Medidas trabalhistas para o enfrentamento da crise provocada pela pandemia do coronavírus à luz da MP nº 927

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27/05/2020 às 19:31
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Examinar as medidas de flexibilização trabalhista, sob a ótica da MP nº 927, criadas para o enfrentamento da crise provocada pela pandemia da Covid-19. No presente artigo, foram analisadas a legislação pertinente, artigos jurídicos e doutrina trabalhista.

Introdução

Em tempos de crise, como a atualmente vivenciada pela sociedade, ocasionada pela pandemia do novo coronavírus (Covid-19), os direitos trabalhistas tornam-se pauta de variadas e enérgicas discussões. No cenário brasileiro, alguns instrumentos normativos foram publicados para definir providências para o enfrentamento da crise de emergência de saúde pública e da consequente crise econômica mundial.

A Lei 13.979, publicada no dia 06 de fevereiro de 2020, dispõe sobre as medidas para enfrentamento da pandemia. Expressões como “quarentena” e “isolamento” são definidas como medidas que podem ser adotadas para controlar a propagação da doença.

A Lei define, ainda, providências como determinação de realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais e coleta de amostras clínicas. Em seu artigo 3º, parágrafo 3º, a referida lei prevê o abono dos dias de falta do empregado em virtude das medidas preventivas citadas, para fins de controle da epidemia. Isso significa que o contrato de trabalho dos empregados atingidos pela quarentena ou pelo afastamento, mesmo quando não infectado pelo vírus, ficará interrompido, como medida preventiva. Desta forma, o empregado recebe o salário sem trabalhar.

A regra contida no artigo 3º da Lei 13.979/20 é clara quanto ao direito à justa falta do empregado no período de isolamento, devendo ser interpretado como interrupção do contrato de trabalho em face da semelhança com a redação contida no artigo 131 da CLT1, que dispõe “não será considerada falta ao serviço, para os efeitos do artigo anterior, a ausência do empregado”.

Ato contínuo, foi publicada a Medida Provisória (MP) nº 927, no dia 22 de março de 2020, prevendo flexibilizações e alternativas trabalhistas que poderão ser adotadas durante o estado de calamidade pública, visando à preservação das empresas e manutenção dos empregos.

O artigo 3º da referida MP pontua diversas ações que podem ser acordadas entre empregado e empregador – acordo individual – a fim de flexibilizar as relações de trabalho, com o objetivo de evitar demissões. São medidas como o teletrabalho, a antecipação de férias individuais e o pagamento do terço de férias após sua concessão, regime especial de compensação de jornada por meio de banco de horas, entre outras providências cabíveis.

A MP possui o evidente objetivo de evitar a extinção de empresas e a demissão de trabalhadores, autorizando medidas bilaterais, ajuste direto entre empregador e empregado e medidas unilaterais – determinadas somente pelo empregador. As disposições da MP se aplicam aos empregados urbanos, rurais, terceirizados e, no que for compatível, aos domésticos.


O estado de calamidade pública pode ser considerado força maior?

O parágrafo único do art. 1º da MP 927 prevê:

Art. 1º Parágrafo único. O disposto nesta Medida Provisória se aplica durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020, e, para fins trabalhistas, constitui hipótese de força maior, nos termos do disposto no art. 501. da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.

O artigo da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) referenciado acima prevê:

Art. 501. - Entende-se como força maior todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente.

Nesse contexto, caso uma situação seja enquadrada como força maior, é possível, segundo o artigo 503 da CLT, a redução geral dos salários dos empregados da empresa, proporcionalmente aos salários de cada um, até 25% (vinte e cinco por cento), respeitando o limite do salário mínimo.

