A descriminalização do aborto no Brasil

Exibindo página 2 de 2
Leia nesta página:

4. A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO

O crime de aborto e a imposição de uma gravidez indesejada à mulher comprometem a sua dignidade, cidadania, autonomia de vontade dentre outros direitos.

Diante de tantas pesquisas anteriormente feitas, a sua criminalização afeta, principalmente mulheres negras, indígenas, pobres, de baixa escolaridade e que vivem longe de centros urbanos, onde não tem condições de procurar métodos mais seguros de aborto como as mulheres que tem mais acesso à informação e poder econômico. São mulheres, com isso, mais suscetíveis à ação punitiva do Estado, pois os profissionais de saúde podem denunciá-las quando estas chegam aos hospitais, por isso, a criminalização do aborto afronta tantos princípios constitucionais expostos neste artigo e, sua descriminalização, seria a conclusão de um longo percurso.

Uma decisão ocorrida em 2016, conforme exposto anteriormente, onde o STF ao julgar o HC 124.306 declarou não ser considerado crime de aborto a interrupção da gestação até a 12ª semana de gestação; teve efeitos apenas entre as partes, mas já é um avanço neste tema, pois afirma que o aborto praticado voluntariamente nos três primeiros meses de gestação é inconstitucional e afeta direitos fundamentais das mulheres, como autonomia, integridade física, psíquica, direitos sexuais, reprodutivos, de gênero e representa um impacto desproporcional para as mulheres pobres.

Segundo Costa (2017), o Ministro Luís Roberto Barroso afirmou que a criminalização do aborto nos três primeiros meses de vida violaria a proporcionalidade, na medida em que não traria redução do número de abortos ou maior proteção à vida de mulheres e fetos, pois só impedem que os abortos sejam feitos de forma segura. A decisão não desconsidera que a vida seja um bem a ser protegido, mas aponta que sobrepor à proteção de um feto, ainda incipiente e dependente, a uma série de direitos da mulher seria desproporcional e inconstitucional, argumento que pode ser repetido pelo tribunal no julgamento da ADPF442, a qual já foi citada neste artigo.

A criminalização do aborto, conforme foi demonstrado neste artigo viola vários princípios fundamentais, e é o que a ADPF 442, proposta pelo PSOL discute em seus argumentos: direitos sexuais e reprodutivos da mulher; autonomia de vontade da mulher; integridade física e psíquica da gestante; igualdade de gênero; proporcionalidade; dignidade da pessoa humana. A ADPF fala também do crime de tortura, pois as mulheres, ao procurarem clínicas clandestinas, ou mesmo os hospitais, após sofrerem as consequências de um aborto realizado de forma insegura, são em algumas ocasiões muito maltratadas pelos profissionais de saúde e em alguns casos não recebem atendimento adequado.

Conforme disposto na ADPF 442/2017 (BRASIL, STF, 2017), os princípios da dignidade da pessoa humana das mulheres e cidadania informam como interpretar o direito à autonomia no caso concreto do aborto. Os indivíduos não existem em condições abstratas, pois suas escolhas são sempre feitas em contextos sociais dados e suas motivações, são também informadas pelas condições concretas em que vivem.

A proteção da autonomia como autodeterminação exige a garantia das condições sociais para a sua realização como projeto de vida. Por isso, autonomia é tanto a capacidade individual de se autodeterminar quanto às oportunidades, condições e proteções para o seu exercício. É do encontro da autonomia privada com os direitos à igualdade e não discriminação que a vida digna cidadã das mulheres pode ser protegida.

O direito ao aborto que no caso deveria ser denominado como interrupção da gravidez, mas como no Código Penal é assim tipificado, mantém-se este substantivo, é uma condição para a continuidade para um projeto de vida. Além disso, é um respeito aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher.

A ADPF 442/2017 (BRASIL, STF, 2017) dispõe que, a revisão da legislação punitiva do aborto pode e deve ser acompanhada de garantias de cidadania às mulheres, acesso à informação, educação escolar sobre saúde sexual e reprodutiva, oferta de métodos modernos de contracepção,assistência sócio psicológica após aborto ou parto, equipamentos sociais para o cuidado das crianças e suporte ao retorno das mulheres ao mercado de trabalho. Nesse sentido, o respeito à autonomia no campo reprodutivo tem como uma de suas consequências a redução de gestações não planejadas e, consequentemente, do número de abortos.

Cavalcante (2017) aponta que:

(...) a descriminalização do aborto poderia representar uma redução nos gastos com os procedimentos realizados em mulheres com complicações após abortos inseguros. É fato que a descriminalização do aborto faria crescer o número de abortos realizados pelo SUS (Sistema Único de Saúde), porém os gastos com abortos seguros seriam menores do que com os procedimentos realizados decorrentes de abortos clandestinos, posto que o número de curetagens pós-aborto no SUS pode chegar a ser 100 (cem) vezes mais do que o número de abortos realizados dentro da lei. (CAVALCANTE, 2017, p. 35).

