A quebra de sigilo telefônico como meio de prova e seus requisitos

24/05/2020 às 09:56

Resumo:


  • O Ministro Celso de Mello enviou uma notícia-crime ao Procurador-Geral da República, solicitada por PDT, PSB e PV, referente a supostos crimes cometidos pelo Presidente da República, incluindo a solicitação de apreensão de celulares para perícia.

  • A produção antecipada de provas é uma medida excepcional que permite a coleta de evidências antes do momento processual adequado, sob a condição de que haja risco de perda dessas provas.

  • A interceptação telefônica e a quebra de sigilo são medidas invasivas que exigem ordem judicial e só podem ser autorizadas sob condições específicas, como a existência de indícios razoáveis de crime e a necessidade da medida para a investigação, respeitando os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

I – O FATO

O Relator do Inquérito 4.831/DF, Ministro Celso de Mello, determinou o encaminhamento  ao Senhor Procurador-Geral da República, que é o órgão da acusação, uma “notitia criminis”, com pleito de apreensão (Pet 8.813/DF), formulada por 03 (três) agremiações partidárias (PDT, PSB e PV).

Os partidos políticos em questão, ao noticiarem alegadas práticas delituosas supostamente cometidas pelo Presidente da República, assim se manifestaram quanto a esse ponto específico:

“(...) requerem a Vossa Excelência o conhecimento da presente ‘notitia criminis’, de modo a remeter os autos à Procuradoria-Geral da República para fins de adoção de todas as medidas necessárias à elucidação dos crimes outrora narrados, especificamente quanto ao ilícito de corrupção ativa (art. 333 do Código Penal), sem prejuízo de outros apurados pelo ‘Parquet’. Requerem, outrossim, a instauração do incidente de produção antecipada de provas, com a busca e apreensão dos aparelhos celulares dos Senhores Jair Messias Bolsonaro, Carlos Nantes Bolsonaro, Maurício Valeixo, Sérgio Fernando Moro e da Senhora Carla Zambelli Salgado, para fins de realização de perícia, ante a iminência de perecimento do conteúdo probante”.


II – PRODUÇÃO ANTECIPADA DA PROVA

Afinal, o que é produção antecipada da prova?

O processo tem um momento ou uma fase reservada à prova dos fatos alegados pelas partes.

No entanto há circunstâncias excepcionais que autorizam, antes do momento, a parte a promover, antes do momento processual adequado, a coleta dos elementos de convicção necessários à instrução da causa.

É o que se tem quando a parte exerce a “pretensão à segurança da prova”, sem que se possa falar em antecipação do juízo de mérito quanto ao direito substancial.

Estamos diante da produção antecipada de provas que tem cabimento qualquer que seja a natureza da futura demanda – que pode ser contenciosa, ou mesmo de jurisdição voluntária e tanto podem ser objeto de manejo por quem pretenda agir ou por quem pretenda defender-se.

Necessária a comprovação do perigo de demora de modo a demonstrar-se não ter a parte condições, no momento processual adequado, para produzir a prova seja porque o fato é passageiro seja porque a coisa ou a pessoa podem perecer ou desaparecer.


III – A INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA E A QUEBRA DO SIGILO TELEFÔNICO

A interceptação telefônica é o ato de imiscuir-se em conversa alheia, seja por meio telefônico (interceptação telefônica) seja por interceptação ambiental, que é outra forma de captação.

Só por exceção, e por ordem judicial, como preconiza a Constituição-Cidadã de 1988 poderemos ter a hipótese de interceptação telefônica, sempre para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, com a consequente gravação com o intuito de que sirva como meio de prova. É o que se vê do artigo 5º, XII, da Constituição Federal, onde se encontra proteção a direito a intimidade (artigo 5º, X, da Constituição Federal).

Tal providência, levando em conta o princípio da proporcionalidade, deve ser indispensável e necessária para, no interesse da sociedade, permitir ao Judiciário, de forma devidamente fundamentada, efetivar a interceptação.

Exige-se a adequação de meios aos fins a serem perseguidos com a medida. Por outro lado, a necessidade, menor ingerência possível, deve ser respeitada, na medida em que os meios utilizados para o atingimento dos fins sejam os menos onerosos para o cidadão. Proíbe-se o excesso. Uma medida judicial estará confrontando a Constituição quando outras medidas menos lesivas puderem ser aplicadas.

Será necessário distinguir “violação das comunicações telefônicas” de “quebra de sigilo de registros de dados telefônicos”. O primeiro, corresponde à interceptação da comunicação propriamente dita, captação da conversa alheia, eis que ocorre no momento real e imediato, por intermédio de gravações ou escutas. Já a quebra de sigilo de registros e dados telefônicos corresponde à obtenção de registros existentes na companhia telefônica sobre ligações já realizadas, dados cadastrais do assinante, data da chamada, horário, número do telefone chamado, duração do uso, valor da chamada, etc.


IV  – OS REQUISITOS PARA TAL MEDIDA INVASIVA

Caberá ao titular da ação penal analisar se há necessidade de aplicação dessa medida invasiva à privacidade no caso específico narrado.

“É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal (artigo 5º, XII, CF/88).”

