Resumo
O presente trabalho propõe-se a discorrer, sob a perspectiva dos Direitos Humanos, sobre a discussão em torno do impasse que existe entre Liberdade de Expressão e o Discurso de Ódio. Desta feita, o presente artigo irá abordar os conceitos de Direitos Humanos e Dignidade da Pessoa Humana, chegando então ao discernimento entre Liberdade de Expressão e o Discurso de Ódio. Por conseguinte, buscando um melhor entendimento do tema, será abordado o caso especifico HC 82.424-2, dentro da perspectiva do artigo intitulado “A Jurisprudência do STF sobre o Direito à liberdade”, apresentado no Seminário de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará -UFPA.
Palavras-chave: Dignidade Humana, Liberdade de Expressão, Discurso de Ódio.
Abstract
This paper proposes to discuss , from the perspective of human rights , on the discussion around the impasse that exists between Freedom of Expression and Hate Speech . This time , this article will address the concepts of Human Rights and Dignity of the Human Person , then to the discernment of Freedom of Expression and Hate Speech . Therefore , seeking a better understanding of the theme , it will address the specific case HC 82424-2 , from the perspective of the article entitled "The Supreme Court Jurisprudence on the Right to Freedom " , presented at the Graduate Seminar in Law from the Universidade Federal do Pará-UFPA .
Keywords: Human Dignity, Freedom of Expression , Hate Speech .
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo o estudo da relação, mediada pela liberdade de expressão, entre discurso de ódio e dignidade da pessoa humana. O trabalho busca adentrar os questionamentos sobre o que cada fator representa na atualidade, seus limites, suas interferências e impressões causadas na sociedade. Logo, faz-se necessário uma aprofundação sobre os termos que compõe essa discussão, que são a liberdade de expressão, o discurso de ódio e o princípio da dignidade da pessoa humana.
A exploração dos termos auxilia, portanto, no entendimento do habeas corpus 82.424-2, que tem como objeto de estudo a liberdade de expressão em contraposição com o racismo. Apesar de não estar diretamente vinculada com o tema proposto, tal liberdade de expressão de pensamento do réu conflitua com o sentimento de dignidade de um grupo social, personificada pela comunidade judaica. Como contrabalancear os direitos em questão? Como harmonizar a garantia de direitos fundamentais para cada uma das partes? O presente texto busca salientar tais dúvidas, a resolução do caso pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e as reflexões trazidas por essa ponderação de valores e de princípios.
2. Dignidade da pessoa humana
Em face da necessidade de discutir sobre a liberdade de expressão, a dignidade da pessoa humana deve ser posicionada como um entendimento prévio. É válido identificar o significado do termo, apesar da abrangência de seu significado.
2.1 Disposições doutrinárias
Ao entrar na discussão sobre o princípio da dignidade humana, o jurista Ingo Sarlet (2006, p. 29-31) sugere a existência de tal termo ainda em tempos bíblicos, antes mesmo de qualquer disposição jurídico-constitucional. Mostra que a valorização do ser humano como tal, já era considerada intrínseca e inalienável ao indivíduo. Tal pensamento perdurou até o medievo, o qual através do pensamento de São Tomás de Aquino, a existência do Homem e a sua dignidade são fundamentadas na criação deste à imagem e semelhança de Deus.
A filosofia moderna proposta por Kant é indispensável para entender o teor da dignidade da pessoa humana, já que, por meio do imperativo categórico, o homem nunca pode ser entendido como um meio para conseguir uma determinada finalidade. Mas deve ser entendido como a própria finalidade, ao representar o homem como “um fim em si mesmo”. Assim como a autonomia do indivíduo também deve ser assegurada em face de sua inerente racionalidade.
Frisa-se que, para Kant, a racionalidade e a autonomia do indivíduo estão intrinsecamente relacionadas, haja vista que “a autonomia é, portanto, o solo indispensável da dignidade da natureza humana ou de qualquer natureza racional” (KANT, 2003, p. 70).
