Hermenêutica Jurídica: Primeiras impressões

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07/06/2020 às 20:35
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O artigo abordas as linhas preliminares da hermenêutica jurídica do direito brasileiro, principalmente influenciada pela Constituiçao Federal brasileira de 1988,

 

 

Quando analisamos a Constituição de um Estado não se pode restringir a uma única e exclusiva concepção, e sim, pela junção de cada um dos sentidos apresentados a seguir como o sentido político de Constituição de Carl Schmitt[1] distinguindo Constituição de leis constitucionais, temos Hans Kelsen com o sentido jurídico de Constituição tratando sobre a Teoria Pura do direito e, a partir desse ponto de partida devemos refletir sobre a melhor concepção que compreende o conceito de Constituição.

 

Assim, o sentido sociológico de Constituição trazido pelo filósofo Ferdinand Lasalle[2] na sua obra  intitulada "A essência da Constituição" e veio apresentar de forma simples em uma conferência em Berlim em 1862, o verdadeiro sentido da Constituição buscando abordar aspectos não formais da Constituição e, sim, mostrar aspectos sociais que realmente traduzem o sentido sociólogo de Constituição, mostrando assim a sua verdadeira essência onde uma Constituição traduz a história e as peculiaridades de cada povo, sendo a sua autêntica identidade apenas transcritas em uma folha de papel.

 

Há ideias conflitantes com a de Lasalle, como sendo a força normativa da Constituição abordada por Konrad Hesse, indo de encontro com o seu pensamento de que a Constituição nada mais é do que a soma dos fatores reais de poder, ou seja, anseios de diversas classes da sociedade trazida para o texto constitucional, trazendo assim distinção entre constituição real e a constituição escrita.

 

E, por fim, conclui-se que Ferdinand Lassale[3] é o maior responsável pela Constituição no seu sociológico. Lassale nasceu em 1825, foi advogado e político socialista alemão, sendo renomado quando tratou da social democracia alemã.

 

Que era um movimento operário baseado nas ideias de Karl Marx, com quem esteve junto em diversos momentos históricos, particularmente durante a Revolução Prussiana em 1848 onde se buscava a independência da classe trabalhadora das demais classes sociais.

 

Apesar de Lasalle ter sido condenado, foi Marx que promoveu continuidade e aprofundou os estudos sobre o capitalismo e seus efeitos sobre a classe operária.

 

No sentido sociológico a Constituição deve ser compreendida como um fato social e não simplesmente como uma norma. O presente texto na Constituição seria o reflexo da realidade social daquele país, como Lasalle abordou em sua obra, é a junção das forças sociais do país, cabendo a Constituição apenas reunir e sistematizar esses valores em um documento formal, passando assim, a deixar de serem apenas fatores reais de poder e se tornando um verdadeiro direito, ou seja, passam a serem instituições ou fatores jurídicos.

 

Documento esse que só se tornaria eficaz se correspondesse de fato aos valores daquela determinada sociedade.  Para entender a visão sociológica de Lassale convém destacar a seguinte passagem, in litteris:

 

    "Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma macieira e segurar seu tronco um papel que diga: ‘Esta árvore é uma figueira’ Bastará esse papel para transformar em figueira o que é macieira? Não, naturalmente. E embora conseguissem seus criados, vizinhos e conhecidos, por uma razão de solidariedade, confirmassem a inscrição existente na árvore, a planta continuaria sendo o que realmente é. O mesmo ocorre com a Constituição. De nada servirá o que se escrever numa folha de papel, se não se justificar pelos fatores reais e efetivos de poder".

 

Para Lassalle convive em um país duas Constituições, uma chamada de Constituição real ou efetiva que corresponde à soma dos fatores reais de poder que representam aquela sociedade e, uma Constituição escrita, que apenas formaliza unindo esses fatores reais de poder em um único documento.

 

Destaque-se que a concepção sociológica de Marx[4] que se aproxima com o pensamento sociológico de Lassale, que no qual a Constituição não passaria de um produto das relações de produção e que tem o intuito os interesses da classe dominante.

 

Já Konrad Hesse trouxe em sua obra uma nova problemática sobre a teoria adotada por Lassalle, indicando o efeito determinante da Constituição real, que não significa outra coisa, se não a própria negação jurídica.

 

Assim, para Hesse as constituições reais que apresentam os valores da sociedade e a constituição jurídica caminham de forma paralela e independente, não sofrendo qualquer interferência uma da outra.

 

A Constituição adquire, portanto, a força normativa a partir do momento em que realiza uma pretensão de eficácia, procurando finalmente impor ordem de acordo com a realidade política e social, mas também é determinante em relação a esta.

 

Desse modo, a força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem até mesmo ser diferenciadas, porém, não definitivamente divorciadas ou confundidas.

 

A verdadeira força vital e a eficácia da Constituição estão ligadas à sua força espontânea e as tendências dominantes do seu tempo, o que possibilita o seu desenvolvimento e a sua ordenação objetiva.

 

Cumpre ressaltar que a Constituição jurídica consegue converter-se ela mesma em força ativa se fizerem presentes não só a vontade do poder, mas sim, a vontade da Constituição, mesmo de forma limitada à Constituição contém uma força normativa típica e capaz de ordenar e motivar a estrutura do Estado e da própria sociedade porque por si só reproduz os interesses políticos, econômicos e culturais de certa sociedade mostrando a verdadeira forma de ser do Estado durante a sua época.