Ocorre que o dispositivo supracitado, que define força maior na CLT, sempre foi muito questionado. Diversos autores defendem sua incompatibilidade com a Constituição Federal (CF), como o ministro do TST ,Maurício Godinho Delgado, que afirma que a redução apenas subsiste se baseada em negociação coletiva:

“a CLT (art. 503) previa a redução de jornada por ato unilateral do empregador – com respectiva redução salarial – desde que verificado motivo de força maior ou prejuízos devidamente comprovados. Porém, a contar de 5.10.1988, tal hipótese redutora, se vinculada à diminuição de salários, somente será válida caso respaldada em norma coletiva negociada (art. 7º, VI, CF/88). No tocante à redução em face de conjuntura econômica adversa (Lei 4.923, de 1965), o diploma instituído da hipótese já previa a necessidade de norma coletiva autorizadora (tendo sido, pois, recebido, neste aspecto, pela Constituição de 1988).”2

Nessa mesma esteira, o juiz do trabalho Cesar Zucatti do TRT da 4ª Região3 aduz que a regra de redução unilateral de salário, sem negociação coletiva, foi tacitamente revogada pelo art. 2º da Lei 4.923/65 e, ainda que assim não tivesse sido, não foi recepcionada pelo art. 7º, VI, da Constituição, que consagra a irredutibilidade salarial como direito do trabalhador, salvo negociação coletiva. Assim, ao estabelecer, ainda que em situações de força maior, a redução unilateral de salários sem intervenção dos sindicatos, o antigo art. 503. da CLT foi paralisado pela Magna Carta.

Embora haja discussões a respeito da constitucionalidade do art. 501. da CLT, é certo que a MP consagrou a pandemia vivenciada atualmente como hipótese de força maior. Nesse âmbito, o juiz do trabalho Leandro Fernandez do TRT da 6ª Região, alude que a pandemia é, sem dúvidas, corretamente enquadrada como hipótese de força maior, com base no princípio da segurança jurídica:

Cabe-nos, agora, indagar: os efeitos econômicos decorrentes da pandemia da covid-19 podem ser considerados como um caso de força maior? Sem sombra de dúvidas, a resposta é positiva. É certo que risco da atividade recai sobre o empregador (CLT, art. 2º), responsável, no exercício da livre iniciativa, pela organização do empreendimento e beneficiário primeiro dos seus resultados positivos. Crises econômicas são inevitáveis no sistema de produção capitalista, dotadas de caráter cíclico, não havendo quem seriamente possa alegar surpresa quando da sua chegada. Não estamos diante, entretanto, de simples crise de caráter estrutural, mas de uma emergência sanitária global, de proporções ainda desconhecidas pela humanidade, a ponto de exigir um conjunto de esforços de dezenas de países para realização de investimentos em dimensão inédita, em muitos casos representativos de frações significativas do Produto Interno Bruto das respectivas nações, com o propósito de evitar o completo estrangulamento das suas economias e de assegurar a subsistência dos indivíduos durante o período de isolamento social necessário à mitigação do inevitável colapso dos sistemas de saúde.” 4


Institutos flexibilizados pela Medida Provisória (MP) nº 927

Conforme narrado anteriormente, o art. 3º da MP 927 elenca diversas medidas de flexibilização trabalhista que podem ser adotadas durante o período de crise por meio de acordo individual entre empregado e empregador, ou seja, sem a participação dos sindicatos.

Acordo Individual

Durante o estado de calamidade pública, é facultado ao empregado e ao empregador a celebração de acordo individual escrito, com preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, conforme disposto no art. 2º da MP. Os acordos coletivos e convenções coletivas continuam tendo validade, mas, nas matérias tratadas na MP, o acordo individual escrito terá preponderância sobre os demais instrumentos, respeitados os limites estabelecidos na Constituição.

Nesse ponto, importa trazer à baila a discussão sobre o conflito de normas, pois o artigo 2º da MP colide frontalmente com o artigo 611-A da CLT, que tutela a prevalência das normas coletivas sobre a lei, conforme pontuado pela desembargadora do trabalho Vólia Bonfim5.

A desembargadora esclarece que, quando duas regras determinam a prevalência de uma sobre a outra, há o conflito de normas heterogêneas. Em se tratando de normas de mesma hierarquia, a resolução do conflito seria solucionada pela regra do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB) - princípio da lex posteriori derogat legi priori - , de modo que a regra a posterior revoga a anterior quando tratar da mesma matéria de forma diversa.

