ABUSO DE AUTORIDADE – Conceito, sujeito ativo, dolo e hermenêutica
1 - Conceito de abuso de autoridade
Ocorre abuso de poder – em sentido lato - quando o agente público exerce o poder que lhe foi conferido com excesso (o agente atua além de sua competência legal) ou com desvio de finalidade (atua com o objetivo distinto daquele para o qual foi conferido).
Caio Tácito bem explica que “o abuso de poder surge com a violação da legalidade, pela qual se rompe o equilíbrio da ordem jurídica. Tanto da legalidade externa do ato administrativo (competência, forma prevista ou não proibida em lei, objeto lícito) como da legalidade interna (existência dos motivos, finalidade). A cada um dêsses elementos de legalidade corresponde uma causa de nulidade do ato administrativo. São vícios de legalidade externa a incompetência (em cujo conceito se inclúi a usurpação de poder) o vício de forma e a ilicitude do objeto. São vícios de legalidade interna a inexistência material ou jurídica dos motivos e o desvio de poder”[1] .
O crime de abuso de autoridade, no entanto, para a sua verificação, exige a conjugação da ilegalidade externa, bem como interna do ato: para configurar o delito a ação deve ser não apenas formal e materialmente ilegal – típica -, mas também dotada de desvio de finalidade, isto é, do dolo de abuso, da finalidade de prejudicar ou para satisfação de interesse, sentimento pessoal ou capricho.
Trata-se, portanto, da violação de direitos ou garantias individuais de outrem, com a vontade consciente de tal violação e com finalidade distinta do estrito cumprimento do dever legal, isto é, de prejudicar o ofendido ou de satisfação pessoal.
2 - Sujeito Ativo
Embora se trate o abuso de autoridade de crime próprio, a Lei n. 13.896/2019 fornece um conceito ampliado de agente público, passível de incursão nos tipos penais da nova legislação.
À semelhança do disposto no art. 327, do Código Penal – conceito de funcionário público para fins penais -, dispõe que, além de membros dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário – detentores de poder -, podem ser sujeitos ativos dos crimes de abuso de autoridade os membros do Ministério Público, dos Tribunais ou Conselhos de contas, servidores públicos e militares e agentes da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, isto é, todo aquele que exerce, nesses entes, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função.
Como bem sintetiza Rui Stoco: “em síntese, para efeitos penais, consideram-se funcionários públicos, independentemente da forma de admissão, regime jurídico ou remuneração (ainda que não haja remuneração por parte da Administração direta ou indireta), as pessoas físicas que exerçam cargos ou funções, em caráter permanente ou transitório, na Administração Direta, Indireta (autarquias, entidades paraestatais – de que são espécies a empresa pública, a sociedade de economia mista e serviços sociais autônomos) e fundacional da União, Estado e Município e, ainda, os empregados de empresas privadas, permissionárias ou concessionárias, prestadores de serviços contratados ou participantes de convênios, para a execução de atividade típica da Administração Pública”[2].
Portanto, para fins penais – e para encerrar legitimidade para figurar como sujeito ativo dos crimes de abuso de autoridade – a lei acolhe um conceito amplo de agente público, no qual se incluem os agentes propriamente dotados de poder, mas também servidores e funcionários, terceirizados e, inclusive, estagiários, conforme jurisprudência já pacificada pelos Tribunais Superiores. A título de ilustração:
RECURSO ESPECIAL. PENAL. CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PECULATO. FUNCIONÁRIO PÚBLICO. CAUSA DE AUMENTO DE PENA (CP, ART. 327, § 2º). ENTIDADES PARAESTATAIS (CP, ART. 327, § 1º). AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE FUNCIONÁRIO PÚBLICO PARA FINS PENAIS. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA (LEIS 6.799/1980 E 9.983/2000). OCUPANTES DE CARGO EM COMISSÃO E ASSESSORAMENTO EM AUTARQUIAS. INTERPRETAÇÃO LÓGICO-SISTEMÁTICA. PENA PROPORCIONAL. DESFALQUE EM FUNDO DE PREVIDÊNCIA. ATENDIMENTO À VONTADE DA NORMA. (PRECEDENTES DO STF).