 

Tal supremacia constitucional confere particular força própria que interfere na vida de ada indivíduo, possuindo aspectos na concepção jurídica formal e material fazendo a manutenção do Estado e da ordem pública interna.

 

A Constituição é o corpo de normas de um Estado, indicando seus valores, reunindo os elementos essenciais estabelecendo a verdadeira estrutura do Estado.

 

A supremacia normativa da Constituição[5], ao lado de outros elementos, confere-lhe força ativa para que sua função e tarefas próprias sejam realizadas na vida histórico-concreta do povo. Pressupõe aspectos da concepção jurídica da Constituição no sentido formal e material envolvendo a manutenção do Estado e da ordem jurídica interna.

 

Conforme o pensamento de Konrad Hesse[6], a constituição jurídica não pode ser limitada a um retrato social, deve antes de tudo obedecer e acompanhar a permanente evolução social, permanecendo sempre a maior justiça social.

 

Pensando sobre a necessidade da interpretação como meio de obter a justiça social, cabe citar a poesia Drummond, in litteris:

  

    “A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividia em metades diferente suma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia”. Carlos Drummond de Andrade

 

Hermenêutica

 

As origens do vocábulo "hermenêutica" residem no grego hermeneuein, usualmente traduzido por interpretar, bem como no substantivo hermeneia, a designar interpretação.

 

Uma maior investigação etimológica destas duas palavras e das orientações básicas que estas veiculavam no seu antigo uso esclarece consideravelmente sobre a natureza da interpretação seja em teologia, literatura e direito, servindo para o contemporâneo contexto da hermenêutica jurídica.

 

A palavra grega hermeios referia-se ao sacerdote do oráculo de Delfos, já o verbo hermeneuein e o substantivo hermeneia remetem à mitologia antiga, evidenciando os caracteres conferidos ao Deus-alado chamado Hermes.

 

Tal figura mítica, era, na acepção da Antiguidade Clássica, responsável pela mediação entre os Deuses e os homens. Hermes, a quem se atribui a descoberta da escrita, atuava como um mensageiro, unindo a esfera divino-transcendental e a civilização humana.

 

Hermes trazia a mensagem do destino. Hermeneuein é esse descobrir de qualquer coisa que traz a mensagem, na medida em que se mostra pode tornar-se mensagem. Desta forma, levada à sua raiz grega mais remota, a origem das atuais palavras, hermenêutica e hermenêutico, sugere o processo de tornar compreensíveis, especialmente enquanto tal processo envolve a linguagem.

 

A etimologia registra ainda que a palavra interpretação provém do latim interpretare (inter-penetrare), significando literalmente, penetrar mais para dentro. Isto se deve à palavra religiosa de feiticeiros e adivinhos, os quais introduziam suas mãos nas entranhas de animais mortos, a fim de melhor conhecer o destino das pessoas e obter as respostas para os problemas humanos.

 

Certamente, não há como negar a compatibilidade da referida metáfora de Hermes quando constatamos o objeto mesmo das especulações suscitadas pela hermenêutica: a interpretação.

 

É que o intérprete, nos variados planos da apreensão cognitiva, atua verdadeiramente como um intermediário ou meio na relação estabelecida entre o autor de uma obra e a comunidade humana.

 

A hermenêutica, atualmente, é tema essencial para o conhecimento. Tudo o que é apreendido e representado pelo sujeito cognoscente depende de práticas interpretativas. Como o mundo vem à consciência pela palavra e, a linguagem é já a primeira interpretação, a hermenêutica torna-se, portanto, inseparável da própria vida humana.

 

Em verdade, a hermenêutica penetrou gradativamente, no domínio das ciências humanas e da filosofia, adquirindo com a modernidade os mais diversos significados.

 

E, neste diapasão, Palmer assinala que o campo da hermenêutica tem sido interpretado numa ordem cronológica pouco rigorosa, como, a saber: a teoria da exegese bíblica; uma metodologia filológica geral; uma ciência de toda compreensão linguística; uma base metodológica da gesterwissenschaften; uma fenomenologia da existência e da compreensão existencial; sistemas de interpretação, simultaneamente recolectivos e iconoclásticos, utilizados pelo homem para alcançar o significado subjacente aos mitos e símbolos.

 

Enfim, cada definição representa basicamente um ponto de vista a partir do qual a hermenêutica é encarada, essencialmente quando esclarece aspectos diferentes, mas igualmente legítimos do ato de interpretar, especialmente a interpretação de textos e das lies.

 

Tende o conteúdo da hermenêutica ser remodelado conforme as mudanças de perspectiva.

 

Buscando uma síntese das definições já expostas, concluímos que o vocábulo "hermenêutica" é utilizado para designar um saber que procura problematizar os pressupostos, a natureza, a metodologia e, finalmente, o escopo da interpretação humana, nos planos artístico, literário e jurídico.

 

A prática interpretativa traduzirá uma espécie de compreensão de fenômenos culturais que se manifestam através da mediação comunicativa estabelecida entre uma dada obra e, como, por exemplo, o sistema jurídico e a comunidade humana convivem.