Sob este prisma, a MP prevalece durante o estado de calamidade pública, revogando os dispositivos das normas coletivas que contrariarem o ajuste escrito pactuado entre empregado e empregador. Este entendimento, segundo Vólia Bonfim, se coaduna com “o princípio da prevalência da saúde pública sobre o interesse individual, princípio da prevalência do coletivo sobre o particular, da solidariedade, da preservação e função social da empresa, subprincípio da função social da propriedade (art. 170. da CF)”.

No entanto, destaca que a questão não é tão simples, pois a antinomia entre as normas trabalhistas é solucionada pelo princípio da primazia da norma mais favorável ao trabalhador6. Contudo, Bonfim questiona a aplicação do referido princípio em tempos de grave crise econômica e de calamidade pública, defendendo a ponderação entre os princípios, a fim de que seja alcançada uma solução mais próxima da técnica e que atenda a situação atual do país.

Assim, como a MP possui o objetivo de proteção das empresas e dos postos de trabalho, sustenta que a regra de exceção deve prevalecer, de modo que o princípio da prevalência da norma mais favorável ao trabalhador pode ser mitigado. Acrescenta que o princípio da primazia da norma coletiva deve ser relativizado e prestigiada a autonomia da vontade das partes, comprovada pelo ajuste escrito entre patrão e empregado, ressalvado aquilo que ferir a Constituição ou em caso de comprovada coação.

Teletrabalho

A MP permite ao empregador alterar, a seu critério, o regime de trabalho presencial para o teletrabalho, trabalho remoto ou outro tipo de trabalho à distância. A alteração independe da existência de acordo individual ou coletivo e dispensa o registro prévio de alteração do contrato de trabalho, bem como autoriza que o empregador determine o retorno ao regime de trabalho presencial. Os requisitos estão elencados nos artigos 4º a 5º.

Enquanto o art. 75-C, § 2º da CLT estabelece o prazo de 15 (quinze) dias para que o empregador comunique ao trabalhador da modificação do teletrabalho para o regime presencial, o § 2º do art. 4º da MP diminuiu esse prazo para apenas 48 horas.

Sobre esse ponto, importa esclarecer que, em relação à alteração do regime presencial para o teletrabalho, a CLT não garante ao empregado nenhum prazo. Contudo, a MP garantiu ao empregado uma notificação prévia de 48 horaspara essa modificação, ou seja, configura o mesmo prazo para ambos os casos de transição. Conforme pontuado por Andre Pessoa e Raphael Miziara: “Por certo, tal diferenciação se dá porque na CLT a transição presencial para teletrabalho depende de mútuo acordo, ao contrário do que se dá na MP”7, que é feita unilateralmente por determinação do empregador.

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As disposições relativas à responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada e ao reembolso de despesas arcadas pelo empregado serão previstas em contrato escrito, firmado previamente ou no prazo de 30 (trinta) dias, contados da data de alteração do regime de trabalho.

Na hipótese do empregado não ter acesso aos equipamentos e a infraestrutura necessários, é facultado ao empregador: (i) fornecer os equipamentos em regime de comodato - empréstimo de bem não fungível; e (ii) pagar por serviços de infraestrutura, que não caracterizarão verba de natureza salarial, ou, na impossibilidade do mencionado acima, o período da jornada normal de trabalho será computado como tempo de trabalho à disposição do empregador.

Assim, ressalta-se que a MP trata de forma diferente o teletrabalhador e o trabalhador remoto que não utiliza equipamentos fornecidos pelo empregador para o trabalho em domicílio, pois para aquele foi mantida a regra da exclusão da jornada de trabalho, com fulcro no art. 62, III da CLT e para este, ao contrário, foi incluído o direito à jornada, independentemente da existência de controle ou fiscalização prescrita no art. 62, I da CLT, como se percebe no artigo 4º, parágrafo 4º, II da MP.

