego, a verdade (aletheia) significa aquilo que não está oculto, o não escondido, manifestando-se aos olhos e ao espírito, tal como é, ficando evidente à razão.

Em latim, a verdade (veritas) é aquilo que pode ser demonstrado com precisão, referindo-se ao rigor e a exatidão. Assim, a verdade depende da veracidade, da memória e dos detalhes. Em hebraico, a verdade (emunah) significa confiança, é a esperança de que aquilo que é será revelado, irá aparecer por intervenção divina. Em outras palavras, a verdade é convencionada pelo grupo que possui crenças em comum.

[2] Escreveu Malatesta: “A justiça penal não atinge seus fins, golpeando um bode expiatório qualquer; precisa do verdadeiro delinquente, para que se torne legítima a sua ação. Sem a certeza da culpabilidade, mesmo havendo a aquiescência do acusado, a condenação seria sempre monstruosa, e perturbaria a consciência social mais que qualquer outro delito. Ora, desde que nem toda confissão inspira certeza da culpabilidade, segue-se que a máxima confessus pro judicato habetur, sempre boa no campo civil, deve ser rejeitada no do direito penal.”.

[3] A acareação – mecanismo jurídico processual pelo qual duas ou mais pessoas são colocadas frente a frente para esclarecerem divergências relevantes em suas declarações – talvez seja o meio de prova de efetividade mais questionada em âmbito jurídico. Muito disso se deva, talvez, a uma crença de que duas (ou mais) pessoas que prestaram declarações – em sede de investigação preliminar ou no curso do processo – tenham sempre a tendência a simplesmente manter suas versões pretéritas.

Um possível indicativo da importância da acareação como meio de prova consiste na análise do direito comparado. Com efeito, o instituto está positivado nos Códigos de Processo Penal de Portugal (art. 146), da Itália (arts. 211 e 212), da Argentina (arts. 276 a 278), do Paraguai (arts. 95 e 233) e na Ley de Enjuiciamiento Criminal Espanhola (arts. 451 a 455), apenas para ficar em alguns poucos exemplos.

No Brasil, o instituto vem positivado nas regras dos arts. 230 e 231, do CPP e nos arts. 365 a 367, do CPP Militar. Este meio de prova não está apenas a serviço da instrução processual penal, admitindo-se a possibilidade de acareações no processo civil (art. 461, II e §§ 1º e 2º, do CPC) e inclusive em processos administrativos (v.g. art. 159, parágrafo 1º, da Lei 8.112/90).

[4] No concernente à classificação da inspeção judicial, podemos dizer que em sua estrutura trata-se de prova real ou material, pois a fonte probatória é uma coisa e não uma pessoa como na prova testemunhal. Mesmo quando a inspeção recai em pessoas, estas funcionam mais como objeto de observação do juiz, ou antes, como elemento passivo do ato, de como sujeitos ativos na colaboração do convencimento do juiz.

Quanto à função, é prova crítica ou lógica e não histórica, visto não existir representação da coisa ou do fato inspecionado, mas assunção direta pelo juiz. Quanto à forma, a inspeção judicial é prova formal e não substancial, dado que o valor é apenas ad probationem (função unicamente processual) e não ad solemnitatem.

Quanto à preparação, a inspeção judicial é considerada prova causal ou constituenda, por ser formada dentro e no curso do processo, como a prova testemunhal, o depoimento pessoal e a perícia. No que diz respeito às características, a inspeção judicial é meio direto de prova em que vigora o princípio da imediação entre o juiz com seus sentidos e a fonte de prova, sem se meter de permeio nenhum elemento intermediário.

Cuida-se, outrossim, de meio de prova facultativo, pois com base nos elementos dos autos e observada a conveniência e a oportunidade o juiz determinará ou não a prova. É ainda meio de prova barato, menos custoso que a pericial e a testemunhal, basicamente o dispêndio é com o translado do juiz, das partes e dos advogados até o local do exame, e o gasto será ainda menor na inspeção realizada no próprio fórum.