 

A investigação de fundamentos filosóficos da hermenêutica se justifica, especialmente no campo jurídico. Porque o horizonte tradicional da hermenêutica técnica se revela insuficiente para o desiderato da interpretação do Direito.

 

O saber hermenêutico é instrumental para a exegese de textos é reduzido, nesta perspectiva, é o decifrar do caleidoscópico intricado de ferramentas teóricas, tendo em vista a descoberta de uma verdade previamente existente.

 

Ao contrário, torna-se necessário um novo tratamento paradigmático, porque, mais amplo, capaz de radicar em novas bases a interpretação jurídica. Enfim, trata-se de hermenêutica filosófica, uma proposta de reunir os gerais problemas da compreensão no tratamento das práticas interpretativas do direito.

 

Muito oportuna é a lição de Arruda Júnior e Gonçalves, ao sustentar que, no ambiente jurídico, a hermenêutica técnica mais tem servido de abrigo metodológico para os que acreditam ser a interpretação uma atividade neutra e científica, na qual outros universos de sentido, como o dos valores, dos interesses e da subjetividade, não exercem ingerência alguma.

 

Ao discutir a hermenêutica filosófica, tida como novo paradigma cognitivo para saber e, a prática jurídica envolvem a reformulação preliminar daquele território metodológico, no qual são radicalmente delimitadas as possibilidades de percepção e funcionamento do Direito.

 

Enfim, a concepção hermenêutica sugere formas alternativas, menos cientificistas e, mais historicizadas, para as gerações vindouras apreenderem o Direito como um, entre os diversos outros componentes do fenômeno normativo-comportamental mais geral.

 

O horizonte hermenêutico é o da restituição de um texto, mais fundamentalmente de um sentido, considerado como perdido ou obscurecido. Numa tal perspectiva, o sentido é menos para construir do que para reencontrar, como uma verdade que o tempo teria encoberto.

 

Nos primórdios do século XX, firmou-se a hermenêutica radicada na existência. E, merece reverência a contribuição existencialista de Martin Heidegger[7]. O filósofo alemão operou duas rupturas em relação à concepção preconizada por Dilthey (foi alargar o horizonte da hermenêutica, colocando-o no contexto da interpretação dos estudos humanísticos, centrou a interpretação concentrada na expressão da experiência vivida).

 

Os objetivos básicos de Dilthey enfocou primeiramente o problema da interpretação num objeto tal como um estatuto fixo, duradouro e objetivo. E, o segundo, o objeto apelava claramente para modos históricos de compreensão, mais do que para os modos científicos, só podendo compreender-se por uma referência à própria vida, em toda a sua historicidade e temporalidade.

 

Afinal, não se trata, como em Dilthey, de opor o ato de compreensão, próprio das ciências humanas, ao caminho da explicação, via metodológica das ciências naturais. A compreensão passa a ser vista não como ato cognitivo de um sujeito dissociados do mundo, mas, como um prolongamento essencial da existência humana. Portanto, compreender é um modo de estar, antes de configurar-se como um método científico.

 

Por isso mesmo, o ser não somente pode ser definido, como também nunca se deixa determinar em seu sentido por outra coisa, nem como outra coisa. O ser é algo derradeiro que subsiste por seu sentido. Trata-se de ente autônomo e independente que se dá em seu sentido. O ser não se deixa apreender ou determinar nem por via direta e nem por desvios, nem por outra coisa, nem como outra coisa.

 

Ao contrário, exige e impõe que nos contentemos com o tempo de seu sentido e nos liames com todas as realizações a partir de seu anda, ou seja, a partir de seu retraimento e de sua ausência.

 

Pensar é o modo de ser do homem, no sentido da dinâmica de articulação de sua existência. Pensando, o homem é ele mesmo, sendo outro. Enfim, é escutar as realizações, deixando-se dizer para si mesmo, o que é digno de ser pensado como o outro.

 

O horizonte da compreensão é a apreensão e o esclarecimento da dimensão primordial que precede a distinção existente entre sujeito e objeto, a do ser-no-mundo. O homem só se realiza imerso numa realidade que o envolve e da qual ele faz parte.

 

Foram as guerras humanas a maior responsável pelos homens e mulheres portadoras de deficiência. No fundo, o ser-no-mundo não é nem um fato, nem tampouco uma necessidade no nível concreto do mundo real. É uma estrutura de realização e, por sua dinâmica, o homem está sempre superando os limites entre o interior de sua subjetividade e o mundo exterior.

 

Em Heidegger, a pedra angular de seu monumento teórico é o conceito de Dasein[8], isto é, a realidade que tem a ver com a natureza do próprio ser.

 

O filósofo alemão rompeu o dualismo sujeito-objeto em favor de um fenômeno unitário capaz de contemplar o eu e o mundo, conciliando as diversas dimensões da temporalidade humana, passado, presente e futuro, entendidos como momentos que integram a própria experiência hermenêutica.

 

Mais tarde, emergiu novo paradigma hermenêutico, que se define como atividade interpretativa como situação humana. Foi a obra de Hans Georg Gadamer[9], para quem a interpretação, antes de ser um método, é mesmo a expressão de uma situação do homem.

