1. INTRODUÇÃO:
A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988, como norma suprema, consagra uma série de princípios e normas fundamentais aplicáveis em diversos ramos do direito. Nesse sentido, o novo Código de Processo Civil (2015) trouxe diversas alterações e inovações, sobretudo, em relação ao Código anterior, buscando alinhamento aos princípios e normas fundamentais da CRFB/1988. Dentre os quais, destaca-se o princípio do contraditório (direito das partes se manifestarem da lide processual).
Nesse diapasão, as tutelas provisórias ganham destaque, tendo em vista a possibilidade de concessão de medidas a favor do autor liminarmente (antes da manifestação do réu), ou seja, exceção à regra constitucional (contraditório). Tendo o CPC de 2015 também realizado diversas alterações e inovações concernentes às tutelas provisórias, bem como, a sistemática dos procedimentos.
Assim, sob a égide da sistemática vigente no novo CPC, profunda discussão na doutrina foi em prol da grande novidade processual civil em relação à possibilidade de estabilização (em caráter definitivo) dos efeitos da tutela provisória de urgência antecipada concedida de forma antecedente e dos meios efetivos para sua impugnação, tendo, inclusive, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se manifestado a respeito em sede de Recurso Especial (Resp). Tratando-se, portanto, de tema polêmico na prática jurídica.
Desta forma, o objetivo desse trabalho será apresentar e discutir de forma breve e dinâmica à luz da doutrina e jurisprudência algumas questões acerca do princípio do contraditório na nova sistemática do CPC/2015, procedimentos das tutelas provisórias de urgência e pontos relevantes, destaque para tutela provisória de urgência antecipada requeridas em caráter antecedente e possibilidade de estabilização dos seus efeitos, bem como, elucidar acerca das questões pertinentes aos meios de impugnação aos efeitos da estabilização da tutela provisória de urgência antecipada antecedente.
2. PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO “MITIGADO” NO NOVO CPC:
O novo Código de Processo Civil (2015), alinhado às normas e princípios fundamentais estabelecidos na Constituição (1988), bem como à fase corrente por que se insurge o chamado neoprocessualismo ou formalismo valorativo (modelo constitucional de processo), buscou conferir efetividade às normas processuais e, por conseguinte, à tutela jurisdicional, consagrando nos arts. 1º a 12 as denominadas “normas fundamentais do processo civil”.
Sendo a tutela jurisdicional um direito fundamental (art. 5º, XXXV, da CF/1988 c/c art. 3º do CPC), deve ser prestada, portanto, de modo efetivo, célere e adequado (art. 5º, LXXVIII, da CF/1988 c/c art. 4º do CPC). Nessa linha, afirma-se que, como é cediço, os direitos fundamentais geram influência sobre todo o ordenamento, servindo de norte para adoção de todos os poderes constituídos (MENDES et al, 2008, p. 266)
É nesse diapasão que os artigos 9º e 10º do Diploma Processual Civil consagram o princípio do contraditório em sua dimensão efetiva e substancial (inovação proeminente em relação ao código anterior) com consonância com o texto constitucional.
Determina a Carta Magna em seu consagrado art. 5º, Inciso LV que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Nessa linha, os artigos 9º e 10º do CPC/2015 assim preconizam:
Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.
Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica:
I - à tutela provisória de urgência;
II - às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III;
Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
Há, assim, a consagração de regra geral que estipula a prévia oitiva da parte antes de decisões que lhe possam ser prejudiciais. Trata-se, segundo Haroldo Lourenço (2019, p. 5), de “participação dialética na formação do convencimento do juiz, que irá julgar a causa (efetividade do contraditório)”, compondo uma ordem jurídica justa.
Novidade também relevante do novo CPC é o princípio da não surpresa, consagrado no artigo 10º retrocitado, não podendo o juiz decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício (reforçando o princípio da segurança jurídica).
Percebe-se, nesses dispositivos, a tutela do princípio do contraditório. O artigo 9º, impedindo (em regra) que o juiz profira decisão antes de ouvir a parte potencialmente prejudicada e o artigo 10º, impedindo que o juiz decida com base em fundamento sobre o qual as partes não tiveram oportunidade de se manifestar. Tais dispositivos consagram, além do contraditório e da ampla defesa, o princípio da cooperação, preconizando a efetiva possibilidade do diálogo entre as partes e o juiz, reforçando também a segurança jurídica.