1. No Direito Penal prevaleceu, por meio de uma interpretação integradora, um conceito de funcionário público mais abrangente do que aquele definido pelo Direito Administrativo, que, a par do que já dizia o caput do artigo 327 do CP, tanto englobou o rol reproduzido no § 2º deste dispositivo, como os próprios entes autárquicos.
2. A própria causa de aumento de pena (CP, art. 327, § 2º) reforçou o entendimento daqueles que compreendiam as entidades paraestatais de maneira mais ampla, o que, por via de consequência, elasteceu o conceito de funcionário público disposto no § 1º do art. 327 do Código Penal.
3. A interpretação construída pela doutrina e jurisprudência, necessária que foi para a conformação do aludido conceito no âmbito penal, não pode ser agora olvidada mediante a literalidade estanque da majorante, para afastar o devido alcance do § 2º do art. 327 do CP a todos que a norma quis abarcar como funcionário público, sob pena de negar-se o claro objetivo do conjunto normativo. Vale dizer, por força da compreensão erigida, à imagem e semelhança da equiparação ao conceito de funcionário público, tal qual os moldes do disposto ao art. 327 do CP - com contribuição, repisa-se, do próprio § 2º -, admite-se, em matéria penal, em casos estritamente necessários, uma interpretação que corresponda ao espírito da norma.
4. Releva-se notar que não resvala em analogia in malam partem o recrudescimento da pena àqueles que desempenham seu ofício nos entes autárquicos, que, em razão do posto de alta responsabilidade, locupletaram-se às custas da Administração, porquanto ocupantes de cargo em comissão ou de chefia ou assessoramento, quando a eles - e sobretudo a eles - cabiam zelar pela coisa pública. E isso constata-se não só a partir da evolução legislativa adrede trazida, mas também pelos inúmeros instrumentos normativos de combate à corrupção de que o Estado lança à mão, ano após ano, e cuja busca permanente na defesa do erário, bem como no proporcional apenamento desses agentes que mancham a carreira pública, devem ser levados em consideração pelo magistrado na interpretação da norma penal, quando da apuração dessas condutas que, infelizmente, ainda grassam em nosso país.
5. O abandono à interpretação literal - e em tudo isolada - da norma penal guarda sua necessidade para hipótese como a dos autos, em que a ora recorrida, quando ocupava cargo de chefia e de direção, em concurso com outras três pessoas, durante 12 anos, desviou, por 78 vezes, a vultosa quantia de R$ 1.649.143,05, do fundo do Instituto de Previdência do Estado do Paraná - IPE, numerário que se torna mais significativo quando se constata o rombo de fundo previdenciário, cujo desfalque tem reflexos diretos na aposentadoria e na saúde de seus beneficiários.
6. Recurso especial provido, para restabelecer a pena cominada em 1º grau, com a causa de aumento do § 2º do art. 327 do Código Penal. (REsp 1385916/PR, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Rel. p/ Acórdão Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 20/02/2014, DJe 04/09/2014)
"O advogado que, por força de convênio celebrado com o Poder Público, atua de forma remunerada em defesa dos agraciados com o benefício da Justiça Pública, enquadra-se no conceito de funcionário público para fins penais (Precedentes)" (REsp. n. 902.037/SP, Rel. Min. FELIX FISCHER, Quinta Turma, julgado em 17/4/2007, DJ de 4/6/2007). Precedentes. Sendo equiparado a funcionário público, possível a adequação típica aos crimes previstos nos artigos 312 e 317 do Código Penal (STJ - HC 264.459/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 10/03/2016, DJe 16/03/2016)
A teor do disposto no art. 327 do Código Penal, considera-se, para fins penais, o estagiário de autarquia funcionário público, seja como sujeito ativo ou passivo do crime. (Precedente do Pretório Excelso) (STJ - HC 52.989/AC, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 23/05/2006, DJ 01/08/2006, p. 484)