 

O hermeneuta ao interpretar o objeto, já está situado no horizonte aberto pela obra, o que ele denominou de círculo hermenêutico.  Assim, a interpretação é, sobretudo, a elucidação da relação que o intérprete estabelece com a tradição de que provém, pois, na exegese de textos literários, o significado não aguarda ser desvendado pelo intérprete, mas é produzido no diálogo estabelecido entre o hermeneuta e a obra.

 

A compreensão encerra sempre um momento de aplicação e, todo esse processo é um procedimento linguístico. A verdadeira problemática da compreensão pertence tradicionalmente ao âmbito da gramática e da retórica.

 

A linguagem revela-se como meio em que se realiza o acordo dos interlocutores e o consequente entendimento sobre a coisa, sendo a conversação hermenêutica um processo pelo qual se procura chegar a um acordo.

 

Cogita-se numa conversação hermenêutica, pois o texto traz um tema à fala, mas quem o consegue é, em derradeira análise, o desempenho do intérprete. O horizonte do intérprete é determinante para a compreensão do texto. A fusão de horizontes pode ser entendida como a forma de realização da conversação.

 

É a natureza dialógica da compreensão possibilita a realização da consciência histórica.

 

E, no caso da hermenêutica jurídica vem o diálogo das fontes trazer uma ampla compreensão que possibilita a realização da justiça e do processo justo. Permitindo tanto o respeito às garantias constitucionais devotadas ao processo, como também o respeito à sociedade e ao Estado Democrático de Direito.

 

Concluímos, dessa forma, que o significado emerge a medida em que o texto e o intérprete envolvem-se na dialética de um permanente diálogo, guiado pela compreensão prévia que o sujeito cognoscente já possui do objeto, é a chamada pré-compreensão.

 

A partir desta interação hermenêutica que permite ao intérprete o mergulho no oceano linguístico do objeto hermenêutico, aproveitando-se da abertura interpretativa de uma certa obra.

 

Assim, ao ler as normas constitucionais de garantia do acesso à justiça, e ao preceito da dignidade da pessoa humana que se justifica plenamente a existência da tutela das pessoas portadoras de necessidades especiais, que possuem igual capacidade em sua cidadania, soberania, ao trabalho, a educação e cultura e ao reconhecimento de direitos sociais e de oportunidades de integração e aperfeiçoamento civilizatório.

 

Seguindo a evolução da hermenêutica, desenvolveu-se a fundamentação trazida por Paul Ricoeur[10] , que trouxe a posição conciliatória em razão da dicotomia de Dilthey estabelecida entre a compreensão e a explicação.

 

Ricoeur tornou a referida dicotomia complementar através do fenômeno humano como intermédio simultâneo e estruturante (o intencional e o possível), o estruturado (o involuntário e o explicável), articulando a pertença ontológica e a devida distanciação metodológica.

 

Abandonou o primado da subjetividade e do idealismo de Husserl, e assumiu a pertença participativa como pré-condição de todo esforço interpretativo (Heidegger e Gadamer), Ricoeur desenvolveu suas concepções teóricas, sem olvidar os precursores da teoria geral da interpretação (Schleiermacher e Dilthey).

 

Assim, ao combater a discriminação às pessoas portadoras de deficiência, igualmente, se combatem as discriminações por outros critérios tais como etnia, cor da pele, origem social, religiosa e, até mesmo, gênero ou sexualidade. 

 

Ao defendermos a dignidade humana[11] do portador de deficiência, estamos ainda, que indiretamente reafirmando que essa mesma dignidade humana se estende a todos, de forma isonômica e, principalmente, no sentido de fortalecer a cidadania e o respeito ao Estado democrático de Direito.

 

Afinal, com a interpretação, segundo Ricoeur, abre-se um mundo, ou melhor, novas dimensões do nosso ser-no-mundo, porquanto a linguagem faz mais do que apenas descrever a realidade, revela um novo horizonte para experiência humana.

 

Assim, a lei faz mais que regulamentar determinada situação jurídica ou tutelar certo sujeito de direito, resgata-se seu valor e importância na sociedade, trazendo a noção indispensável de integração social e, principalmente, o respeito a pluralidade e a diversidade.

 

Com a hermenêutica crítica de Habermas[12], a desconfiança veio pesar sobre as reivindicações de verdade contidas na obra do filósofo alemão, ou na tradição adotada por certa pessoa. Ao trazer a hermenêutica crítica procurou as causas de compreensão e da comunicação tão distorcidas que atuam a coberto de interação aparentemente normal.

 

O compromisso prático tido como verdade histórica e com um futuro melhor, coloca a hermenêutica crítica em contato com a filosofia hermenêutica.

 

Assim, bem mais que a previsão constitucional, e do Estatuto da Pessoa com Deficiência[13], se estrutura adequadamente a tutela das pessoas com deficiência. É preciso haver um compromisso prático selado com a verdade histórica e com um futuro melhor principalmente pelo reconhecimento dos agentes sociais políticos.

 

Enfim, os processos explicativos interpretativos, serve para demonstrar aos agentes sociais a razão de pensarem o que pensam, de poderem estar errados e de confundirem, e ainda, aponta o que pode ser corrigido.