Nesse ponto, destaca-se o esclarecimento feito por Zucatti:

“Que fique claro que nenhum dispositivo da norma impõe ao trabalhador a assunção do correspondente custo (e nem poderia ser diferente, ante o princípio da alteridade). Antes pelo contrário, prevê que ajustem a forma de reembolso das despesas antecipadas pelo trabalhador e, se o empregado não possuir os equipamentos e a infraestrutura necessária à prestação do teletrabalho (§ 4º)”8

O tempo de uso nos aplicativos e programas de comunicação não será considerado como horas à disposição, exceto se houver previsão em acordo individual ou coletivo.

Além disso, fica autorizado trabalho remoto para aprendiz e estagiários e não se aplicam aos trabalhadores em regime de teletrabalho as regulamentações sobre trabalho em tele atendimento e telemarketing.

Férias Individuais e Coletivas

O art. 129. da CLT assegura a todo empregado o direito anual ao gozo de férias, sem prejuízo da respectiva remuneração. A MP flexibilizou o dispositivo em seus artigos 6º ao 10º.

De acordo com a MP, é possível que o trabalhador goze do período de férias, ainda que o período aquisitivo não tenha transcorrido integralmente. Nesse caso, o empregador deverá comunicar ao empregado com antecedência de, no mínimo, 48 (quarenta e oito) horas, por escrito ou por meio eletrônico, com a indicação do período a ser gozado, que não poderá ser inferior a 5 (cinco) dias, da mesma forma que prevê o art. 134. §1º da CLT

Além disso, empregado e empregador poderão negociar a antecipação de períodos futuros de férias - para os quais nem se iniciou o período aquisitivo, mediante acordo individual escrito.

Como medida preventiva, os trabalhadores que pertençam ao grupo de risco do coronavírus serão priorizados para o gozo de férias individuais ou coletivas.

Em relação aos profissionais da área da saúde e aos que desempenhem funções essenciais, o empregador poderá suspender as férias ou licenças não remuneradas, mediante comunicação formal ao trabalhador, por escrito ou por meio eletrônico, preferencialmente com antecedência de 48 (quarenta e oito) horas.

Em acréscimo, com o objetivo de desonerar o empregador, este poderá optar por efetuar o pagamento do adicional do terço de férias após sua concessão, até o dia 20 de dezembro de 2020. Com a mesma finalidade, o requerimento de conversão de um terço de férias em abono pecuniário (venda das férias) estará sujeito à concordância do empregador e também poderá ser quitado até o dia 20 de dezembro. Destaca-se que essa previsão não consta expressamente para as férias coletivas.

O pagamento da remuneração das férias concedidas em razão do estado de calamidade pública poderá ser efetuado até o quinto dia útil do mês subsequente ao início do gozo das férias, não se aplicando o art. 145. da CLT, que estabelece o pagamento em até 2 (dois) dias antes do início das férias.

Por fim, em caso de dispensa, o empregador pagará, juntamente com as verbas rescisórias, os valores ainda não adimplidos relativos às férias.

A antecipação de férias, inclusive de períodos futuros de férias, figura como medida salutar, que apesar de não ser o ideal em situação de normalidade, pode se demonstrar como importante saída para priorizar a preservação da vida e a manutenção de empresas e empregos, preservando a renda do empregado. Zucatti salienta, contudo, que “quanto à utilidade do instituto para o empregador, é certo que não se mostrará tão eficaz se já estiver descapitalizado, já que terá de continuar com os desembolsos ao menos nas datas ordinárias da folha de pagamento, mesmo não contando com a respectiva mão de obra”9, opinião a qual me filio.

No que concerne às férias coletivas, a MP simplificou sua regulamentação, conforme artigos 11 e 12, dispensando a comunicação ao Ministério da Economia e ao sindicato representativo da categoria profissional, além de reduzir o prazo mínimo de 15 (quinze) dias antes do seu início para 48 (quarenta e oito) horas de antecedência. Ademais, não são aplicáveis o limite máximo de 2 (dois) períodos anuais e o limite mínimo de 10 (dez) dias corridos, exigidos na CLT.