Tanto é assim que na doutrina consagrada o princípio do contraditório é inerente ao processo, possuindo duas dimensões, uma formal (direito de participar do processo) e outra substancial (poder de influência). Não podendo o processo civil moderno (democrático e cooperativo) comportar surpresas (Lourenço, 2019, p. 24-35).
Não obstante, como toda regra cabe exceções (mitigação ao princípio do contraditório), conforme exposto no próprio texto legal, são hipóteses, em que a oitiva da parte contrária poderá ser diferida/posterga (ou seja, são hipóteses em que o juiz poderá decidir liminarmente, em juízo de cognição sumária), justamente os casos de tutela provisória de urgência e evidência, as quais se fundamentam em dois elementos: pela urgência da tutela (calcada na probabilidade do direito e o perigo na demora), que, acaso se aguarde a manifestação da outra parte, põe em risco o próprio direito pleiteado (objeto do processo) e pela evidência documental (maior probabilidade do direito sem necessidade de demonstração de dano ou risco ao processo).
As mencionadas exceções, mormente, as tutelas de urgência serão explanadas a seguir, com vistas a uma melhor elucidação do assunto em lide.
3. TUTELAS PROVISÓRIAS DE URGÊNCIA:
Como visto, as tutelas provisórias de urgência consubstanciam exceções ao princípio do contraditório, possibilitando sua concessão liminarmente, antes de ouvir a outra parte (inaudita altera parte), quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito (fumus boni iuris) e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo (periculum in mora), consoante o exposto no art. art. 300 do CPC.
De acordo com a doutrina (LOURENÇO, 2019, p. 317), a tutela oferecida pelo Judiciário pode ser definitiva ou padrão (com cognição exauriente), havendo amplo e profundo debate acerca do objeto do processo, produzindo coisa julgada material. Há por outro lado o surgimento de tutelas diferenciadas (em busca de maior rapidez), que ou antecipam a realização do direito pleiteado (tutela satisfativa do direito material) ou asseguram a futura realização desse direito (tutela cautelar ou não satisfativa do direito material, que resguarda os efeitos de um processo).
Essas últimas são denominadas tutelas provisórias (DIDIER, 2009, p. 512), justamente por se caracterizarem pela cognição sumária, em um juízo de probabilidade, sendo não definitivas, não fazendo coisa julgada material, sendo temporárias e precárias (art. 296 do CPC).
À luz do preceituado no parágrafo único do art. 294 do CPC, a tutela provisória de urgência se reparte na tutela antecipada (satisfativa) e na cautelar (não satisfativa), podendo ambas serem concedidas de maneira antecedente (antes da formação da lide) ou incidental (no curso do Processo). Sendo a probabilidade do direito (fumus boni iuris) e o perigo na demora (periculum in mora) requisitos comuns entre elas.
Nesse contexto, segundo ensina Aroldo Lourenço:
A tutela antecipada satisfaz imediatamente, total ou parcialmente, o direito material deduzido, antecipando a eficácia da decisão final, portanto, satisfativa. Já a tutela cautelar não satisfaz, somente garante futura satisfação do direito material deduzido, portanto, não satisfativa. Enfim, o que as diferencia é o tipo de situação de perigo existente. Se o perigo incidir sobre o direito material (perigo da morosidade), será cabível a tutela antecipada. Se o perigo incidir sobre os efeitos do processo (perigo da infrutuosidade), será hipótese de tutela cautelar. (2019, p. 317)
3.1. Pontos relevantes acerca das Tutelas de Urgência:
Vale bem destacar alguns pontos relevantes acerca das tutelas de urgência, à luz das diretrizes do CPC de 2015.
A tutela provisória incidental será requerida ao juízo da causa e, quando antecedente, ao juízo competente para conhecer do pedido principal (art. 299). Quando requerida em caráter incidental independe do pagamento de custas (art. 295).
O juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para efetivação da tutela provisória. Na decisão que conceder, negar, modificar ou revogar a tutela provisória, o juiz motivará seu convencimento de modo claro e preciso. Nos termos do art. 1.015, inciso I, contra as decisões interlocutórias que versarem sobre tutelas provisórias, cabe Agravo de Instrumento (15 dias). Entretanto, se for deferida em sentença, será impugnável por apelação, como se observa no art. 1.013, §5º.