Nessa linha de raciocínio, Peces-Barba (2003) também apresenta que os eventos ocorridos na Modernidade, tal como o Humanismo, pretendiam estabelecer, de fato, o Homem como centro do mundo e centrado no mundo. Tornar o Homem um ser independente que pudesse decidir sobre o curso de sua vida, suas atitudes e crenças, configurando uma real autonomia, determinante da moralidade privada desse mesmo indivíduo.
Fundado nesse pensamento, aduz-se que o que une os indivíduos num único projeto social, político e cultural, num único propósito, pode ser configurado numa “ética pública”, a qual vincula diversos valores individuais e os torna coletivos, tal como a liberdade, solidariedade, igualdade e a segurança. Tais itens são caracterizadores dessa “moralidade privada” da pessoa humana. E é através dessa moralidade, que a autonomia e racionalidade do indivíduo ficam evidentes. Tal autonomia faz com que o ser humano seja responsável por suas decisões individuais.
Ingo Sarlet (2005, p. 23) afirma que a essência da dignidade humana não é pautada de forma individualizada, e sim através da abrangência que essa dignidade pode alcançar mediante as relações humanas e toda a intersubjetividade que a circunda.
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.” (SARLET, 2011, p. 73, grifos nossos).
Logo, a dignidade humana tem caráter individual, mas também social, inseparável a cada participante dessa dita comunidade. Sobre essas condições existenciais mínimas, Ana Paula de Barcellos (2002) o apresenta da seguinte forma:
O conteúdo básico, o núcleo essencial do princípio da dignidade da pessoa humana, é composto pelo mínimo existencial, que consiste em um conjunto de prestações materiais mínimas sem as quais se poderá afirmar que o indivíduo se encontra em situação de indignidade [...] Uma proposta de concretização do mínimo existencial, tendo em conta a ordem constitucional brasileira, deverá incluir os direitos à educação fundamental, à saúde básica, à assistência no caso de necessidade e ao acesso à justiça (BARCELLOS, 2002, p. 305).
Nesse sentido, outra vez magistralmente pontuado por Peces-Barbas, o posicionamento da dignidade da pessoa humana também pode ser entendido como ponto de chegada e ponto de partida:
Parece que la dignidad humana es um horizonte, um deber ser que se puede realizar en el dinamismo de la vida humana, siempre limitadamente, siempre condicionado históricamente y temporalmente en el plazo de nuestra existência. En ese sentido es um punto de llegada. Pero al mismo tiempo es uma descripción de las dimensiones de nuestra condición, el fundamento de nuestra ética pública, porque acota el ánbito de su acción, para realizar el proyecto en que consiste el ser humano. En este sentido es un punto de partida, un modelo a realizar (PECES-BARBA, 2003, p. 50).
Nesses meandros, percebe-se que a dignidade humana é um ponto de chegada, um objetivo a ser alcançado, uma finalidade do Estado e, como o próprio autor apresenta, um horizonte a ser alcançado, sempre condicionado histórica e temporalmente no prazo da existência humana. Por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial, mediante a ideia eugênica nazista, que considerava os judeus, negros, ciganos, homossexuais desprovidos de dignidade; somente a partir dos julgamentos de Nuremberg, uma preocupação maior foi revelada para com a dignidade do ser humano.
No nosso país, inclusive, a Constituição Federal em meados de sua criação, não havia uma aplicação efetiva desta, que dirá do princípio da dignidade humana. Era apenas vista como uma mera carta política, sem uma concretização do que dispunha. Até mesmo a disciplina de Direitos Humanos até pouco tempo não existia na maioria das universidades brasileiras, refletindo um recente interesse em efetivar o princípio da dignidade da pessoa humana, formalmente estabelecida na Carta Constitucional.
Já como ponto de partida, a dignidade humana é um fundamento da ética pública e inerente ao ser humano. Dessa ética pública, ramificam-se vários direitos, como a liberdade, a igualdade, a solidariedade, segurança e a propriedade, também garantidos constitucionalmente.