A inspeção judicial é meio de prova que encerra forte carga de humildade por parte do juiz; semanticamente, porque se agita de ato judicial cujo modus procedendi é simples e singelo; etimologicamente, porque o juiz, o mais das vezes, desce do estrado, na sua posição a cavaleiro, au-dessus de la mêlée, e vai para fora do fórum fazer in loco a inspeção (a descente sur lieux do direito francês), a verdadeira justiça chã. (In: Entrevista. Disponível em? http://www.cartaforense.com.br/conteudo/entrevistas/inspecao-judicial/1443 ).

[5] Geraldo Prado ao abordar o processo histórico do Sistema Acusatório no período da Modernidade identifica que foram os pensadores modernistas os responsáveis pela ruptura com o antigo sistema, cujo propósito principal era de manutenção do poder absolutista.

O Sistema Inquisitorial tinha como base a retenção do poder nas mãos de alguns e para que se alcançassem tais fins faziam-se legitimadas as práticas de torturas para obtenção da "verdade" e as penas corpóreas como modo de punição.

[6] As provas possuem como objetivo obter o convencimento do julgador, que decide de acordo com o livre convencimento motivado ao apreciá-las, segundo o sistema adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro. Além disso, têm a natureza jurídica de direito subjetivo.

[7] Com o advento da nova Carta Constitucional, que trouxe como pilares direitos que eram outrora suprimidos, surgiu a necessidade de releitura de determinados dispositivos do ordenamento jurídico. Isso porque, dentre outros critérios para que uma norma seja considerada juridicamente válida, deve ser aferida sua compatibilidade material com a Lei Maior.

[8] O art. 317 do CPC estatui que “antes de proferir sentença sem resolução de mérito, o juiz deverá conceder à parte oportunidade para, se possível, corrigir o vício.” Trata-se, segundo entendimento de Márcio Carvalho Faria, do princípio da colaboração ou cooperação, o qual é previsto de maneira expressa no CPC, em sua parte geral, e que, dentre outras características oportunamente abordadas, consiste na observação, pelo magistrado, do chamado dever de advertência.

[9] Tornou-se recorrente a crítica feita a noção de que o juiz seja a "boca da lei", ou juiz robot que são expressões usualmente usadas em sentido pejorativo. Porém, a crítica não é justa. Pois a ideia de Montesquieu decorreu naturalmente do princípio da legalidade que, apesar de enfraquecido, continua a integrar nosso vigente sistema constitucional.

E, há outra noção que não pode ser olvidada, a de que uma sociedade de homens livres deva ser governada por leis e, não, por homens ainda que sejam juízes. Em resumo, procura-se substituir-se as discricionárias decisões judiciais (de cunho predominante político), por decisões vinculados ao sistema jurídico (decisões predominantemente jurídicas).

O juiz que obedece à lei não exerce verdadeiro poder. Defere ou indefere o pedido do autor, em obediência a um dever. O juiz que, abusando da hermenêutica, faz a lei dizer o que ele quer, este sim, exerce poder: defere ao amigo o que nega ao inimigo. A crítica mais enfática à Montesquieu baseia-se na existência de várias interpretações do texto legal, donde surge a possibilidade de extrair-se, de um texto vetusto, uma norma nova, mais consentânea com a atualidade. Enfim, trata-se da criação jurisprudencial do Direito que erige antítese ao princípio da legalidade e a supremacia da lei.

[10] Mirabete, no seu Processo Penal (1991): A verdade real surge quando “a ideia que (o juiz) forma em sua mente se ajusta perfeitamente com a realidade dos fatos.” O que é isto, senão a verdade no sentido da ontologia clássica? Como misturá-la com a verdade da metafísica moderna?