A tutela provisória conserva sua eficácia na pendência do processo, mas é precária, ou seja, pode, a qualquer tempo, ser revogada ou modificada.
Para a concessão da tutela de urgência, o juiz pode, conforme o caso, exigir caução real ou fidejussória idônea para ressarcir os danos que a outra parte possa vir a sofrer, podendo a caução ser dispensada se a parte economicamente hipossuficiente não puder oferecê-la (art. 300, §1º). E a tutela de urgência de natureza cautelar pode ser efetivada mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito.
Dispõe o §3º do art. 300 que “a tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão”. Para doutrina, trata-se de um pressuposto negativo para o deferimento da tutela de urgência, eis que uma antecipação irreversível, a rigor, é um provimento definitivo (LOURENÇO, 2019, p. 219-220; CARNEIRO, 2004, p. 19).
Assim, deve ser possível o retorno ao status quo ante, caso seja alterada ou revogada no curso do processo. Exceto nos casos de irreversibilidade recíproca (quando a concessão ou a não concessão gera efeitos irreversíveis para ambas as partes), quando deverá ser aplicada como solução a ponderação de interesses (art. 489, §2º), buscando-se uma proteção do interesse mais relevante, podendo-se, inclusive, se cogitar na prestação de caução (contracautela), nos termos do art. 300, §1º, a qual também não poderá impedir a concessão da tutela provisória (art. 521).
Nessa sequência, vale asseverar a responsabilidade objetiva do beneficiário da medida por eventuais prejuízos ou danos causados à outra parte, caso haja cassação da tutela provisória, de acordo com a inteligência do art. 302 e incisos, doutrina majoritária (DIDIER, 2009, p. 556 e 563-564) e posição do STJ (REsp 1.191.262/DF, 2012).
4. TUTELAS PROVISÓRIAS DE URGÊNCIA REQUERIDAS EM CARÁTER ANTECEDENTE:
No CPC anterior (de 1973), a tutela provisória antecipada poderia ser requerida na própria petição inicial (concomitantemente ao pedido principal) ou no decorrer do processo (incidentalmente).
Não obstante, consta no novo Código de Processo Civil (de 2015), além das referidas hipóteses, a possibilidade de concessão de tutela antecipada requerida em caráter antecedente (antes da formação da lide/processo principal), a teor do que dispõe o seu art. 303, o qual estabelece que “nos casos em que a urgência for contemporânea à propositura da ação, a petição inicial pode limitar-se ao requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo”.
Consoante precisa análise do Professor Aroldo Lourenço (2019, p. 324), trata-se de uma petição inicial “incompleta”, em que pese seja obrigatória a atribuição de valor à causa, considerando a tutela final (§4º). Sendo imprescindível que a urgência seja atual (contemporânea). Tal previsão é muito útil aos jurisdicionados, principalmente para as hipóteses como atendimento médico emergencial, onde não seria razoável se exigir uma inicial completa.
Nessa nova sistemática, entendendo o juiz pelo indeferimento da tutela provisória antecipada antecedente (que não estão presentes os requisitos para a concessão), o autor será intimado para emendar (corrigir) a inicial, no prazo de até 5 (cinco) dias, sob pena de ser extinto o processo sem resolução de mérito (art. 303, §6º).
Por outro lado, sendo concedida a tutela provisória antecipada antecedente, o autor será intimado para aditar (completar) sua inicial (art. 303, §1º, inciso I), a fim de complementar sua argumentação, juntar novos documentos e confirmar o pedido de tutela final, em 15 (quinze) dias, ou em prazo que o juízo fixar, sob pena de extinção sem resolução do mérito, o que deverá ser realizado nos mesmos autos, sem complementação de custas (§§2º e 3º).
O aditamento da inicial incompleta pelo autor deverá ocorrer antes da citação e intimação do réu para audiência de conciliação ou de mediação, na forma prevista no art. 334 c/c art. 303, §1º, inciso II. E, não havendo autocomposição, o réu deverá apresentar contestação no prazo de 15 (quinze) dias.