Portanto, a atualidade que o tema da dignidade da pessoa humana apresenta pode ser reiterada, conforme explicita o professor Luis Roberto Barroso (2005, p. 2-6) no marco histórico sobre as transformações ocorridas no direito constitucional contemporâneo: o constitucionalismo do pós-guerra. Dado o afastamento da filosofia e de discussões morais previstas na aplicação do positivismo no Direito, correspondendo uma “objetividade científica”, o fracasso na aplicação jurídica ficou evidenciado nas barbáries cometidas pela Alemanha nazista. A obediência à lei era fundamental, mesmo que seu conteúdo objetivasse uma clara degradação a outro ser humano. As torturas e o desrespeito ao ser humano no regime militar também influenciaram a inclusão e a concretização do princípio da dignidade humana na Constituição (SILVA, 1998, p.89-90).
Sob essa ótica, é importante salientar que Peces-Barba (2003, p. 12) também acentua a imprescindibilidade da filosofia do direito como um fator interpretativo mediante a presença dos direitos humanos no princípio da dignidade da pessoa humana:
En este contexto la contribución de la filosofia del Derecho al debate adquiere una relevancia especial porque se sitúa em la raiz del problema que coloca a la dignidad humana como fundamento de la ética pública de la modernidad, como un prius de los valores políticos y jurídicos y de los princípios y los derechos que derivan de esos valores (PECES-BARBA, 2003, p. 12).
Ou seja, é a partir da filosofia do direito que as reflexões sobre os assuntos fundamentais e os problemas inerentes à sociedade são feitas. Como a ética pública fundamenta a dignidade humana, os princípios políticos e jurídicos, os valores e direitos do indivíduo e do coletivo devem passar sobre o crivo analítico e reflexivo dessa filosofia jurídica.
2.2 Disposições Constitucionais sobre a Dignidade da Pessoa Humana
Desta feita, a formalização da dignidade da pessoa humana é prevista na Constituição da República de 1988 e na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. De forma objetiva, esse princípio está disposto no art. 1° da CF, inciso III, como um dos fundamentos do atual Estado Democrático de Direito em que vivemos.
A dignidade da pessoa humana ainda é representada no art. 5°, que trata sobre direitos e garantias fundamentais, o qual a redação dos seguintes incisos apresenta conexão com a dignidade humana:
VIII- ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;X- são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988)
2.3 A Dignidade da Pessoa Humana na Declaração Universal dos Direitos Humanos
Já no preâmbulo do documento básico das Nações Unidas, verifica-se que: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, [...]”, sendo a essência da dignidade humana, portanto, um pilar fundamental para a construção dessa Declaração de abrangência e importância mundial.
Nos artigos seguintes, há um reforço ao assegurar esse princípio:
I – ‘Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade’;VI – ‘Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei’;VII – ‘Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação’.” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948, grifos nossos).
Ou seja, é fundamentado nesse princípio que uma coletividade transnacional também deverá ser regida, garantindo respeito e proteção ao ser humano, independente das suas diferenças.
Após discorrer a respeito da Dignidade Humana, chegamos ao centro do tema deste artigo, porém antes de introduzir o tema fulcral, tem-se a necessidade de conhecer as concepções dos termos Liberdade de Expressão e Discurso de Ódio.
3. Liberdade de Expressão
Quando falamos de Liberdade de Expressão, entende-se que é a forma de manifestar todas as opiniões sobre qualquer assunto, e também o direito de exprimir esses pensamentos, seja de forma literária, musical, jornalística, entre outras. Porém, será mesmo que é permitido expressar absolutamente tudo o que se sente? Esta indagação será respondida ao decorrer desta exposição.