 

Para hercúlea tarefa, Habermas valeu-se da psicanálise, já que é aqui que a distorção do sentido é interpretada em face de toda a história da vida de um paciente e, em referência a um sistema teórico que pode servir para explicar o aparecimento de certas doenças e deficiências específicas.

 

Conclui-se que a hermenêutica reveste a forma de uma explicação da gênese e validade dos artefatos humanos.

 

Em Habermas, a expressão hermenêutica fusão de horizontes serve, simultaneamente, para legitimar um componente crítico na compreensão do sentido subjetivamente visado, em virtude da necessidade de rever constantemente os preceitos iniciais, ligados a um certo assunto que se caracteriza pela sua capacidade de oferecer diferentes definições e aceitar ou rejeitar a nossa interpretação.  A crítica atua sob forma de correção, constitui um elemento integral no processo de compreensão dialética.

 

Concluiu Habermas[14] que a verdade é galgada consensualmente através de uma dialética discursiva em que os sujeitos estejam submetidos a algumas regras que garantam certa isonomia, sem pressões alheias, nua atmosfera entendida como situação de discurso ideal.

 

A verdade não se estabelece ontologicamente, mas, sim, consensualmente dentro das regras discursivas para que se atinja um critério válido de correção e aperfeiçoamento constante das regras, princípios e práticas humanas.

 

A área da hermenêutica jurídica, há uma das tarefas mais importantes a ser desenvolvida consiste na delimitação de caracteres da interpretação do direito, de modo a apurar seus aspectos singulares.

 

Sendo ilustrativa a contribuição de Emilio Betti[15], para quem o processo interpretativo é uma tríade: o espírito vivente e pensante do intérprete, uma espiritualidade que se encontra objetivada em uma forma representativa e a própria forma representativa.

 

A interpretação é um reconstruir um espírito que, através da forma de representação, fala ao espírito do intérprete, como fenômeno inverso do processo criativo. A hermenêutica vem a constituir uma teoria geral das ciências do espírito, que corresponde com aquela outra teoria da ciência de uma consciente reflexão gnosiológica. Formando uma espécie de superciência da interpretação.

 

Betti trouxe relevante distinção entre dois tipos de interpretação: a histórica e a jurídica. Para o filósofo, a primeira trata de integrar coerentemente a forma representativa com o pensamento que expressa. Já na interpretação jurídica, dá-se um passo adiante, pois a norma não se esgota em sua primeira formulação, tem vigor atual em relação com o ordenamento de qual faz parte integrante e, está destinada a permanecer e a transformar a vida social.

 

Recomendou Betti que o jurista deva considerar o ordenamento jurídico dinamicamente, como uma viva e operante concatenação produtivo, tal como um organismo em perene movimento que, imerso no mundo atual, é capaz de autointegrar-se segundo um desenho atual de coerência, de acordo com as mutáveis circunstâncias da sociedade.

 

A interpretação não deve limitar-se em um reconhecimento meramente contemplativo do significado próprio da norma considerada em sua abstração e generalidade.

 

A tarefa de interpretar que afeta ao jurista não se esgota com o voltar a conhecer uma manifestação do pensamento, mas busca também integrar a realidade social em relação com a ordem e a composição preventiva dos conflitos de interesses previsíveis.

 

Sendo assim, a interpretação jurídica, como toda interpretação, contém um momento cognoscitivo e uma função normativa, consistente em obter máximas de decisão e ação prática, visto que a interpretação mantém a via da lei e das outras fontes do direito.

 

Segundo Betti existiriam três funções no processo interpretativo. Uma primeira, a qual denominou histórica, com função meramente cognoscitiva, já que apenas supervisiona o pensamento pertencente ao passo (interpretação filológica e histórica); uma segunda, a normativa que visa extrair máximas orientadoras para uma decisão (jurídica, teológica e psicotípica) e a reprodutiva ou representativa, que procura substituir uma forma representativa equivalente, conforme ocorre na tradução ou dicção de outra língua (interpretação dramática e musical).

 

A interpretação jurídica se põe em relação, de um lado, com a interpretação do jurista com finalidade teórica, histórica ou comparativa pela qual entra em uma das figuras de interpretação meramente recognoscitiva, e de outro lado, a interpretação com finalidade prática em função normativa da conduta que se espera frente a um direito em vigor, em vista a sua aplicação.

 

Certamente é uma ilusão pueril acreditar que a disciplina codificada não apresenta lacunas e, que seja direito vivo e vigente, tudo o que está escrito no Código, sendo também um crasso erro crer ser possível imobilizar o direito e paralisar seu dinamismo com o formalismo na aplicação abstrata da lei.

 

A interpretação que interessa ao Direito é atividade dirigida a reconhecer e a reconstruir o significado que há atribuir a forma representativa do jurídico, com base numa estrutura de valorações.

 

Os significados do ordenamento jurídico, assim como o de todo objeto cultural, revelam-se em processo dialético entre o seu substrato e a sua vivência espiritual. E tal ir e vir dialético se manifesta através do confronto entre o texto normativo e a realidade normada mediante processo aberto a novos significados.