Antecipação e Aproveitamento de Feriados Não Religiosos

O empregador poderá antecipar o gozo de feriados não religiosos (federais, estaduais, distritais e municipais), que poderão ser utilizados para reduzir o sistema de compensação do saldo em banco de horas.

Essa medida poderá ser tomada de forma unilateral pelo empregador nos casos de feriados não religiosos, por meio de notificação, por escrito ou por meio eletrônico, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas de antecedência, aos empregados beneficiados dessa antecipação. A notificação deverá conter indicação expressa dos feriados aproveitados.

Para antecipação de feriados religiosos, é necessária a concordância do empregado, mediante acordo individual escrito, de forma bilateral (art. 13, § 2º).

Banco de Horas

Em seu artigo 14, a MP autoriza a interrupção das atividades pelo empregador e a constituição de regime especial de compensação de jornada, por meio de banco de horas, mediante acordo coletivo ou acordo individual formal, para compensação no prazo máximo de 18 (dezoito) meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública.

A compensação do período interrompido poderá ser feita a critério exclusivo do empregador, mediante prorrogação de jornada do empregado em até 2 (duas) horas, respeitado o limite de 10 (dez) horas diárias de trabalho.

Antonio Umberto, Danilo Gonçalves, Fabiano Coelho e Raphael Miziara consideram que, neste ponto, tal norma consiste em “regra totalmente compatível com as necessidades emergenciais decorrentes da pandemia, oferecendo instrumentos para que, de um lado, os trabalhadores preservem seus empregos e salários intactos e, de outro, os empregadores possam, em períodos de bonança econômica, recuperar esse tempo perdido em forma de reposição das horas lançadas no banco”10.

Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS)

Os empregadores poderão efetuar os depósitos dos valores do FGTS referentes às competências de março, abril e maio, com vencimento em abril, maio e junho, respectivamente, em até seis parcelas mensais, a partir de julho, sem a incidência da atualização, da multa e dos encargos, conforme previsto no art. 19.

Por se tratar de mera suspensão, a regra legal não fere o direito social do FGTS, como previsto no art. 7º, III da CF, na medida em que o direito do trabalhador é preservado.

No caso de rescisão do contrato de trabalho por iniciativa do empregador, este não fará jus à prorrogação acima referida e deverá efetuar os depósitos dentro do prazo legal estabelecido para sua realização, para que não fique sujeito à multa e aos encargos. Em relação a esse aspecto, Marco Aurélio Serau Júnior11 entende que:

“Embora o FGTS constitua um importante patrimônio dos trabalhadores, tanto do ponto de vista individual (proteção contra o desemprego) como no aspecto social (como financiador de outras políticas públicas, em particular os programas de habitação), cremos que essa alteração tributária vem bem a calhar para o momento, que exige adaptações. Trata-se de uma medida de parafiscalidade ou extrafiscalidade razoável para o momento.”

Serau explica que o artigo 19 introduz uma figura de moratória tributária12, conforme previsão do art. 151, I, do Código Tributário Nacional (CTN) e que o inadimplemento das parcelas de FGTS submeterá o empregador ao pagamento de multa e encargos, bem como ensejará o bloqueio do certificado de regularidade, pois conforme esclarece Paulo de Barros Carvalho, a suspensão proporcionada pela moratória é apenas da exigibilidade do crédito, não do próprio crédito tributário13.

Saúde e Segurança do Trabalho

Com o escopo de aumentar as medidas relativas à saúde e segurança do trabalho, a MP dispõe que ficam suspensas algumas obrigatoriedades, como a realização dos exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares, exceto exames demissionais, que serão realizados no prazo de 60 (sessenta) dias, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública.

Na hipótese de o médico coordenador de programa de controle médico e saúde ocupacional considerar que essa prorrogação representa risco para a saúde do empregado, ele indicará ao empregador a necessidade de sua realização antecipada.