3.1. Disposições Constitucionais
A Liberdade de Expressão é um direito fundamental, que é garantido na Constituição Federal de 1988, em seu artigo art. 5º, Inc. IV, IX, X e XII, que dispõe:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
Nos incisos IV e IX, observa-se que a Carta Magna permite todas as formas de pensamentos e, além disso, expressa as possibilidades de demonstração dos mesmos. Com isso, entende-se que é permitido sim expor o que se pensa, entretanto nota-se que essa liberdade se restringe ao que é demonstrado nos incisos IV, X e XII. Estes ilustram que há um “limite” nesta liberdade, ou seja, o indivíduo pode exprimir sua opinião desde que não viole a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem de outrem. Todas as manifestações de pensamento são livres, salvo quando apresentar anonimato ou quando violar o sigilo de qualquer uma das hipóteses do inciso XII.
Percebe-se que a Liberdade de Expressão não se resume ao “falar o que quer”, faz-se necessário sempre analisar se o que está sendo dito fere algum dos Direitos Fundamentais expressos na Constituição Federal de 1988, e principalmente, no que tange Dignidade Humana, como foi explanado no início deste escrito. Esta afirmativa fundamenta-se no art. 220 da Carta Magna de 1988, que diz:
Art. 220 A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. (grifos nossos).
3.2. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e Convenção Americana de Direitos Humanos
A Liberdade de Expressão também é prevista no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos – promulgada no Brasil pelo decreto nº 592 de 06 de julho de 1992 – em seu art. 19, inciso 2, que diz
2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha. (PACTO INTERNACIONAL DE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS, 1966).
Também pode ser identificada na Convenção Americana de Direitos Humanos – promulgada no Brasil pelo decreto nº 678 de 06 de novembro de 1992-, que dispõe no seu art. 13, inc. 1 e 3:
Art. 13. Liberdade de pensamento e expressão.1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões. (CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1969).
3.3. Disposições Doutrinárias
Após pontuar os termos normativos, é de suma importância enfatizar a percepção de alguns doutrinadores, a respeito do que seria a Liberdade de Expressão.
Em face das disposições na vigente Constituição Federal sobre a Liberdade de Expressão como forma livre de manifestar um pensamento, é entendido por Celso Ribeiro Bastos (1994, p.101) que a liberdade de expressão é aquela que desfruta o indivíduo de “se expressar livremente, sem perturbar, porém, os direitos legítimos dos demais. ”. Vale ressaltar, que Bastos ao dizer que a pessoa pode se expressar, desde que não perturbe os direitos dos demais, está se referindo aos direitos invioláveis citados anteriormente.
José Afonso da Silva (1998, p. 244) trata a liberdade de expressão como a “possibilidade de exteriorização do pensamento em seu sentido mais amplo”, ou seja, as opiniões não devem ficar guardadas em um “casulo”, as concepções do indivíduo devem ser demonstradas de forma que todos tenham alcance, para que as ideias possam ser difundidas.
Com o exposto acima, podemos verificar a importância da Liberdade de Expressão, quando é analisado o contexto de construção de conhecimento, como coloca Daniel Sarmento (2006, s/p) ao expor que:
a liberdade de expressão é peça essencial em qualquer regime constitucional que se pretenda democrático. Ela permite que a vontade coletiva seja formada através do confronto livre de ideias em que todos os grupos e cidadãos devem poder participar, seja para exprimir seu ponto de vista, seja para ouvir os expostos por seus pares (SARMENTO, 2006, s/p).
4. Discurso de Ódio
Discurso de Ódio pode ser conceituado, de forma genérica, como discriminar ou violentar uma pessoa ou grupo em virtude de raça, religião, nacionalidade, orientação sexual, gênero, condição física ou outra característica de um determinado grupo.
Para Renata Machado (2007, p. 79) o discurso de ódio se caracteriza:
por qualquer expressão que desvalorize, menospreze, desqualifique e inferiorize os indivíduos. Trata-se de uma situação de desrespeito social, uma vez que reduz o ser humano à condição de objeto (SILVEIRA, 2007, p.79).