 

Igualmente assim se processa a hermenêutica jurídica. Ao interpretar um comportamento, no plano da intersubjetividade humana, o hermeneuta irá referi-lo à norma, o comportamento figurando como substrato e a norma como o sentido jurídico de faculdade, prestação, ilícito ou sanção. 

 

E, como este significado jurídico coparticipado pelos atores sociais, o intérprete do Direito atua como autêntico porta-voz do entendimento da sociedade humana, à proporção que exterioriza os valores fundantes de uma comunidade jurídica.

 

Na redação do texto científico-jurídico, o jurista expõe suas conclusões numa sequência de proposições descritivas, com o objetivo de obter o convencimento. O leitor do texto, concentrando-se na sistematicidade textual, procurará apreendê-lo para enveredar no campo da ciência jurídica, atendo-se à verdade sobre o objeto em questão.

 

Isto porque, o próprio conhecimento jurídico se estrutura através de uma linguagem (metalinguagem) ao buscar a sistematização a interpretação de fontes do direito, as quais são também exteriorizadas em fórmulas linguísticas (linguagem-objeto).

 

A prática interpretativa desemboca na concretização de enunciados linguísticos inscritos no sistema jurídico, com o que o hermeneuta opera a mediação entre o direito positivo e a realidade circundante, manifestando-se o significado da norma jurídica.

 

Todo modelo normativo comporta sentidos, mas o significado não constitui um dado prévio, é o próprio resultado da tarefa interpretativa. O significado da norma é produzido pelo intérprete, E, as normas jurídicas nada dizem, somente passando a dizer algo quando são exprimidas pelo hermeneuta.

 

Sendo assim, as normas jurídicas veiculam mensagens, notadamente polissêmicas, visto que comportam diversos significados. Esta polissemia das fontes do direito deve ser resolvida, mediante o reconhecimento das diferenças entre linguagem comum e linguagem técnico-científica e o emprego das análises sintática, semântica e pragmática sobre o discurso do ordenamento jurídico.

 

Todo transcurso histórico da hermenêutica jurídica vem sendo marcado pela polarização entre o subjetivismo e o objetivismo. E, se refere a grande polêmica relativa ao referencial que o intérprete do direito deve seguir para desvendar o sentido e o alcance dos modelos normativos, especialmente das normas legais; a vontade do legislador (voluntas legislatoris) ou a vontade da lei (voluntas legis).

 

O conteúdo objetivo da lei e, consequentemente, o último objetivo da interpretação, são determinados e fixados através da vontade do legislador histórico, manifestada então e uma vez por todas, de modo que a dogmática jurídica deve seguir as pegadas do historiador, ou não será, pelo contrário, que o conteúdo objetivo da lei em autonomia em si mesmo e, nas suas palavras, enquanto vontade da lei, enquanto que o sentido objetivo que é independente do pensar e do querer subjetivos do legislador histórico e, que, por isso, em caso de necessidade, é capaz de movimento autônomo, é suscetível de evolução como tudo aquilo que participa do espírito objetivo?

 

Registre-se que a corrente subjetivista pondera que o objetivo da interpretação é estudar a vontade histórico-psicológica do legislador expressa na norma jurídica. A interpretação deve verificar, de modo retrospectivo, o pensamento do legislador impresso no modelo normativo.

 

De outro viés, a vertente objetivista preconiza que, na interpretação do Direito, deve ser vislumbrada a vontade da lei, que, enquanto sentido objetivo, independe do querer subjetivo do legislador. A norma jurídica seria a vontade transformada em comandos, dotado de força objetivada independente do seu autor.

 

O sentido incorporado no modelo normativo se apresentaria mais rico do que tudo o que seu criador concebeu, porque suscetível de adaptação aos fatos e valores sociais.

 

E, neste sentido, a depender da referência hermenêutica tomada, a interpretação do direito modulará a própria expressão do discurso jurídico, valorizando a ordem, com a adoção do subjetivismo, ou a mudança, quando iluminada pelo objetivismo.

 

Uma operação de esclarecimento do texto normativo, a interpretação aumenta a eficácia retórica ou comunicativa do direito, que é uma linguagem do poder e de controle social. E, dependendo da técnica adotada, a interpretação pode exercer função estabilizadora ou renovadora e atualizadora da ordem jurídica, já que o direito pode ser visto como uma inteligente combinação de estabilidade e movimento, não recusando as mutações sociais.

 

Assim, o direito pretende ser simultaneamente estável e mutável. Porém, é necessário ressaltar que segurança perfeita significaria a absoluta imobilidade da vida social, enfim, a impossibilidade da vida humana.

 

A mutabilidade constante, sem um elemento permanente, tornaria impossível à vida social. Por essa razão, o direito deve assegurar dose razoável de ordem e organização social, de tal modo que essa ordem satisfaça o sentido de justiça e dos demais valores por esta implicados.

 

Combinando a exigência de segurança com o impulso incessante por transformação, a hermenêutica jurídica contemporânea se inclina, pois, para a superação do tradicional subjetivismo voluntas legislatoris, em favor de um novo entendimento do objetivismo (voluntas legis), realçando o papel do intérprete na exteriorização dos significados da ordem jurídica.

