DEMOCRACIA E TOTALITARISMO
1. Da Antiguidade Clássica a Atualidade
A Democracia constitui uma forma de governo, no qual o poder emana do povo, que o exerçe diretamente ou mediante representantes eleitos (LOPES,2010)[1] . Historicamente surge como tal na Grécia antiga, especificamente na cidade-estado de Atenas com moldes peculiares. Nessa quadra histórica, travou-se entre os filósofos, intensos debates sobre a viabilidade das formas de governos então existentes: monarquia, aristocracia e a democracia (BOBBIO,1981)[2] .
Elaborou-se as célebres teorias sobre as formas puras e as formas corrompidas das respectivas formas de governo supracitadas, segundo Bobbio a monarquia degeneraria em tirania, a aristocracia em oligarquia e a democracia em anarquia ou oclocracia.
Atravessando o período dito “medieval” reencontraremos a democracia na gênese das revoluções burguesas, nas penas dos contratualistas, dos iluministas, na magnífica obra de Rousseau e de Montesquieu. Segundo Lopes três grandes revoluções político-sociais conduziram ao moderno Estado de Direito: a revolução inglesa, a revolução americana e a revolução francesa, esta ultima corolário dos ideais liberais e burgueses. Com relação aos direitos adquiridos prossegue Lopes "…são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência a opressão”.
No campo do Direito das pessoas, Rocha [3] , destaca os seguintes:
"…todos são considerados inocentes, até prova em contrário; a todos é dispensado o benefício da dúvida; ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo; cabe a quem acusa o ónus da prova; ninguém poderá permanecer preso sem que haja culpa formada;”.
Todas essas garantias foram gradativamente sendo elevadas á dignidade constitucional. Pra não falar do sufrágio universal, confundido as vezes com o próprio exercício da cidadania.
O século XIX, é definido pelo ilustre jusfilósofo Paulo Dourado de Gusmão em sua filosofia do direito como “época áurea de segurança”, fortalecida pela crença na “capacidade dos governos”(GUSMÃO,1996) [4] . Não era pra menos, a ciência desenvolvia-se vertiginosamente, as recentes publicações de Darwin, pareciam dar a resposta que faltava aos últimos questionamentos da velha ordem. As ciências humanas eivadas de positivismo demonstraram a possibilidade de respostas aos problemas sociais, antes confinados a teologia e à filosofia. De fato a teologia e a filosofia pareciam agonizar.
Passado este período o século XX surpreendeu a todos com duas hecatombes de proporções globais: as duas Grandes Guerras Mundiais. Mas não foi só isto, viu ainda ascender ao poder. em alguns países regimes totalitários e desumanos. Agora tudo passaria por uma reformulação vital. A ideia de progresso seria substituída pela de processo, a de coisas absolutas em coisas relativas, porque repentinamente um sonho pareceu ruir por completo. Foi precisamente nesse quadro que emergiu com força o debate em torno da democracia e do totalitarismo.
Segundo Sarah Escorel [5] , a democracia passou a ser percebida não mais como uma simples forma de governo, acima de tudo, passou a ser buscada como um valor, um bem coletivo da maior importância; cara para ser alcançada, na maioria dos casos. O totalitarismo por sua vez teve ocasião mesmo no seio de projetos como o comunismo marxista.
Nas precisas palavras de Rocha:
"A revolução Russa, inicialmente vitoriosa, foi batida pela contrarrevolução. A pretendida URSS descambou para um Estado politicamente totalitário e, dessa forma, revogou todos os princípios democráticos. Extinguiu o voto universal e secreto, se não na forma, mas no seu conteúdo. Suprimiu o direito de ir e vir. Aboliu por completo, o livre pensar, a livre organização, o livre debate…Criou-se a prática de se produzirem “provas” contra a própria pessoa…".
Além desse caso sui generis, impôs-se na Alemanha de Hitler e na Itália de Mussolini, dois violentos totalitarismos, o Nazismo e o Fascismo, respectivamente. Hannah Arendt em sua Origens do Totalitarismo observa uma tendência à universalização nesses regimes, aponta como contradição o fato de um movimento ideológico, político e global em suas aspirações colocar-se em um só país.
Escorel, seguindo orientação semelhante observa que o totalitarismo impede o ser humano de realizar as suas potencialidades. Trata-se, pois, de um regime no qual um partido, uma pessoa, arroga para si todo o poder político-militarideológico, suprime a opinião pública, e institucionaliza uma única ideologia(BONAVIDES,2000) [6] . Outros fatores característicos do totalitarismo podem ser postos: cerceamento da liberdade individual, supressão da liberdade de imprensa, estruturas jurídicas extraordinárias, etc.