Com relação ao procedimento da tutela cautelar requerida em caráter antecedente, consta estipulado no art. 305 que “a petição inicial da ação que visa à prestação de tutela cautelar em caráter antecedente indicará a lide e seu fundamento, a exposição sumária do direito que se objetiva assegurar e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”. E o juiz, caso entenda que o pedido tem natureza antecipada, observará o disposto no art. 303 (fungibilidade entre as tutelas de urgência). O réu terá o prazo de 5 (cinco) dias para contestar (sob dos efeitos da revelia). Concedida a tutela cautelar antecedente, o autor terá o prazo de 30 (trinta) dias para formular o pedido principal (aditamento).
4.1. Estabilização tutela antecipada requerida em caráter antecedente:
É uníssono tanto na doutrina quanto na jurisprudência que uma das maiores novidades trazidas pelo novo Código Processual Civil (2015) é justamente a possibilidade de estabilização da tutela antecipada requerida em caráter antecedente, disciplinada no referido art. 303 (exposto anteriormente).
Essa previsão foi trazida pelo art. 304, §§ 1º a 6º, que assim dispõe:
Art. 304. A tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso.
§ 1º No caso previsto no caput , o processo será extinto.
§ 2º Qualquer das partes poderá demandar a outra com o intuito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada nos termos do caput.
§ 3º A tutela antecipada conservará seus efeitos enquanto não revista, reformada ou invalidada por decisão de mérito proferida na ação de que trata o § 2º.
§ 4º Qualquer das partes poderá requerer o desarquivamento dos autos em que foi concedida a medida, para instruir a petição inicial da ação a que se refere o § 2º, prevento o juízo em que a tutela antecipada foi concedida.
§ 5º O direito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada, previsto no § 2º deste artigo, extingue-se após 2 (dois) anos, contados da ciência da decisão que extinguiu o processo, nos termos do § 1º.
§ 6º A decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revir, reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes, nos termos do § 2º deste artigo.
Como visto (art. 304), ocorre a denominada estabilização da tutela provisória de urgência antecipada antecedente, se a mesma for concedida eréu dela não recorrer, o que ocasionará a extinção do processo sem resolução do mérito (§1º), ou seja, a decisão antecipada de urgência (satisfativa) - favoravelmente ao autor - se estabiliza. Deve-se advertir que cabe ao autor cumprir o aditamento da inicial (em 15 dias a partir do deferimento da tutela), como previsto no art. 303, §2º, de forma a evitar a extinção do processo sem resolução do mérito (contra seu favor).
Nos termos da inteligência do art. 304 e seus §§, no prazo de 2 (dois) anos, porém, contado da ciência da decisão que extinguiu o processo, as partes poderão pleitear, perante o mesmo Juízo que proferiu a decisão, a revisão, reforma ou invalidação da tutela antecipada estabilizada (ou desarquivamento), devendo se valer de ação autônoma para esse fim. A estabilização da decisão que concede a tutela não faz (em tese) coisa julgada, mas só será afastada por decisão que a revir, reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes (§2º c/c §6º).
Segundo o Professor Haroldo Lourenço (2019, p. 335), “transcorrido tal prazo (2 anos), haverá uma estabilização irreversível. Interessante que há uma decisão de mérito a que não caberá rescisória (Enunciado 33 do FPPC), não obstante ser definitiva”.
Nesse diapasão e consoante salienta o renomado Professor, tal estabilização (irreversível e definitiva) não se confunde com a coisa julgada, até porque prolatada em cognição sumária, somente podendo ser afastada por decisão judicial em ação autônoma que a revir, reformar ou invalidar, a ser proposta pelo interessado dentro do prazo de dois anos, contados da ciência da decisão que extinguiu o processo (§§2º a 6º do art. 304), devendo tal decadência observar o regime jurídico do Código Civil.
Para o STJ, o referido instituto (estabilização da tutela provisória de urgência antecipada concedida em caráter antecedente) foi inspirado no référé do Direito francês, servindo para abarcar aquelas situações em que as partes se contentam com a simples tutela antecipada, não havendo necessidade, portanto, de se prosseguir com o processo até uma decisão final (sentença). Em outras palavras, o autor fica satisfeito com a simples antecipação dos efeitos da tutela satisfativa e o réu não possui interesse em prosseguir no processo e discutir o direito alegado na inicial. Nesse caso, o processo será extinto, sem resolução de mérito, e a decisão concessiva da tutela antecipada se estabilizará. (Resp 1760966/SP, 2018).