 

Fulcrado neste redimensionamento do modelo objetivista, pode-se mesmo afirmar que o significado jurídico não jaz à espera do intérprete, como se objeto estivesse desvinculado do sujeito cognoscente, o hermeneuta.

 

Posto que o conhecimento seja um fenômeno que consiste na apreensão d objeto pelo sujeito não do objeto, em si e por si, mas do objeto enquanto objeto do conhecimento.

 

Segundo Pasqualini, na acepção mais plena, o sentido não existe apenas do lado do texto, nem somente do lado do intérprete, mas como um evento que se dá em dupla trajetória: do texto (que se exterioriza e vem à frente) ao intérprete; e do intérprete (que mergulha na linguagem e a revela) o texto em anexo.

 

Nas sociedades primitivas, em algumas destas existentes até hoje, representadas por tribos espalhadas pelo mundo, constatam-se divergências quanto à atitude assumida em face de pessoa com deficiência, ora de inclusão e respeito, ora de rejeição e eliminação.

 

Um histórico registro de aceitação foi citado por Otto Marques da Silva[16] (2009) que mencionou como exemplo de atitude de abandono, a prática realizada pelos índios Chiricoa (habitantes de matas colombianas andinas) que abandonavam as pessoas muito idosas ou as incapacitadas por doenças, mutilações ou deficiências.

 

Tal prática se fazia necessária para a tribo, posto que, sob a luta pela sobrevivência viam-se obrigados a mudarem para outro local, abandonando nos antigos sítios de morada da tribo, as pessoas que não fossem plenamente capazes de se locomoverem.

 

Há registros datados de mais de cinco mil anos, que indicam que pessoas com nanismo ofereciam seus serviços aos altos funcionários, morando na residência desta e recebendo tratamento diferenciado, contando ainda, com funerais e tumbas em cemitérios reais perto das pirâmides, demonstrando a sua proximidade com a nobreza egípcia.

 

Não apenas os anões, mas igualmente pessoas com outras deficiências eram aceitas de bom grado na sociedade egípcia, afinal, o respeito à essas pessoas, aos doentes e aos idosos era considerado um dever moral entre os egípcios e reiterado muitas vezes pela literatura egípcia.

 

Na mitologia grega, algumas deidades eram representadas como portadoras de algumas deficiências, e eram muitas vezes a sua principal característica como é o caso, por exemplo, dos deuses do Amor e da Fortuna que, segundo os estudiosos em mitologia grega eram eventualmente apresentados como pessoas cegas.

 

O famoso Homero autor de Ilíada e Odisseia, segundo os relatos, era cego. E, sua obra, consagrou o personagem Hefesto, o Ferreiro Divino, descrito pelo poeta e representado em gravuras como o "portador de deficiência" em uma das pernas, mas que compensou tal restrição, tornando-se mestre em metalurgia e das artes manuais.

 

Porém, segundo Otto Marques da Silva, o tratamento dispensado as pessoas com deficiência dentro da cultura grega era mesmo de abandono ou de sacrifício. Em Esparta, por exemplo, pelas leis gregas vigentes, os pais de qualquer recém-nascido, eram obrigados a levar o bebê, ainda bem novo, a uma espécie de comissão oficial formada por anciãos de reconhecida autoridade, que se reunia para então examinar e tomar conhecimento oficial do novo cidadão.

 

E, após tal exame feito, era determinado seu destino. Se fosse considerado o bebê normal, forte e belo, cumpria à família cria-lo até os sete anos de idade, aproximadamente, para depois ser entregue aos cuidados do Estado para enfim prepará-lo na arte de guerrear.

 

No entanto, se bebê fosse considerado feio, disforme e franzino, os próprios anciãos se encarregavam de sacrificá-lo. As crianças defeituosas ou anormais eram atiradas num abismo de mais de dois mil e quatrocentos metros de altura, num local chamado Apothetai, que significava depósitos, situados na cadeia de montanhas chamada Taygetos, próximo a Esparta.

 

Nas demais cidades gregas, os nascituros malformados ou deficientes eram abandonados em locais considerados sagrados. E, pela prática da exposição, tais crianças poderiam ou não sobreviver, uma vez que eram deixados à própria sorte ou ao desejo dos deuses, conforme consagrava a antiga crença da sociedade grega.

 

Otto Marques da Silva relata que em Atenas:

     [...] quando nascia uma criança, o pai realizava uma festa conhecida como ‘amphidromia’ [...]. Os costumes exigiam que ele tomasse a criança em seus braços, dias após o nascimento, e a levasse solenemente à sala para mostrá-la aos parentes e amigos e para iniciá-la no culto dos deuses. A festa terminava com banquete familiar. Caso não fosse realizada a festa, era sinal de que a criança não sobreviveria. Cabia, então, ao pai o extermínio do próprio filho (SILVA, 2009).

 

A prática de extermínio das crianças deficientes, também fora defendida por alguns dos filósofos gregos. As medidas eugênicas eram tomadas com o fito de fortalecer o Estado, conforme defendia Platão, na obra A República.

 

Também Aristóteles comungou do pensamento de Platão, prescrevendo na sua obra Política: "Com respeito a conhecer quais os filhos que devem ser abandonados ou educados, precisam existir uma lei que proíba nutrir toda criança disforme".