2. Democracia e Totalitarismo na Contemporaneidade
Como se pode observar, o século XX, foi por esses motivos bastante instrutivo. Viu renascer nesse cenário o interesse pela filosofia, pela religião e o relativismo cultural como ideologia prevalecente.
Com relação ao mundo dito pós-moderno, assim se refere Boaventura Sousa Santos:
"Vivemos num período avassalado pela questão da sua própria relatividade. O ritmo, a escala, a natureza e o alcance das transformações sociais são de tal ordem que os momentos de destruição e os momentos de criação se sucedem uns aos outros numa cadência frenética, sem deixar tempo nem espaço para momentos de estabilização e de consolidação. É precisamente por isso que caracterizo o período actual como sendo um período de transição". [7]
Por esse mesmo motivo, o período atual não é, segundo o referido autor, um tempo propício à autorreflexão. Apesar de tudo, nesse dinamismo que caracteriza nossa contemporaneidade, bem como na atualidade dos debates sobre os direitos humanos o tema da democracia assume um carater essencial e inafastável, principalmente depois que se vê proliferar por toda parte e com força aquilo que Arendt chama de “expressões totalitárias”.
O entendimento atual consiste em afirmar que o totalitarismo não se encontra apenas onde os totalitários se apoderam do poder, por assim dizer, mas sim que ele, enquanto ideologia, se acha mascarado até dentro dos redutos democráticos, assumindo formas perversas e inumanas. É com base em semelhante entendimento que Escorel, seguindo a esteira de Arendt, encontra dentro do Brasil estruturas de cunho totalitário. Ela entende que um apartheid social não consiste apenas na segregação físico-racial dos indivíduos em um dado território, mas principalmente na privação dos meios necessários ao exercício integral do homem na sociedade.
Nesse sentido pode-se afirmar que a democracia proposta pelo sistema tem cunho apenas formal; falta o conteúdo substancial que Arendt reclama. A democracia está grafada nas constituições mas não é efetivada na realidade. Aliás, na realidade exatamente o oposto pode está acontecendo…
Arendt entende os homens comos seres heterogêneos, diferentes entre si, a democracia definida por kelsen como o caminho da “progressão para a liberdade” seria precisamente isso: uma via que assegurasse aos homens a vivência total de suas singularidades. Para tanto Arendt divide as necessidades humanas em três níveis: o animal laborans, que realiza as atividades biológicas e de labuta; o homo faber, este é que interage com a natureza, transformando-a, ou seja, o homem que trabalha, e o último é o politikos, que é o que atua na “construção em comum do mundo comum”.
Nos dois primeiros níveis o homem se realiza apenas parcialmente, enquanto no terceiro ele conhece a plena realização. Daí surge a grave acusação contra o totalitarismo: um sistema que priva o homem de realizar-se nos três estágios; quando muito o indivíduo vive apenas no nível laborans, e às vezes nem da maneira digna, sobrevive, pode-se dizer.
Partindo desse ponto, pode-se passar a catalogar os fatos que obstaculizam o mundo a que a democracia busca. É consenso que o Estado age ideologicamente na manutenção do status quo, Boaventura fala em “concessões” que são negociadas friamente, ou seja, os benefícios não são logo dispensados aos necessitados. Eles são subordinados a um rigoroso processo de análise.
Por outro lado os interesses dominantes que dependem da subserviência dos trabalhadores são realocados estrategicamente. Sem falar nos grupos radicais que querem extirpar o mundo ocidental com seus valores, e juntamente com ele os ideais democráticos. Essas formas de governo de cunho fortemente totalitário, como os regimes teocráticos do oriente médio, consolidaram-se paralelamente aos processos de democratização que marcaram o mundo do século passado. Convivendo ao lado das formas democráticas, serviram para fazer afirmar os postulados relativistas, ao mesmo tempo em que deram a dimensão do desafio que é desarraigar o espírito totalitário.
No outro extremo da discussão estão os direitos humanos, corolários das conquistas democráticas, estão intimamente relacionados ao conceito de cidadania─ caro aos constituintes de 1988 no Brasil.
Assis e Kumpel [8] assim expressam a questão dos direitos humanos:
“Se os homens não fossem iguais, não poderiam entender-se. Por outro lado, se não fossem diferentes não precisariam de palavras, nem de ação para se fazerem entender.”
Pelo exposto infere-se que os conceitos centrais da problemática são o de igualdade, que Arendt situa na esfera pública, e o da diferença, que ela situa no âmbito privado, motivo pelo qual os direitos humanos reclamam o acesso ao espaço público e concomitantemente a realização plena das diferenças particulares.
Mas que isso, o Estado laico estabelecido, têm a obrigação de intervir e promover a igualdade substancial de todos os indivíduos─ a democratização do espaço público, e a possibilidade da diferenciação na esfera privada. Não obstante, deve também o Estado estabelecer as medidas assecuratórias, que propiciem o respeito e a convivência.