Ementa: HABEAS CORPUS. CRIME DE CONCUSSÃO. EXIGÊNCIA DE PAGAMENTO PARA REALIZAÇÃO DE CIRURGIA DE URGÊNCIA. CONCEITO PENAL DE FUNCIONÁRIO PÚBLICO. MÉDICO CREDENCIADO PELO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. TELEOLOGIA DO CAPUT DO ART. 327 DO CÓDIGO PENAL. ORDEM DENEGADA. 1. A saúde é constitucionalmente definida como atividade mistamente pública e privada. Se prestada pelo setor público, seu regime jurídico é igualmente público; se prestada pela iniciativa privada, é atividade privada, porém sob o timbre da relevância pública. 2. O hospital privado que, mediante convênio, se credencia para exercer atividade de relevância pública, recebendo, em contrapartida, remuneração dos cofres públicos, passa a desempenhar o múnus público. O mesmo acontecendo com o profissional da medicina que, diretamente, se obriga com o SUS. 3. O médico particular, em atendimento pelo SUS, equipara-se, para fins penais, a funcionário público. Isso por efeito da regra que se lê no caput do art. 327 do Código Penal. 4. Recurso ordinário a que se nega provimento. (RHC 90523, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado em 19/04/2011, DJe-201 DIVULG 18-10-2011 PUBLIC 19-10-2011 EMENT VOL-02610-01 PP-00024 RT v. 101, n. 917, 2012, p. 572-583)
EMENTA AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. FUNCIONÁRIO PÚBLICO POR EQUIPARAÇÃO. DIRIGENTE DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL. CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. 1. Associação civil qualificada como Organização Social é considerada entidade paraestatal para os fins do disposto no § 1º do artigo 327 do Código Penal, o que torna legítima a qualificação de seus dirigentes, para efeitos penais, como funcionários públicos por equiparação. 2. O Instituto Candango de Solidariedade - ICS, enquanto ostentou a condição de Organização Social, constituiu entidade paraestatal, enquadrando-se no disposto no § 1º do artigo 327 do Código Penal. 3. Os ocupantes de cargo, emprego ou função no Instituto em referência respondem pela prática de crimes contra a Administração Pública. 4. Agravo regimental conhecido e não provido. (HC 131672 AgR, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 05/10/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-220 DIVULG 15-10-2018 PUBLIC 16-10-2018)
3 – Crime doloso
Os crimes de abuso de autoridade somente admitem a configuração na forma dolosa, ou seja, com a vontade – direta – de sua realização.
Mas de quê se trata a vontade?
Vontade, para nós, é o querer consciente a realização da ação, a tomada de uma decisão após uma escolha.
Para a configuração da vontade, portanto, não basta aquele querer “cego” dos animais, sendo indispensável a consciência da ação.
A vontade requer uma repercussão, se exterioriza na ação e se serve do mecanismo psicofísico para se exercer, para realizar o que se quer.[3] A motivação, portanto, é o conjunto de vivências da pessoa, uma totalidade de sentido vivenciada e compreensível, uma resposta às questões que lhe são colocadas pela vida, que não se confunde com a mera reação a estímulos – condicionamento – ou obediência a impulsos[4]. Esta plenitude de sentido distingue a motivação da causalidade psíquica, pois a essência do querer é que seja motivado por um sentimento. “De aí que um querer imotivado é um absurdo, não é pensável um sujeito da índole que seja que queira algo que não esteja ante os seus olhos como valioso”.[5]
De fato, a consciência humana, esta rede de intenções significativas, representa um “centro de indeterminação”, ou melhor, de autodeterminação do ser capaz de ação própria, no qual as forças físicas, em vez de atravessarem o corpo físico, nele desencadeando respostas automáticas – e, por isso, absolutamente previsíveis -, se amortecem e implicam a formação de uma zona de ações possíveis.[6] Enquanto a relação causal conecta as coisas naturais na condição de existentes em si mesmas, a relação de motivação somente se efetiva pela intermediação da consciência.[7]
A vontade, nestes termos, ao contrário dos processos causais, empreende necessariamente um determinado sentido à conduta, que enseja uma valoração – positiva ou negativa.
A ação animada pela vontade é sempre intencional, pois representa a consecução de um projeto anterior, a busca por um desígnio ou finalidade. Jürgen Habermas[8], ao tratar da ação intencional, esclarece que “a ação consiste então na organização dos meios que resultam aptos para produzir o estado “apetecido”. Chamamos intenção neste esquema de ação teleológica o propósito, vontade ou desígnio que tem o agente de realizar um fim”, o qual está sempre dirigido, orientado a algo no mundo.