O exame demissional poderá ser dispensado caso o exame médico ocupacional mais recente tenha sido realizado há menos de 180 (cento e oitenta) dias. Assim, será do empregador o ônus de provar a capacidade do empregado demitido neste período, pois optou em não fazer o exame médico demissional.

Ficam suspensas a obrigatoriedade de treinamentos periódicos e eventuais dos empregados, previstos em normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho, os quais poderão ser realizados na modalidade de ensino à distância. Os treinamentos não realizados nesse período deverão ser realizados no prazo de 90 (noventa) dias, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública.

As comissões internas de prevenção de acidentes poderão ser mantidas até o encerramento do estado de calamidade pública, e os processos eleitorais em curso poderão ser suspensos.

Nesse tópico, merece destaque o artigo 29 da MP, que dispõe:

Art. 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.

O artigo supracitado foi suspenso pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 29 de abril. Para o ministro Alexandre de Moraes14, o artigo deve ser suspenso por ser prejudicial para inúmeros trabalhadores de atividades essenciais, que estão expostos ao vírus, como motoboys, trabalhadores de limpeza e profissionais da saúde.

Ocorre que, o referido artigo gera divergências. Segundo opinião expressa em artigo escrito por Francisco Ferreira, Jouberto de Quadros e Letícia Costa15, “é temerário e precoce a afirmativa de que o empregador possa ser responsabilizado por acidente de trabalho ou doença do trabalho, caso o seu empregado tenha algum tipo de incapacidade ou venha a óbito em decorrência da patologia”, porque os sintomas do coronavírus não necessariamente têm relação com as condições do ambiente de trabalho, uma vez que seu contágio pode ocorrer em qualquer local.

Assim, os referidos juristas defendem que se o empregador adotar os cuidados recomendados, não há como ser responsabilizado civilmente por eventual contágio ocorrido no ambiente de trabalho. Reiteram, entretanto, que, em alguns casos específicos, dependendo do local de trabalho e das atividades exercidas, tem-se a possibilidade da caracterização da responsabilidade civil objetiva do empregador (art. 927. do Código Civil), precipuamente, para os trabalhadores da área da saúde.

Por outro lado, Zucatti16 afirma que o art. 21-A da Lei 8.213/91 prescreve a regra que considera caracterizada a natureza acidentária da incapacidade quando constatar ocorrência de nexo técnico epidemiológico entre o trabalho e o agravo. Assim, exemplifica que, durante a crise de saúde provocada pela Gripe A (H1N1), havia a presunção de que os profissionais de saúde infectados tinham sofrido acidente de trabalho ou doença ocupacional. Aponta, portanto, que o art. 29. da MP parece inverter essa lógica, descartando a presunção legal da estatística epidemiológica, imputando à vítima o ônus de comprovar o nexo.

Destarte, Zucatti afirma “que se essa foi a intenção da MP, afigura-se extremamente inapropriada, inoportuna e inadequada para o atingimento dos fins que declara em seu introito”, pois os profissionais mais vulneráveis ao contágio devem se sentir seguros e estimulados para trabalhar durante a pandemia, defendendo a revogação do dispositivo antes mesmo da suspensão realizada pelo Supremo.

Fiscalização e Procedimentos Administrativos

Os prazos processuais para apresentação de defesa e recurso, no âmbito de processos administrativos originados a partir de autos de infração trabalhistas e notificações de débito de FGTS, ficam suspensos pelo período de 180 (cento e oitenta) dias, contados da data de entrada em vigor da MP (art. 28).

Segundo o artigo 31, durante o período de 180 (cento e oitenta) dias, os Auditores-Fiscais do Trabalho atuariam somente de maneira orientadora, exceto em relação às seguintes atividades: falta de registro de empregado; situações de grave e iminente risco; acidente de trabalho fatal e; trabalho em condições análogas às de escravo ou trabalho infantil (art. 31). O referido artigo também foi suspenso pelo Supremo no dia 29 de abril, sob o argumento de não ser possível reduzir a fiscalização durante a pandemia, o que atentaria contra a saúde do empregado e, consequentemente, não auxiliaria no combate à crise.