Nesse sentido, aduz o STJ que ideia central do instituto, portanto, é que, após a concessão da tutela antecipada em caráter antecedente, nem o autor e nem o réu tenham interesse no prosseguimento do feito, isto é, não queiram uma decisão com cognição exauriente do Poder Judiciário, apta a produzir coisa julgada material.
4.2. Meios de impugnação aos efeitos da estabilização da tutela provisória de urgência antecipada antecedente:
Nos termos do art. 304, a tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso (meio previsto de impugnação do réu à medida).
Afirmava a doutrina (minoritária) que o vocábulo recurso deveria ser interpretado em sentido estrito, ou seja, agravo de instrumento (contra decisão interlocutória do Juiz) ou interno, quando o feito tramitar no tribunal. (CÂMARA, 2015, p. 164-165; LOURENÇO, 2019, p. 326)
Não obstante, o STJ já se pronunciou acerca do assunto afirmando que, se o réu apresentar contestação (ou qualquer outro meio de impugnação), impedirá a estabilização. (Resp 1760966/SP, 2018)
Para o STJ, a leitura que deve ser feita do dispositivo legal (art. 304), tomando como base uma interpretação sistemática e teleológica do instituto, é que a estabilização somente ocorrerá se não houver qualquer tipo de impugnação (seja agravo de instrumento, contestação ou outra media) pela parte contrária.
O colegiado do STJ asseverou que, sem embargo de posições em sentido contrário, o referido dispositivo legal disse menos do que pretendia dizer, razão pela qual a interpretação extensiva mostra-se mais adequada ao instituto, notadamente em virtude da finalidade buscada com a estabilização da tutela antecipada. Nessa perspectiva, caso a parte não interponha o recurso de agravo de instrumento contra a decisão que defere a tutela antecipada requerida em caráter antecedente, mas, por exemplo, se antecipa e apresenta contestação (ou algum outro tipo de manifestação) refutando os argumentos trazidos na inicial e pleiteando a improcedência do pedido, evidentemente não ocorrerá a estabilização da tutela, afirma ainda aquele Superior Tribunal.
Conforme ainda o entendimento do STJ, com efeito, não admitir essa situação estimularia a interposição de agravos de instrumento, sobrecarregando desnecessariamente os Tribunais, quando bastaria uma simples manifestação do réu afirmando possuir interesse no prosseguimento do feito, resistindo, assim, à pretensão do autor, a despeito de se conformar com a decisão que deferiu os efeitos da tutela antecipada. Da mesma forma, tal situação também acarretaria um estímulo desnecessário no ajuizamento da ação autônoma, prevista no art. 304, § 2º, do CPC/2015, a fim de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada.
A doutrina (majoritária) está em harmonia e encamou entendimento semelhante ao do STJ. Na mesma linha desse entendimento, Fredie Didier Jr., Paula S. Braga e Rafael A. de Oliveira sustentam que:
Se, no prazo de recurso, o réu não o interpõe, mas resolve antecipar o protocolo da sua defesa, fica afastada a sua inércia, o que impede a estabilização - afinal, se contesta a tutela antecipada e a própria tutela definitiva, o juiz terá que dar seguimento ao processo para aprofundar sua cognição e decidir se mantém a decisão antecipatória ou não. Não se pode negar ao réu o direito a uma prestação jurisdicional de mérito definitiva, com aptidão para a coisa julgada. (2016, p. 690)
Não em outro sentido, Daniel Assumpção, ao tratar do assunto, bem esclarece essa questão, ao consignar o seguinte:
Tenho um entendimento ainda mais amplo, admitindo que qualquer forma de manifestação de inconformismo do réu, ainda que não seja voltado à impugnação da decisão concessiva de tutela antecipada antecedente, é o suficiente para se afastar a estabilização prevista no art. 304 do Novo CPC. O réu pode, por exemplo, peticionar perante o próprio juízo que concedeu a tutela antecipada afirmando que, embora não se oponha à tutela antecipada concedida, não concorda com a estabilização, e que pretende a continuidade do processo com futura prolação de decisão de mérito fundada em cognição exauriente, passível de formação de coisa julgada material. (2016, p. 452)
Consoante Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero o entendimento não é diferente, os quais afirmam que:
Se o réu não interpuser o agravo de instrumento, mas desde logo oferecer contestação no mesmo prazo - ou ainda manifestar-se dentro desse mesmo prazo pela realização da audiência de conciliação ou de mediação, tem-se que entender que a manifestação do réu no primeiro grau de jurisdição serve tanto quanto a interposição do recurso para evitar a estabilização dos efeitos da tutela. Essa solução tem a vantagem de economizar o recurso de agravo e de emprestar a devida relevância à manifestação de vontade constante da contestação ou do intento de comparecimento à audiência. Em ambas as manifestações, a vontade do réu é inequívoca no sentido de exaurir o debate com o prosseguimento do processo. (2018, p. 418)
O entendimento majoritário alhures da doutrina e jurisprudência, portanto, privilegia razoavelmente uma interpretação sistemática e teleológica do dispositivo, nos termos da afirmação do próprio STJ. Assim, pelo exposto, o legislador pretendeu estabilizar a concessão da tutela provisória de urgência antecipada antecedente somente quando não haja oposição da parte adversa, podendo a contestação (ou qualquer outra forma de impugnação) do réu ser apta a evitar a estabilização da tutela posto que configura uma forma de manifestação de inconformismo com a decisão.
5. CONCLUSÃO:
Dentre as diversas inovações, o novo CPC (2015), alinhado aos princípios fundamentais consagrados na CRFB/1988, trouxe importante reforço e efetivação ao princípio do contraditório, no sentido de evitar decisões surpresas (sem a manifestação prévia da parte contrária), tratando-se, pois, de um processo civil moderno, democrático, justo e cooperativo.
Não obstante, como forma de exceção (mitigação) a essa regra geral (contraditório), o CPC também trouxe novidades relevantes aos procedimentos de tutelas provisórias, as quais estão subdivididas em dois grupos: tutelas provisórias de urgência (fundada basicamente na probabilidade do direito e no perigo na demora) e evidência documental. Tratando-se de hipóteses em que o juiz poderá decidir liminarmente (inaudita altera parte), em juízo de cognição sumária, postergando e diferido o contraditório (o réu se manifestará posteriormente a concessão liminar do pedido do autor).
Como visto, as tutelas provisórias de urgência consubstanciam exceções ao princípio do contraditório, possibilitando sua concessão liminarmente, antes de ouvir a outra parte (inaudita altera parte), quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito (fumus boni iuris) e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo (periculum in mora), consoante o exposto no art. art. 300 do CPC.
À luz do preceituado no parágrafo único do art. 294 do CPC, a tutela provisória de urgência se reparte na tutela antecipada (satisfativa) e na cautelar (não satisfativa), podendo ambas serem concedidas de maneira antecedente (antes da formação da lide) ou incidental (no curso do Processo). Sendo a probabilidade do direito (fumus boni iuris) e o perigo na demora (periculum in mora) requisitos comuns entre elas.
É uníssono tanto na doutrina quanto na jurisprudência que uma das maiores novidades trazidas pelo novo Código Processual Civil (2015) é justamente a possibilidade de estabilização da tutela antecipada requerida em caráter antecedente, se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso (art. 304).
Em que pese discussões e divergência na doutrina acerca da interpretação dos meios de impugnação (pelo réu) aos efeitos da estabilização da tutela provisória de urgência antecipada antecedente, o STJ (Resp 1760966/SP, 2018) já se pronunciou acerca do assunto afirmando que, se o réu apresentar recurso ou contestação (ou qualquer outro meio de impugnação), impedirá a estabilização. Fazendo, portanto, uma interpretação extensiva, sistemática e teleológica da norma processual civil, à qual a maioria doutrina encontra-se filiada.
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). REsp 1.191.262/DF, 4. T., rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 16/10/2012.
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Coêlho, Marcus Vinicius Furtado. Art. 304 do CPC - Estabilização da tutela antecipada em caráter antecedente. In: Migalhas, 14 de fevereiro de 2019. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/CPCMarcado/128,MI296287,71043-Art+304+do+CPC+Estabilizacao+da+tutela+antecipada+em+carater>. Acessado em 09 de dezembro de 2019.
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