Diante do conceito de vontade aqui acolhido, o dolo, para nós, ao contrário do que sustenta Welzel[9], não é apenas o dolo natural, a pura vontade de realização, desprovida de conteúdo valorativo, mas sim a vontade de realização dos elementos objetivos do tipo aliada a um “sentimento” – móvel -, à intenção no sentido de diminuição, de contrariedade, de menosprezo ao valor – bem jurídico – tutelado pelo tipo penal[10]; ou, como bem expressado por Thomasius, o “desejo do coração [móvel] sempre unido ao pensamento da inteligência [motivos]”.[11] A consciência apta a gerar responsabilidade, pois, pode ser definida como a capacidade – inteligência – humana de conhecer e julgar o valor ou desvalor dos próprios atos e de a eles imprimir um determinado sentido.
Isto porque a conduta humana tem por essência um caráter valorativo[12]. Ao agir, o ser humano opta por um sentido à sua ação, não querendo apenas o resultado, mas, especialmente, o valor ou desvalor que este representa. “Exatamente porque os valores possuem um sentido é que são determinantes da conduta”[13], isto é, são motivos sob um novo ângulo, pois exigem uma tomada de posição da vontade e a atuação correspondente.[14]
Se a consciência é sempre referida a algo no mundo, o ato consciente também tem como referência o seu destino intencional, que não se limita – por não ser apenas dele constituído – ao “objeto material”, mas também inclui o “objeto jurídico”, o valor que lhe é imanente.
Os fatos, isoladamente considerados e descontextualizados são apenas fatos; o que lhes confere sentido no mundo e os transforma em fenômenos são as condutas humanas que os precedem, a orientação dos comportamentos e os valores[15] envolvidos nas relações intersubjetivas.
Em razão da intencionalidade que caracteriza a ação consciente, conclui-se que os valores são transcendentes, pois não estão na consciência, mas constituem o seu correlato. Os valores – como objetos ideais - estão na realidade, nas relações intersubjetivas e na sociedade, e não em cada ser humano.[16]
Embora não estejam na consciência, é certo que os valores têm uma fonte subjetiva, consistente na busca do espírito humano pela felicidade – cuja forma varia de acordo com o tempo e o espaço – e pela realização de sua dignidade.
Nem por isso, entretanto, os valores são forjados apenas pelas atitudes internas do homem, exteriorizadas pelas condutas. Ao contrário, na formação histórica dos valores há, também, uma fonte objetiva, representada pelas relações sociais e pela busca da coletividade ou da comunidade pelo aprimoramento da vida em comum.
Deste “justo meio termo”, como dizia Aristóteles, embora em outro sentido, da tensão e ao mesmo tempo conciliação entre o querer individual e o social, nascem a cultura e seus valores. E os valores – como observa Paulo Ferreira da Cunha – são algo de específico do homem, da excelência da natureza humana, precisamente livre, e capaz de conduzir a sua vida não por meros instintos, mas por horizontes de possibilidades.[17]
Assim, admitido o conceito valorativo, ou melhor, englobante do dolo, podemos asseverar que na prática de um crime de furto (art. 155, do CP) o agente não quer apenas a coisa, o objeto móvel, mas, principalmente, o valor patrimonial dele decorrente e, em consequência, a lesão ao valor patrimônio do ofendido.
Nos tipos penais de homicídio e de lesão corporal, o sujeito não busca apenas os “processos biológicos” que os caracterizam, mas a morte ou danos à integridade física de outrem, isto é, sua ação não é referida apenas ao material, mas aos valores – vida e integridade corporal – que lhes são subjacentes.
Esta desvaloração ínsita à conduta típica é bem percebida nos delitos que a doutrina considera providos de dolo específico – entre os quais, agora, os crimes de abuso de autoridade.
De fato, no crime de calúnia (art. 138 do CP) o sujeito não pretende apenas imputar falsamente a terceiro fato definido como crime, mas lesar a honra objetiva do ofendido; seu ato tem por intencionalidade, além da expressão de palavras – objeto material -, a violação – menosprezo – ao valor tutelado pela norma penal.
Também no crime de desacato (art. 331, do CP), o “algo no mundo” ao qual a ação é orientada não se esgota no comportamento em si, na expressão, gesto ou palavra proferida, mas principalmente ao menosprezo à função pública em razão do qual é praticada a conduta.