A norma sobre a qual o texto constitucional faz referência é a Lei 9.296/96, editada com o fim de regulamentar o instituto da interceptação de comunicações telefônicas e também em sistemas de informática e telemática.

A autorização para interceptação telefônica e ainda de quebra de sigilo em uma investigação deve apresentar claramente os motivos para tal decisão. 

Por serem medidas de extrema gravidade, apresentam-se alguns requisitos para a sua concessão: a) indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal; b) imprescindibilidade da medida; c) o fato investigado deve constituir crime punido com reclusão.

No julgamento do HC 251.540/SP, relatora Maria Thereza de Assis Moura que para a necessidade para o desencadeamento de medida cautelar extrema, como a quebra do sigilo telefônico, deve-se esmiuçar a sua imprescindibilidade, de modo a pormenorizar a assertiva de não dispor de procedimentos investigatórios outros, menos invasivos, para a obtenção de provas aptas a robustecer eventual imputação delitiva.

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Há a necessidade de que a autoridade policial ou o Parquet, titular da ação penal, demonstre os indícios razoáveis da autoria ou participação do agente em infração penal, para que o magistrado competente possa fazer seu juízo de convencimento a respeito, no sentido do atendimento ou não, da imperativa exigência apontada, para justificar a drástica medida invasiva do direito constitucional à incolumidade do sigilo, ut art. 5º, XII, da CF.

Mister que se demonstre a indicação de indícios razoáveis da sua autoria ou participação em infração penal, sob pena da  inadequada fundamentação das autorizações judiciais, conforme exige o parágrafo único do art. 2º da Lei 9.296/96, por violar os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana.

Por ser uma medida excepcional (assim constitucionalmente posta), cabe ao pleiteante a demonstração prévia e exaustiva junto ao magistrado quanto à estrita necessidade do meio de prova em questão, não se permitindo a devassa da intimidade de qualquer cidadão com base em afirmações genéricas e abstratas.

A interceptação telefônica é medida constritiva das mais invasivas, sendo imprescindível, para o seu deferimento, que a informação somente seja obtida por tal meio, e, que haja a devida motivação (HC 49.146/SE, Rel. Ministro NILSON NAVES, Rel. p/ Acórdão Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 15/04/2010, DJe 07/06/2010). No mesmo sentido há de se dizer da quebra do sigilo das informações encontradas no aparelho telefônico.

Sendo essas as considerações, entendo, que as mesmas devem ser levadas em conta pelo titular da ação penal pública incondicionada para a análise do pleito.

Afinal, ficam as perguntas: a) Há materialidade delituosa provada até aqui que leve a quebra do sigilo do celular do atual presidente?; b) Há indícios de autoria de delito por parte do atual presidente que levem a tal medida constritiva? c) Afinal, se positivas as respostas às perguntas postas, a medida é imprescindível.

De toda sorte, o Parquet deve esmiuçar, detidamente, as razões para fundamentar se requer ou não a medida extrema. 


V  – O SISTEMA ACUSATÓRIO

De oficio, não poderá o Judiciário tomar tais providências. É que estamos diante de aplicação do sistema acusatório.

O juiz não mais interfere na produção de prova, nem tem a função própria nas fases investigatória e acusatória.

É sabido que o Brasil adotou de acordo com o modelo plasmado na Constituição de 1988  o chamado sistema acusatório.

Tal modelo tem como características fundamentais a separação entre as funções de acusar, defender e julgar conferidas a personagens distintos, concedendo-se ao Ministério Público, do que se lê do artigo 129, I, da Constituição o mister constitucional de ajuizar a ação penal pública. Ademais, os princípios do contraditório, da ampla defesa e da publicidade regem todo o processo e o sistema de apreciação das provas é do livre convencimento motivado.

Foge o sistema acusatório, adotado pela Constituição-Cidadã de 1988, do sistema inquisitório, caracterizado pela inexistência de contraditório e de ampla defesa, com a concentração das funções de acusar, defender e julgar na figura única do juiz, e pelo procedimento escrito e sigiloso com o início da persecução, produção da prova e prolação da decisão pelo juiz.

O modelo inquisitório vigorou durante os períodos do século XVII e XVIII, nas legislações europeias. Aliás, aqui, a repressão criminal era um primordial interesse público, sendo de interesse estatal.

No processo penal, a evolução histórica deu-se nesse sentido: o que se tinha outrora era o juiz-inquisidor. Paulatinamente, se foi liberando o juiz da função de acusar e, consequentemente, da colheita preliminar da prova, para chegar a condição de terceiro imparcial.

O Código de Processo Penal de 1941, nascido sob a égide de um Estado autoritário, e que teve como fonte o Código Rocco, centralizou no juiz a possibilidade de produção da prova, sem a necessidade de provocação das partes, iniciando a ação penal e adotando providências de ofício, sem iniciativa dos demais sujeitos processuais, inclusive na fase de investigação. Isso já não existe mais.

O Parquet, pelo procurador geral da República, é o titular da ação penal. Se ele entender de não oferecê-la, por razões que venha a externar, não caberá ao Judiciário rejeitá-las.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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