3. Democracia e Totalitarismo no Brasil
No Brasil o governo em que a forma totalitária expressou forma mais próxima ao tipo puro, foi o instaurado pelo golpe militar de 1964. O que não significa que antes expressões de totalitarismos não tenham tido vez no Brasil, um exemplo é a ditadura de Vargas. Mas o caso de 1964 chama atenção por representar um retrocesso em relação a democracia que estava afigurando-se anteriormente ao golpe.
Fato tão importante na história recente brasileira, que hoje vemos nossos representantes no governo revolverem os escombros históricos a cata dos fatos ocorridos sob o manto da ditadura militar, e no dizer de Ferro [9] , “perante o tribunal da história são julgados, um por um, os terríveis crimes…” acontecidos no chocante episódio. Mas não é apenas isso, a nossa redemocratização, tão festejada, é vista com certa desconfiança pelos nossos mais brilhantes intelectuais. Segundo Escorel, o marxismo tradicional recém-chegado ao Brasil não via com bons olhos nem uma coisa nem outra, a democracia para eles era de fachada e, conquanto o capitalismo não fosse superado, democracia seria apenas isso e nada mais.
Uma abertura posterior nessa concepção foi observada, visto que agora não se trata mais de se aplicar um golpe para construir um Estado Democrático, mais sim de efetivar o espaço que já está pressuposto no ordenamento jurídicoestatal, e a partir dele travar os debates para semelhante projeto.
Portanto, no Brasil atual, a democracia já está consolidada nas leis, porém um conteúdo substancial falta, conforme denuncia a referida autora; e no caso brasileiro: “um processo com regras democráticas convive com um conteúdo substantivo totalitário, o extermínio de parcelas da população.”
Ela prossegue:
"...essas expressões não são fatos isolados; integram um processo social, crônico, surdo, cotidiano de exclusão social com violência de parcelas da população. Essas características totalitárias integram um padrão brasileiro de sociabilidade e de solidariedade social.”
Em última análise o fato posto resvala na crucial questão da desigualdade econômica e social que como uma gangrena corrói o corpo social do Brasil. Trata-se de dar um novo direcionamento às políticas públicas e sociais em “direção aos não-cidadãos, aos nãointegrados, aos excluídos.”, asseveraEscorel.
Boaventura parece apontar, entretanto, uma outra questão, a de que existem os que não se consideram signatários desse “contrato social”, ou seja, eles não são “não-integrados” pois pertencem a outros sistemas─ estão integrados nestes. Nesse sentido, pode-se afirmar que se ser cidadão é ter o direito de ter direitos, conforme expressão corrente, então a tais pessoas deve ser assegurado as condições de participarem e conservarem os seus respectivos grupos e sistemas.
CONCLUSÃO
Democracia e Totalitarismo são contrários. É inviável que um se pratique invocando os elementos do outro. Se a Democracia que se pretende plena,contiver traços de totalitarismo entra em contradição consigo mesma, e deve seguramente enfrentar as tensões daí decorrentes. Por outro lado, já Rousseau afirmava que nunca houve um único caso de democracia plena. Instrutivo, visto que nos assegura que sempre há o que melhorar.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Ferro, Marc.1924. História das Colonizações: das conquistas às independências, séculos XIII a XX/ Marc Ferro; tradução Rosa Freire d’Aguiar.─ São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Gusmão, Paulo Dourado de. Filosofia do direito/ Paulo Dourado de Gusmão.─ Rio de Janeiro: Ed. Forense. 1996.
Brasil. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil; Texto Constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais 1/92 a 52/2006 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão 1 a 6/94.— Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2006.
Rocha, Gilvan. Democracia e Totalitarismo. Disponível em: Escorel, Sarah. Exclusão Social: Fenômeno Totalitário na Democracia Brasileira. Saúde soc. São Paulo, 1993. Disponível em:
Notas:
1 A constituição adota princípio semelhante no parágrafo único do artigo primeiro, verbis: “Todo poder emana do povo, que o exerçe por meio de prepresentantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição”. O autor citado é André Luis Lopes. Teoria do Estado,pag.27.
2 Bobbio, Norberto,Teoria das formas de governo,pag.42.
3 ROCHA,Gilvan. Democracia e Totalitarismo.
4 Gusmão, Paulo Dourado de.Filosofia do direito, pag.19.
5 Escorel,Sarah.Exclusão social: fenômeno totalitário na democracia brasileira.pag.2.
6 Paulo Bonavides.Ciência Política.pag.590
7 Boaventura Sousa Santos.Poderá o direito ser emancipatório?.pag.1
8 Olney Queiroz Assis e Vitor Frederico Kumpel. Manual de Antropologia Jurídica. Pag.246
9 Marc Ferro.História das Colonizações.pag 11 (s.d.).