4.1. Identificação do Discurso de Ódio
O discurso pode ser considerado de ódio a partir do momento em que fere a dignidade do indivíduo. Foi visto que a Constituição Federal em seu art. 5º, inc. X expõe os direitos que não podem ser violados, ou seja, entende-se que esses direitos invioláveis, caso violados, pudessem caracterizar um discurso de ódio.
Esse fenômeno, de desrespeito aos direitos fundamentais é denominado de “desumanização do humano”, por Lindgren Alves (2013), quando em seu escrito diz que
Decorre de um fenômeno cultural, disseminado no Brasil e na maioria das sociedades de toda a História, que se propõe justificar o desrespeito aos direitos fundamentais de determinadas pessoas: a desumanização do humano. (ALVES, 2013, p.03)
Deste certame, ressalta-se que não somente a Carta Constitucional determina formas de detectar um discurso de ódio. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, em seu art. 20, aborda que ao expressar qualquer pensamento é necessário que este seja claro, e proíbe a manifestação de opinião nos seguintes termos:
1. Será proibido por lei qualquer propaganda em favor de guerra.2. Será proibida por lei qualquer apologia do ódio nacional, radical, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência.” (PACTO INTERNACIONAL DE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS, 1966)
4.2. Liberdade de Expressão vs. Discurso de Ódio
Owen Fiss (2005, p.63) situa o discurso de ódio como “argumento possível de limitação à liberdade de expressão”. Esta limitação colocada por Owen (2005) enfatiza a ideia de a Liberdade de Expressão não ser um direito absoluto.
Portanto, o direito à liberdade de expressão é delimitado por outros direitos fundamentais, tais como, imagem, privacidade e honra. Em casos concretos, como veremos a frente no HC 82.424-2, quando estes direitos entram em conflito é usada a ponderação de princípios – teoria de Robert Alexy. Nesse sentido, em sua obra Teoría de los derechos fundamentales ele explicita que:
Cuando dos principios entran en colisión – tal como es el caso cuando según um principio algo está prohibido y, según outro principio, está permitido – uno de los dos princípios tiene que ceder ante el otro. Pero, esto no significa declarar inválido al principio desplazado ni que en el principio desplazado haya que introducir uma cláusula de excepción. [...] Esto es lo que se quiere decír cuando se afirma que en los casos concretos los princípios tienen diferente peso y que prima el principio con mayor peso. (ALEXY, R. 2002, p. 89-90).
Nesse sentido, a ponderação entre princípios e normas constitucionais é uma das ferramentas utilizadas para resolver conflitos desse tipo, haja vista que a Constituição possui uma qualidade dialética ao acolher diversificados valores, embora possivelmente pudessem entrar em choque futuramente. Pelo princípio da unidade, é entendido que um princípio só se sobreporá a outro em face de um caso. Essa ponderação abarca a identificação, o exame das normas possíveis a serem aplicadas, avaliação da situação concreta, assim como a técnica tradicional da subsunção. Entretanto, através dessa nova ferramenta, os fatos são avaliados de forma conjunta, para serem aplicados os pesos ideais, evidenciando o grupo de dispositivos que se sobressairá no caso concreto. (BARROSO, 2009, p. 335).
Neste seguimento, é possível perceber que há restrições ao que tange a Liberdade de Expressão, haja vista que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos enfatiza em seu art. 19, inciso 3, as três formas de restrição da Liberdade de Expressão, que são:
(a) A restrição deve ser prevista em lei. Este requisito estará preenchido somente se a lei for acessível e sua formulação for precisa de modo que o cidadão seja capaz de regular sua própria conduta;(b) A restrição deve objetivar resguardar um interesse legitimo. Exclusivamente aqueles definidos pelos tratados internacionais;(c) A restrição deve ser necessária em uma sociedade democrática. Deve haver uma premente necessidade social para restrição. A justificativa dada deve ser relevante e suficiente e a restrição deve ser proporcional ao objetivo visado.