Uma questão muito importante que deve ser levada em conta é que a descriminalização do aborto apenas leva para o direito uma situação que na realidade fática já existe e as mulheres não são obrigadas a realizá-lo, se não o quiserem, mas a descriminalização permite trazer, às claras, os direitos das mulheres, o porquê delas buscarem esta prática e ajudar na busca de políticas públicas para auxiliar na educação de base.

Para o caso da descriminalização do aborto levado ao STF como forma de considerar inconstitucionais os artigos do Código Penal que dispõe sobre o tipo penal, é importante também que seja observado um método que é o da proporcionalidade, que visa maximizar os efeitos do controle da constitucionalidade de leis restritiva de direitos fundamentais.

O objetivo de submeter casos difíceis ao teste da proporcionalidade é o de interpretar se um ato restritivo do poder do Estado, para promover a realização de um direito fundamental, restringe outro direito fundamental. Na questão do aborto, não haveria conflito entre direitos fundamentais, dado a impossibilidade de se imputar direitos fundamentais ao embrião ou feto.Como um exercício argumentativo concorrente, no entanto, seria uma ponderação entre os direitos fundamentais das mulheres e o respeito ao valor intrínseco do humano no embrião ou feto (BRASIL, ADPF 442/2017).

Assim, para o caso da proporcionalidade, primeiramente é feito o teste da adequação. No caso do aborto, a adequação avaliaria se existe um objetivo constitucionalmente passível de proteção pela criminalização do aborto. O STF vai analisar a legitimidade do objeto e se os meios são apropriados para o que a lei propõe regular. Neste caso, o valor intrínseco seria do embrião ou feto no útero de uma mulher, o meio seria a lei penal se adequada para a proteção deste objeto. Assim, num primeiro momento, a descriminalização não seria adequada.

Como ficou constatada a inadequação no caso do aborto, seria feito o teste da necessidade. Este só é feito quando a aplicação da máxima da proporcionalidade não se esgota na adequação. O teste da necessidade exige que a lei violadora de direitos constitucionais seja necessária para alcançar objetivos constitucionais legitimados, ou seja, que não existam outros meios menos intrusivos de igualmente alcançar os resultados. No caso específico do aborto, o teste da necessidade seria rapidamente superado pela análise das evidências comparativas.

Tão importante quanto à superação do teste da necessidade é a evidência de que os países de legislação protetiva aos direitos das mulheres apresentam taxas decrescentes de aborto em série históricas, ou mesmo mais baixas quando comparados com legislação mais restritiva. Isso significa que é com a descriminalização do aborto e com as ampliações nas políticas de planejamento familiar que mais eficazmente pode se proteger o valor intrínseco do humano (BRASIL, ADPF 442/2017).

Quanto ao teste da proporcionalidade estrita, ele avalia os efeitos da lei, se os benefícios justificam os efeitos e se há o impacto positivo da criminalização do aborto para a proteção do valor intrínseco do humano de embriões ou fetos contra os impactos negativos nos direitos fundamentais das mulheres. Isso mostra que mesmo que se imagine ser um objetivo constitucional legítimo proteger a vida do embrião ou feto, a máxima da proporcionalidade também protege a vida da mulher, seus direitos também são alcançados, como sua autonomia de decidir, o acesso a métodos contraceptivos seguros e também a uma interrupção segura.

A eficácia da criminalização do aborto garante a promoção de violação de preceitos fundamentais aqui debatidos, subjugando as mulheres, principalmente as mais vulneráveis.


CONCLUSÃO

Conforme foi visto neste artigo, o Código Penal considera o aborto como crime, a não ser em alguns casos, como de feto com anencefalia e gravidez resultante de estupro, que então são excetuadas. Porém, o aborto já é uma prática diária e legalizá-lo seria apenas colocar no direito um estado que, de fato, já existe.

O direito das mulheres deve estar protegido e deve ser respeitado, mesmo para aqueles que não sejam a favor da legalização do aborto, pois muitos preceitos fundamentais são violados com sua criminalização, além do que, mulheres morrem diariamente com sua prática ilegal.

Foi visto também que este tema entra no âmbito da saúde pública, dos direitos sexuais e reprodutivos. E ainda assim, todos esses direitos são violados, quando se trata da criminalização, pois a mulher não consegue ter um planejamento familiar adequado, também não consegue seguir com seus projetos de vida e ter sua própria liberdade de decidir se quer ou não prosseguir com a gravidez. Além disso, a maioria das mulheres que praticam um aborto inseguro, através de remédios, chás, com auxílio de um terceiro, uma parteira ou mesmo com outros meios, não tem acesso ou condições financeiras para procurar uma clínica médica clandestina. Sendo assim, podem ter consequências graves como hemorragias, infecções e várias outras complicações.