Estabelecimento de Saúde

Em relação aos estabelecimentos de saúde, é permitido, mediante acordo individual escrito, mesmo para atividades insalubres e para a jornada de 12 (doze) horas de trabalho por 36 (trinta e seis) horas de descanso, prorrogar a jornada de trabalho pelo tempo necessário até o máximo de 2 (duas) horas durante o número de dias indispensáveis à recuperação do tempo perdido, desde que não exceda 10 (dez) horas diárias, em período não superior a 45 (quarenta e cinco) dias por ano.

Ainda, é possível adotar escalas de horas suplementares entre a 13ª e a 24ª hora do intervalo interjornada, garantido o repouso semanal remunerado.

As horas suplementares poderão ser compensadas no prazo de 18 (dezoito) meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública, por meio de banco de horas, ou remuneradas como horas extras.

Revogação do Art. 18

O texto original da MP estabelecia no artigo 18 a possibilidade de suspensão dos contratos de trabalho por um período de até 4 (quatro) meses, a fim de que o empregado participasse de curso ou programa de qualificação profissional não presencial. Esse artigo foi retirado pela MP 928, publicada em 24 de março de 2020.

Outras disposições

Os acordos e as convenções coletivas, vencidos ou vincendos, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contados da data de entrada em vigor da MP, poderão ser prorrogados, a critério do empregador, pelo prazo de 90 (noventa) dias, após o término final deste prazo.

O pagamento do abono anual ao beneficiário da Previdência Social que, durante o ano de 2020, tenha recebido auxílio-doença, auxílio acidente ou aposentadoria, pensão por morte ou auxílio reclusão será efetuado em duas parcelas, excepcionalmente.

Por fim, restaram convalidadas as medidas trabalhistas adotadas por empregadores que não contrariem o disposto no texto da MP, e que tenham sido tomadas no período dos 30 (trinta) dias anteriores à data de entrada em vigor da medida.

Nesse sentido, Francisco Ferreira, Jouberto de Quadros e Letícia Costa17 alegam que a lei pode ter efeitos retroativos, mas somente se preservar o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Desse modo, consideram que o efeito ex tunc trazido pela MP exige cautela, pois constitucionalmente há o princípio da irretroatividade das normas jurídicas.

Dessa forma, defendem que o dispositivo pode ser analisado pelo prisma de que as alterações contratuais ocorridas antes da MP e que se coadunam com a estrutura normativa da nova regra, de forma concreta, devem ser convalidadas, contudo, para fatos posteriores à vigência da MP.

Antonio Umberto, Danilo Gonçalves, Fabiano Coelho e Raphael Miziara, em consonância com tal entendimento, opinam que não se pode admitir a convalidação de medidas trabalhistas tomadas por empregadores no período dos 30 (trinta) dias anteriores à data de entrada em vigor da MP, pois o Decreto Legislativo que reconheceu o estado de calamidade pública é de 20 de março, sendo materialmente inconstitucional, por violação ao supracitado princípio de irretroatividade da lei previsto no art. 5º, XXXVI da CF.

No entanto, eles consideram que, “a par de tal constatação, não significa isso que, na análise de casos concretos, não possa o juiz concluir como escusável a irregularidade praticada entre o início da crise sanitária e a vigência da MP 927, diante da prova consistente de que o empregador já experimentava severas dificuldades, em especial em relação às medidas paliativas de preservação dos empregos e renda. É o caso da colocação repentina de empregados em férias, inclusive antecipadas, sem a observância do aviso prévio legal de 30 dias. É o caso também da antecipação de folgas correspondentes a futuros feriados. Em tal cenário conturbado e grave, nada impede que o julgador valha-se do juízo de equidade e busque a solução mais justa e adequada para o caso em suas mãos (CLT, art. 8º, caput)”18, solução que se coaduna com o enfrentamento da crise.

Sobre a autora
Lara Sena Scapetti Almeida

Sou advogada, formada na Universidade de Brasília (UnB) e atuante, sobretudo, na área trabalhista e de compliance trabalhista.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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