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[11] O grande busilis é que a verdade não possui um significado único, tampouco estático e definitivo, sendo influenciada por inúmeros fatores. Destarte, a construção de um sistema filosófico configura uma verdade dogmática que se contrapõem a outras verdades dogmáticas. A concepção de verdade foi objeto de estudo de diversos pensadores ao longo da história da filosofia, mas três particularmente exerceram forte influência: Leibniz, Kant e Husserl.

[12] Pelo princípio da instrumentalidade das formas, temos que a existência do ato processual é um instrumento utilizado para se atingir determinada finalidade. Assim, ainda que com vício, se o ato atinge sua finalidade sem causar prejuízo às partes, não se declara sua nulidade.

As petições iniciais, por exemplo, inauguram a fase postulatória e criam o caminho do processo com objetivo de resolver um conflito. Por conta da importância dessa peça, algumas formalidades são essenciais para sua elaboração, mas que nem sempre são seguidas à risca. Em resumo, o princípio da instrumentalidade das formas pressupõe que, mesmo que o ato seja realizado fora da forma prescrita em lei, se ele atingiu o objetivo, esse ato será válido.

[13] É importante a distinção das atividades de valoração da prova e do ato de decisão, ou melhor, de quando considerar que o processo de valoração atingiu o ponto necessário para que possa ser concluído em um sentido positivo ou negativo, na medida em que ambas atividades devem ser governadas por parâmetros distintos. Embora ambas atividades costumem ser tratadas no chamado contexto da decisão, tem razão Ferrer Beltrán ao distinguir o momento da valoração, de um lado, do momento da decisão, em si, de outro.

[14] A verdade processual deve ser entendida como uma verdade aproximativa, de onde se pode extrair que determinada tese é mais plausível (mais próxima da verdade possível  para o conhecimento humano) e preferível a outras por seu maior “poder de explicação” (sem dar preferência a uma ou outra versão dos fatos) e maior controle  (passível de prova e oposição).

Além disso, deve ser compreendida como uma verdade provável, baseada num juízo de probabilidade, particularizada com a intensa argumentação dialética entre os sujeitos cognoscentes (partes e juiz) e com a garantia do contraditório pleno em um procedimento adequado e condizente com o postulado do devido processo legal.

Por fim, a verdade no processo só pode ser construída como sendo uma verdade normativa, aquela em que, sendo convalidada pelo respeito às normas jurídicas e comprovada definitivamente pelas provas, terá valor normativo, de modo que a decisão definitiva, mesmo que não tenha sido  proferida com alto grau de certeza pelo magistrado, mas tenha mesmo assim transitada em julgado, acarretará a formação da coisa julgada e a pacificação da lide.

[15] Superado o juízo de admissibilidade probatória, é necessário que sejam produzidos os meios de provas requeridos pelas partes e deferidos pelo juiz. Novamente, haverá inegável predomínio das regras legais sobre as regras epistemológicas.

[16] A duração de um processo submetido ao sistema judicial depende de inúmeros fatores, como o tipo de  procedimento, a complexidade do caso, tempo gasto na coleta de provas, prazos para prática de atos  processuais (como os recursos, por exemplo), desempenho dos profissionais na condução do caso, cultura institucional, entre outros.

O Poder Judiciário ocupa posição de extrema relevância na organização pública, devido à natureza de suas atribuições e seus efeitos políticos e sociais, de maneira que as disfunções decorrentes de má administração atingem a sua credibilidade. Como disse Calamandrei: “Os juízes são como os membros de uma ordem religiosa: é preciso que cada um deles seja um exemplo de virtude, se não quiser que os crentes percam a fé.

[17] Um novo Código de Processo Penal é necessário, mas não pode ser qualquer um. Por isso, há a proposta de enfrentamento de questões de modo ampliado, sério e vinculado ao tanto que já se produziu sobre a questão.

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Palavras-chave: Direito Processual Penal. Fase probatória. Prova. Verdade real. Verdade formal.

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