Na mesma esteira, conforme art. 1º, § 1º, da Lei n. 13.896 de 05 de setembro de 2019 – Le de Abuso de Autoridade -, somente haverá de se falar em dolo de abuso de autoridade se a ação for praticada com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
A ação dolosa, portanto, é aquela orientada em função de um desvalor social – a tomada de uma posição nesta direção -, isto é, no sentido de diminuição ou menosprezo a um valor penalmente tutelado. Se a ação não for motivada por este menosprezo, mas em função de um valor socialmente relevante – positivo -, estará excluído o dolo da conduta.[18]
Assim, para que esteja configurado o dolo de dano (art. 163 do CP), ao destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia é indispensável que atue o agente em função de diminuição do valor tutelado pelo tipo, com menosprezo ao bem jurídico patrimônio.
Se a destruição, por exemplo, se der em prestação de serviço de demolição, contratado pelo dono da coisa, não haverá de se falar em dolo, pois orientada a ação no sentido de um resultado socialmente relevante e positivo.
Da mesma forma, no delito de lesão corporal, a verificação do dolo depende de um sentido de negação, na conduta do agente, da integridade física do ofendido como um valor. Realiza-se o comportamento em função desse desvalor.
Mais, ainda, nos crimes de abuso de autoridade, à verificação do dolo indispensável a caracterização, no comportamento do agente, de um menosprezo aos direitos e garantias individuais da pessoa, ou seja, a conduta deve ter por escopo específico – reitere-se - prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
Neste contexto fica manifesto o equívoco cometido ao se conferir ao dolo um puro sentido natural, desprovido de qualquer conteúdo valorativo.
A finalidade típica, então, pertence ao dolo e dele não pode ser dissociada ou tratada como elemento subjetivo especial, sob pena de transformá-lo em elemento incapaz de revelar a vontade típica do agente.
O mesmo ocorre em relação aos crimes de abuso de autoridade.
Para a sua configuração se faz necessária a prova de que o agente público agiu com extrapolação de poder, por sentimento pessoal, capricho, vingança ou maldade, com o consciente propósito de praticar perseguições e injustiças, inclusive em benefício próprio ou de terceiro. Sem tal motivação não restará caracterizado o delito de abuso de autoridade, mas – dirigida a ação na consecução do seu mister -, quando muito, o erro ou infração meramente administrativa, sujeitos a sanções disciplinares da mesma natureza, mas não penais.
Sentimento ou satisfação pessoal é o sentir de ordem emocional (afeto, ódio, inveja etc.) e não racional, isto é, sem substrato na ordem de caráter objetiva que deve imperar nas ações dos agentes públicos, em obediência ao princípio da legalidade.
Com ensina Nelson Hungria, em interessante julgado sobre a imputação de crime de prevaricação: “Interesse pessoal é o interesse privado, econômico ou moral, e sentimento pessoal é a afeição, o ódio, o espírito de vingança, a parcialidade, a obsequiosidade, a benevolência, o favoritismo, etc. Assim se resumiam, em outros tempos, os motivos do crime que hoje se chama prevaricação: cupiditas, amor, odium, obsequium. Dizer-se que o propósito do Sr. ministro da Fazenda de salvaguardar a sua autoridade, por entender que não está sujeito, na espécie, à jurisdição de juízes de primeira instância, traduz ou revela o “sentimento ‘pessoal’ a que se refere a lei, é confundir sentimento com entendimento, o affectus com o raciocínio lógico, para interpretar aberrantemente o art. 319 do Código Penal”[19]
No que se refere à expressão “Capricho”, anote-se que tem origem no italiano capriccio, e traz o significado de “inconstância, volubilidade”. Constitui a vontade súbita que aparece sem razão alguma; birra, teimosia. Obstinação injustificada em relação a alguma coisa.
Portanto, para caracterização dos crimes de abuso de autoridade, indispensável que a conduta seja praticada, conforme conceitos acima, de forma dolosa, com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal, requisito que, por técnica e economia legislativa, foi inserido no § 1º, do art. 1º, da Lei, mas que, na realidade, deve ser acrescido a cada um dos tipos penais da nova lei.
4 - Crime de Hermenêutica?
O parágrafo segundo da Lei n. 13.896/2019 busca afastar a possibilidade da caracterização do “Crime de Hermenêutica”, ao dispor que a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura, por si só, abuso de autoridade.