E o fato de a mulher optar pela prática de aborto faz com que ela seja discriminada, sendo que se comparada aos homens, por abandoná-las com filhos, não tem tanta repercussão negativa.

O aborto legalizado não servirá como um meio contraceptivo ou um substituto, até mesmo pelas consequências que trazem às gestantes, tanto físicas quanto psicológicas. Seria então uma forma de liberdade e uma opção legal e segura caso realmente assim decidam, além do que deverá ser realizado por um médico e dentro das semanas compatíveis e seguras também para o embrião.

O Brasil não pode ignorar a realidade dessas mulheres que realizam esses abortos ilegais, pois trazem um impacto negativo na saúde pública, por isso cabe ao Estado desenvolver políticas públicas para que se evite a ocorrência de vários problemas.

Com a descriminalização do aborto não significará que haverá um estimulo a sua prática, mas sim que os direitos constitucionais das mulheres, sua dignidade e liberdade devem estar acima de qualquer outro direito neste caso, levando assim à descriminalização do aborto.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

REFERÊNCIAS

ARENA FILHO, Alexandre. A legalização do aborto como forma de reduzir a quantidade de mortes maternas e os índices de criminalidade. XI Seminário Internacional de Demandas Sociais e Políticas Públicas na Sociedade Contemporânea, 2015.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União. Brasília: Congresso Federal, 1988.

BRASIL. Decreto-lei n. 2.848, de 7 dez. 1940. Código Penal. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, 1940.

BRASIL. HABEAS CORPUS 124.306 RIO DE JANEIRO. Disponível em: <https://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=330769>. Acesso em: 23 abr. 2020.

BRASIL. STF. ADPF 442/2017. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5144865>. Acesso em: 23 abr. 2020.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte especial: arts 121 a 212. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

CAVALCANTE, Bianca Paula Chaves. Descriminalização do aborto no Brasil. 67 fls. Monografia (Graduação). Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2017.

COSTA, Amanda Ribeiro da.Descriminalização do aborto. 32 fls. Monografia (Graduação). Faculdade de Direito, Ciências Administrativas e Econômicas da Universidade Vale do Rio Doce. Governador Valadares, 2011.

COSTA, Thais Lourenço. O aborto: um debate sobre a necessidade da legalização do aborto em algumas ocasiões.

DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. CienSaude Coletiva, v. 22, n. 2, p. 653-660, 2017. Disponível em: <https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017222.23812016>. Acesso em: 24 abr. 2020.

GONÇALVES, Vitor Eduardo Rios. Direito Penal Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2020.

MATTAR, Laura Davis. Reconhecimento jurídico dos direitos sexuais – uma análise comparativa com os direitos reprodutivos. SUR - Revista Internacional de Direitos Humanos, Ano 5,n. 8, São Paulo, Jun/2008, p. 60-83.

PEREZ, Barbara et.al. Aborto Provocado: Representações Sociais da Mulher. Rev. enferm.UERJ. Rio de Janeiro, v. 21, esp. 2, dez/2013, p. 736-42. Disponível em: <https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/enfermagemuerj/article/view/11516/9036>. Acesso em: 11 mai. 2020.

SANTOS, Vanessa Cruz et al. Criminalização do aborto no Brasil e implicações à saúde pública. Rev. bioét., n. 21, v. 3, p. 494-508, 2013.


THE DESCRIMINALIZATION OF ABORTION IN BRAZIL

Abstract: This article intends to address a very controversial topic, but of great relevance to society, namely, the decriminalization of abortion, which refers to the termination of pregnancy, which was often not desired or planned by the woman or adolescent and under Brazilian law. current, have to carry on, even without wanting this pregnancy. As a result, through illegal practices that can harm or even take away your life, these women and adolescents commit some acts that go from taking teas, medicines sold illegally, looking for clandestine medical clinics (those that have more financial conditions), and yet other home remedies that can cause infections, internal bleeding, etc. These women go to public or private hospitals and are often brought to justice to answer for the practice of abortion. In this sense, the debate on the decriminalization of abortion is facing a theme that violates fundamental precepts of the Federal Constitution and international human rights principles. And that is what is intended to be demonstrated in this article through doctrine, scientific articles, legislation and jurisprudence.

Keywords: Abortion. Decriminalization. Termination of pregnancy. Public health. Women rights.

Assuntos relacionados
Sobre as autoras
Larissa Simões

Estudante de direito

Isabella Emilli Faria Campos de Souza

Aluna do curso de direito

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos