Capa da publicação Direito à consciência: não há educação no piloto automático

Direito à consciência.

Não há educação no piloto automático

31/05/2020 às 21:38
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Não há Direito sem consciência.

Primeiramente, é preciso deixar claro duas questões: 1) Não retrato, nem critico, nem diminuo o trabalho de nenhum docente, pesquisador ou técnico empenhado em ofertar a melhor EaD possível, refiro-me no texto seguindo a lógica de que “o meio é a mensagem”; 2) Trata-se da visão de mundo pessoal, de quem assina a reflexão, e não institucional e muito menos da Coordenação de Curso de Pedagogia da UFSCar. Esses avisos são obrigatórios para se auferir objetividade ou honestidade intelectual na relação texto/leitor, ensinava Max Weber. De posse desse comunicado prévio, inicio com uma pergunta dirigida a mim mesmo: serei, mais cedo ou mais tarde, obrigado a me adequar à EaD (Educação à Distância)?
Sim, em decorrência da avassaladora pandemia e do prolongamento que se impõe pelo isolamento social. Eu quero isso? De jeito nenhum. E dou seguimento ao texto dizendo que reforço meu argumento com o uso político-ideológico da crase: à distância. Porque, como veremos, põe-se o conhecimento distante, incapaz de maturação e, assim, apenas transmite-se, na melhor das hipóteses, alguma informação.
A fim de que tenhamos alguma base concreta – do tipo concreto-pensado, de Karel Kosic – trazemos dados recentes (no âmbito estadual) e um caso concreto no Município de São Carlos. Primeiro, os dados oficiais no Estado de São Paulo e um terceiro sobre a realidade digital dos discentes da UFSCar:
• 30% das escolas públicas não têm sequer álcool em gel para as crianças, sem contar que o vírus não é controlado pelo uso de máscaras, permanecendo na roupa, nos cabelos e sendo transmissível pelos olhos, por exemplo. Teremos algum equipamento de desinfecção, como visto em países desenvolvidos, em cada escola pública – ou crianças e jovens pobres e negros são autoimunes ao novo coronavírus?
• 50% das crianças de escola pública não têm acesso à Internet. Então, serão apenas excluídas do processo de ensino e aprendizagem? E, mesmo as que possam ter acesso, é possível que não tenham recursos para assinaturas de planos de conexão ou poucos créditos para “assistirem” aulas remotas. O Estado ofertará recursos às crianças e jovens sem condições econômicas, a fim de que possam se manter conectadas?
• A UFSCar enviou questionário eletrônico, sobre a realidade de conexão, a todos os discentes: apenas 50% responderam. Os demais, puramente se rebelaram e não quiseram responder, em ato de Desobediência Civil arquitetada desde antes, ou simplesmente nem chegaram a ter contato com tal convocatória – ou, por falta de créditos, mesmo recebendo a chamada, não puderam acessar remotamente o referido questionário?

Além do exemplo da UFSCar, temos outra situação municipal bastante esclarecedora da atual extensão da pobreza e da miserabilidade social no país. Vejamos:
• Ana Júlia (10 anos) teve três “aulas” virtuais, no município de São Carlos e, em todas as ocasiões, participaram não mais do que três meninas da mesma idade. Por que as outras crianças não participaram desses “encontros”, por que não têm celular – ou os pais levam consigo ao trabalho –, por que não tem planos de conexão, por que não tem computadores em casa, por que não têm dinheiro para comprar dados móveis? Por que? Por que entendem que é um faz de conta, perda de tempo?

Essas questões interligam-se? Por óbvio que sim. No mínimo retiramos duas conclusões: a enorme exclusão social solidifica-se na exclusão digital; este dado, se e quando observado nos níveis municipais, estaduais e federais (caso das universidades públicas que têm ingresso por meio de políticas inclusivas), apresenta similitudes. A pandemia desvelou, esgarçou o véu da desigualdade social e somos obrigados a ver que a Educação de Qualidade (garantia constitucional) é um sonho, uma utopia ou, no caso grave e previamente anunciado em 2018, deve ser exclusividade dos grandes centros, além de se resumir à “ciência aplicada”, reprodutora de técnicas e de tecnologias a serviço do capital dominante e de seus Grupos Hegemônicos de Poder. A estes, quando ligado o piloto automático da reprodução do saber, basta-lhes o adestramento.
O adestramento pode e estará presente na EaD 
Em casos mais graves, trata-se de adestramento tecnicista. Adestramento é o que se aplica no militarismo e é tão nocivo que não serve nem aos cães-guia, pois, adestrados, os cães perdem toda capacidade autônoma. Pois bem, o ensino remoto, a EaD, ainda que não se limite ao adestramento, muito dificilmente superará os limites tecnicistas, impostos pela base técnica utilizada, além de servir aos princípios mercadológicos e atuar como ponta de lança da privatização das universidades públicas.
De fato, e por óbvio, como não se faz ciência mediante respostas a cinco testes escolares (pior ainda é pensar na alfabetização, com crase à distância), a consciência se evapora. É o que está dito: com ciência. Esta consciência é a capacidade crítica, em que se avalia, especialmente, os cânones da ciência pressuposta. Sem crítica, o cientista reproduz postulados (se e quando bem formado), mas é incapaz de fazer sua própria ciência avançar; pois, repete-se dia após dia. Sem crítica, naturalmente, não há autocrítica.
 Este processo de avanço da EaD (com crase, à distância) provocará extrema precarização do trabalho docente, além do enxugamento do mercado de trabalho, uma vez que um professor tanto terá 50 quanto 500 alunos: a aula comprada terá o mesmo valor. O estoque de inteligência arquivado em nuvens de pensamento comprável estará à disposição enquanto houver demanda e enquanto o “conjunto de informações” estiver validável para a produção e consumo. O trabalho precário chegou à educação faz algum tempo, com o fim dos regimes de dedicação exclusiva e a “flexibilização” da exigência de titulação docente: os “só” graduandos voltaram a ser regra no ensino superior.
Sem contar o rodízio anunciado (que já se impunha), diante das avaliações do Ministério da Educação (MEC), igualmente anunciadas (essas visitas) para que a IEs pudesse se “preparar”. Antes das tais visitas do avaliadores do sistema E-mec, a iniciativa privada contrata ou contratava doutores, faz ou fazia publicações, com linhas de pesquisa e até programas institucionais: alguns com excelência. No entanto, uma vez fixada a nota do curso ou da IEs (avaliação institucional), a instituição privada de ensino demitia a maioria dos docentes titulados (doutores e pós-doutores) e titulares: de carreira sólida.
Por que? Porque, salvo honrosas exceções, pesquisa e extensão – na iniciativa privada – são meros custos. O conhecimento, a educação de qualidade, sempre foi custo-Brasil. Então, o mais corriqueiro era e é a demissão de doutores porque a titulação implica em remuneração mais elevada. A iniciação científica ou as monitorias, quando existentes nas IEs privadas, podem ser conduzida por mestres e, raramente, são remuneradas; via de regra, apenas contabilizam “horas” para preencher relatórios de atividades complementares das alunas e dos alunos.
Da ciência de Paperview
Sem contar que, em EaD (Educação à Distância: com crase acentuada) uma aula pode atender 50 ou 500 pessoas. Não importa o número de atendíveis, a remuneração, a compra do trabalho docente tem preço fixo e foi acertado num só pacote: compra-se uma aula e não o número de acessos. Os testes podem ser corrigidos por monitores recém-formados, porque basta assinalar certo e errado em cada X. É óbvio, portanto, que não haverá Direito Autoral a ser requerido, posto que o conhecimento foi vendido no formato de uma aula. O docente-remoto não participa da conta de Paperview, da relação de consumo, só terá (tem) direito a vender o conhecimento uma única vez.
Outra conclusão, na verdade uma premissa já postada, indica/reforça que apenas “atores de cursinho” ou grandes medalhões, aqueles que já servem de chamariz ao público consumidor, terão acesso a esses processos de compra e venda do conhecimento.
 Outro aspecto, igualmente revelador, remonta às IEs que nem possuem “planos de carreira docente” e/ou, quando têm, não comunicam aos contratados – ou, se comunicam aos docentes, não os aplicam na prática. Com os técnicos-administrativos e terceirizados, por óbvio, será muito mais grave a precarização do trabalho.
Não são raros os casos em que, nas avaliações do MEC, os docentes revelem não saber diferenciar a remuneração entre mestres e doutores, ou seja, não sabem precisar sua própria realidade salarial. Muitos, aliás, não se importam, pois têm na educação um “bico”, um complemento salarial que paga a escola particular dos filhos. É um complemento porque os empregos mantidos fora da IEs configuram o verdadeiro salário bruto que lhes interessa.
 No caso da EaD, a expropriação é ainda maior, pior, uma vez que a “casa se transforma em unidade produtiva” – no dizer de Raquel Varela, docente portuguesa . Emprestando C. W. Mills (Imaginação Sociológica), podemos ver o regramento em definitivo do trabalho docente como “robôs alegres”. São os tempos da educação em um clique, um teste, não mais do que cinco; isto é a própria definição conceitual do conhecimento virtual.
O que reforça este sentido, além de tudo que foi exposto, é lógica óbvia: as IES privadas, como diz sua razão social, são empresas, e, para as empresas, o conhecimento válido é aquele aplicado ao mundo do trabalho – elevador de mais-valia – e ao mercado de consumo. Fora dessa lógica, trata-se de custo-Brasil.
Então, um “novo” aplicativo que lhes permita ampliar o sobre-trabalho e obter mais lucros (mais-valia exponencial do “trabalho vivo” e criativo, diria Marx, dos docentes) não será, por óbvio, recusado.
E não será este o desvelado objetivo da EaD? Mero ajuntamento dos custos da educação, ensino, conhecimento, ao fluxo de bits do sistema financeiro globalizado.
Não será o intuito apenas atender à necessidade de se ofertar informações e não conhecimento? Não será o objetivo da EaD relegar a necessária produção de conhecimento, desviando-a para organizações postadas em grandes centros?
E, ao se desvincular do conhecimento, a Ead não cumpre a missão de se desfiliar da obrigação de produzir ciência? Afinal, o objetivo não é a elitização (mais do que já é), privatização, e assim remover-se a capacidade crítica?
Basta-nos pensar que, sem crítica não há ciência. Pois, diante da obviedade, recordemos que o tecnicismo é incapaz de ir além da reprodução do conhecimento – nem é seu propósito. Isto é, sem crítica não se faz ciência, sem consciência, a dominação é facilitada. Basta que se assegure apenas a reprodução do mesmo, da mesmice; mas, retirando-se as pedras do caminho, a EaD garante um mundo mais dócil. 
 
Vinício Carrilho Martinez
UFSCar/São Carlos
Participei de 30 avaliações de cursos pelo MEC, só não fui a cinco Estados brasileiros e me desvinculei do sistema E-mec, de fato, em 2016.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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