Diante desta problemática, Dworkin (2006, p. 342) expressa que “nenhum esquema legal pode proporcionar a solução ideal para o conflito inevitável entre a liberdade de expressão e a proteção da reputação dos indivíduos”. Portanto, conclui-se que o embate entre Liberdade de Expressão e Discurso de Ódio sempre vai existir, entretanto, em casos concretos, a ponderação de princípios, explicado anteriormente.
5. Caso Concreto: Habeas Corpus nº 82.424-2 – Siegfried Ellwanger
Em 2003, chegou ao Supremo Tribunal Federal, o pedido de Habeas Corpus em favor de Siegfried Ellwanger, que foi acusado de praticar racismo ao publicar e editar livros com conteúdo antissemita, e que negam a existência do Holocausto, desrespeitando claramente a comunidade judaica.
Como já explicitado, a liberdade de expressão pode ser restrita em virtude de lei. Neste sentido, temos em vigência no Brasil a lei nº 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Logo, é possível notar que no caso Ellwanger, foi delimitada a liberdade de expressão, configurando então o ato do réu em discurso de ódio, ferindo a dignidade da pessoa humana, numa escala maior, tendo em vista que o ato atingiu a todos os judeus.
No julgamento, foi entendido pela maioria dos votos que o paciente, de fato, cometeu o crime de racismo. Nesse seguimento, apesar do caso indicar um maior embate entre racismo e liberdade de expressão, a dignidade humana e o discurso de ódio também se fazem presentes nessa discussão.
É válido apontar a fundamentação dos votos de alguns ministros, para que haja uma melhor compreensão deste evidente conflito de direitos. Dentre outros apresentados pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), o do Min. Carlos Velloso aduz que:
A liberdade de expressão não pode sobrepor-se à dignidade da pessoa humana, fundamento da República e do Estado Democrático de Direito que adotamos – (...) – ainda mais quando essa liberdade de expressão apresenta-se distorcida e desvirtuada (STF, DJU, HC 82.424/RS, 19 mar. 2003).
O argumento do ministro Gilmar Mendes, também reforça que a liberdade de expressão só será mantida quando não atentar contra a dignidade humana: “(...) a discriminação racial levada a efeito pelo exercício da liberdade de expressão compromete um dos pilares do sistema democrático, a própria ideia de igualdade”.
Os Ministros Mauricio Corrêa e Nelson Jobim têm fundamentação semelhante, e se embasaram nas referências históricas de sofrimento e holocausto de judeus, e abranger práticas que possam ferir a honra do indivíduo (art. 5º, inc. X).
O Professor e Ministro Luis Roberto Barroso, ao discorrer sobre o HC 82.424-2/RS – também material de estudo do presente trabalho e considerado jurisprudência nacional – apresenta uma aparente colisão entre direitos fundamentais e outros valores constitucionais, quando voltados ao interesse do coletivo. No referido habeas corpus, também conhecido como Caso Ellwanger, o autor entende que “a liberdade de expressão não protege a incitação ao racismo. Caracteriza esse crime a publicação de livros de caráter antissemita, depreciativos ao povo judeu e que procuram negar a ocorrência do holocausto” (BARROSO, 2009, p. 331).
A partir da decisão final, acabou prevalecendo a ideia de que há uma proibição constitucional a qualquer tipo de racismo, abarcando a liberdade de expressão contida nos livros do acusado, em face desse caso concreto em específico.
Considerações Finais
A partir da presente pesquisa, percebe-se a importância da liberdade de expressão, inclusive como garantia de dignidade humana e a sua presença marcante na Carta Constitucional. Entretanto, em face do discurso de ódio, uma atenção maior deve ser dada a essa liberdade de manifestação. O que se deve perceber, é que, mediante esse embate entre discurso de ódio fundamentado na liberdade de expressão e dignidade da pessoa humana, nenhum propósito discriminador ou até criminoso pode ser usado como justificativa para se expressar um pensamento.
Portanto, tem-se que a dignidade é tida para assegurar ao homem um mínimo de direitos, como a liberdade e a personalidade, que devem ser respeitados pela própria sociedade e pelo poder público que deve preservar a valorização do ser humano.
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