Trata-se de verdadeira causa de exclusão da tipicidade penal, que, por técnica e economia legislativa, foi inserida em dispositivo em separado, mas que, para fins de subsunção das condutas aos tipos penais previstos pela lei, a eles se integra, constituindo seu elemento - negativo.
Rui Barbosa, precursor no tratamento do tema há mais de um século, advertiu: “Aí está onde naufraga a ingenuidade dos que supõem ter, por esse manifestamente, delimitado com a precisão de uma raia inequívoca a linha entre o exercício correto e o exercício incorreto do poder confiado aos juizes, para joeirarem a constitucionalidade e a inconstitucionalidade na crítica das leis. O que é manifesto a um espírito, pode ser duvidoso ao critério de outros, ainda figurando que estes e aqueles ocupem nível superior, emparelhando, ao mesmo tempo, no talento e no desinteresse. Não se descobriu, até hoje, a pedra de toque, para discernir com certeza absoluta o oiro falso do verdadeiro na interpretação dos textos. E, quando estes são os de uma constituição, lei política, lei das leis, isto é, lei condensadíssima na expressão e no intento amplíssima, os juristas mais eminentes, os magistrados mais retos podem conscienciosamente divergir quanto ao alcance de uma frase, de uma fórmula, de um enunciado, ligando-lhe pensamentos diversos, ou limitando-lhe extensões desiguais. A conseqüência é que a mesma lei, conferida pelo mesmo padrão constitucional, acontecerá ser contraditoriamente julgada válida e nula, sem que de uma e outra parte haja quebra na competência, ou na sinceridade (...) Só determina responsabilidade penal, portanto, a interpretação errônea, quando atentatória de disposições literais. Se a disposição não for literal, a matéria é opinativa: pertence ao domínio de fenômenos intelectuais, que não toleram coação, ou repressão; pode ser conscienciosamente objeto de soluções diferentes, ou contraditórias, submetida à apreciação de juizes distintos. Se em Direito penal a hermenêutica é restrita, não será lícito ao intérprete classificar de delito, sob o rótulo de excesso de poder, atos judiciários não condenados em provisão literal, quando só aos atentados contra disposição literal, e sob um qualificativo diverso, o de prevaricação, alude o legislador”[20].
Qualquer pessoa que tenha apreço à democracia e ao Estado de Direito não pode tolerar, por razões utilitaristas – por mais bem intencionadas que sejam -, o abuso do poder e a violação indevida dos direitos e garantias individuais.
Há de se observar, contudo, a grande distância existente entre o abuso de poder – ou de autoridade – e a mera divergência de interpretação das normas ou o regular exercício de atividade, ainda que infrutífera, ou mesmo o erro de procedimento, sem o propósito de extrapolar os limites do poder. Se o abuso de autoridade é nefasto, não menos indesejável é a subtração do exercício regular da atividade pública por receio de indevida responsabilização – o que também pode caracterizar o comportamento criminoso de prevaricação.
A responsabilização penal dos agentes públicos por abuso de autoridade, nessas circunstâncias, deve ser reservada às hipóteses de violação claramente indevida dos direitos e garantias individuais - o que resguarda a função de ultima ratio do direito penal -, sem margem para imputações sediciosas às autoridades públicas, que, no seu mister, confrontam a corrupção ou o crime organizado.
Anote-se, outrossim, que em relação à Magistratura, a Lei Orgânica respectiva (Lei Complementar n. 35, de 14 de março de 1979) dispõe, em seu artigo 41, que o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir, salvo nas hipóteses de impropriedade ou excesso de linguagem.
Tratando-se de norma de superior hierarquia e de natureza especial, pois regula de modo específico a atividade da magistratura, evidentemente prevalece sobre norma de hierarquia inferior e de caráter geral, de forma a afastar a criminalização do exercício da jurisdição – regular – por mera divergência de interpretação jurídica ou análise dos fatos e questões que lhe são submetidas.
Em sentido semelhante, a Lei Orgânica do Ministério Público (Lei n. 8.625 de 12 de fevereiro de 1993) reza, em seu artigo 41, inciso V, que constitui prerrogativa dos membros do MP “gozar de inviolabilidade pelas opiniões que externar ou pelo teor de suas manifestações processuais ou procedimentos, nos limites de sua independência funcional”.