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Sobre o tema, entre os romanos, José Carlos Moreira Alves ressaltou que, inobstante a alusão em textos jurídicos à chamada "forma humana"", nenhum texto jurídico apresentou definição ao termo, mas que " aquele que não a possuísse era considerado “monstrum, prodigium ou portentum"(palavras usadas em geral como sinônimas).

 

As hipóteses de ter nascido monstros, seres nascidos de mulher, Moreira Alves apontou duas, a saber: a primeira, quando tivesse , no todo ou em parte, configuração animal (os romanos acreditavam na possibilidade de nascerem seres híbridos ou inumanos da cópula entre animal e mulher; e a segunda hipótese, era quem apresentasse deformidades externas excepcionais, como, por exemplo, o caso de acefalia (ausência aparente de cabeça em criança, que, apesar disso, muitas vezes vive por algum tempo.

 

Assim, diante do recém-nascido com essa característica entendiam os romanos que não tinha o direito à vida, sendo que o poder paterno ou patria potestas outorgado ao genitor, dava-lhe pleno direito de exterminar o próprio filho, caso este viesse a nascer disforme ou de aparência monstruosa.

 

Tal direito era previsto na Lei das Doze Tábuas (450-499 a.C.) ao tratar sobre o pátrio poder e do casamento na Tábua Quarta: “É permitido ao pai matar o filho que nasceu disforme, mediante o julgamento de cinco vizinhos”.

 

Apesar dessa previsão, a prática do infanticídio legal não era regular. Os pais, abrindo mão desse direito de extermínio, poderiam deixar tais crianças em cestos colocados às margens do Rio Tibre, ou em outros locais considerados sagrados pelos romanos. E, por vezes, tais bebês eram recolhidos por exploradores que, mais tarde, os usavam como esmoleiros.

 

Ressalte-se que também havia a utilização de meninas e moças cegas como prostitutas, além de rapazes cegos como remadores, quando não eram usados simplesmente para esmolar.

 

No período republicano, redige-se a Lei das XII Tábuas, por volta de 450 a.C. Fruto de lutas políticas internas, resulta de uma conquista dos plebeus: a lei pretende reduzir a escrito (lex) as disposições e mandamentos que antes eram guardados pelos patrícios e pontífices.

 

Certo é que a lei propriamente foi perdida provavelmente no incêndio durante a invasão gaulesa de 390 a.C. Dela resultaram apenas as menções que os juristas fizeram e daí o esforço dos eruditos, a partir destas notícias fragmentárias, de tentar reconstruí-la.

 

Pode-se dizer que foi uma coletânea, não um código: isto é, colocou por escrito várias disposições sem a ideia moderna de sintetizar por princípios a matéria tratada.

 

Com o advento do cristianismo, nova visão paira sobre as pessoas com deficiência. E, se operou devido ao conteúdo humanista da doutrina cristã, pois baseava-se na caridade, uma virtude que tinha como base o sentimento de amor ao próximo, o perdão, a humildade e a benevolência, conteúdo este pregado por Jesus Cristo e que cada vez mais conquistava sobremaneira os desfavorecidos. Entre estes, estavam aqueles que eram vítimas de doenças crônicas, defeitos físicos e mentais.

 

O cristianismo condenava veementemente a prática de morte de crianças não desejadas pelos pais devido a deformações. Afinal, a igreja cristã pregava e ainda prega a prioridade de atos assistenciais às pessoas pobres e enfermas, o que influenciou diretamente as concepções romanas, culminando na lei editada pelo Imperador Constantino, em 315 depois de Cristo, demonstrando o impacto dos princípios cristãos na defesa do respeito irrestrito à vida.

 

Esclareceu Otto Marques da Silva, in litteris:

    “Essa lei considerava os costumes arraigados – embora não generalizados – de mais de cinco séculos, prevalecentes em Roma desde a Lei das Doze Tábuas, e em Esparta principalmente, que não só permitiam como também exigiam que o pai de família, senhor absoluto de tudo e de todos no lar, fizesse morrer o recém-nascido que ele não queria que sobrevivesse, devido a defeitos ou a malformações congênitas”.

 

Constantino taxou esses costumes de “parricídio” e tomou providências para que o Estado colaborasse para a alimentação e vestuário dos filhos recém-nascidos de casais mais pobres.

 

Exigiu que essa nova lei fosse publicada em todas as cidades da Itália e da Grécia, e que fosse em todas as partes gravada em bronze para, dessa forma, tornar-se eterna.

 

Em face da influência da Igreja Católica, nesse período também começaram a surgir os primeiros hospitais e organizações de caridade ou de assistência, destinados ao atendimento de pobres, deficientes abandonados e doentes graves ou crônicos.

 

Com o término do Império Romano, ocorrido aproximadamente no século V, ano 476, deu-se o início ao período histórico chamado de Idade Média. E, durante os onze séculos que durou o Império Bizantino, as ideias que envolviam as pessoas com deficiências eram impregnadas por concepções místicas, mágicas e misteriosas de baixo padrão.

 

A população medieval sofria constantemente das precárias condições de vida e de saúde. E, de modo em geral, supunha que a deficiência fosse um castigo de Deus, e o nascimento de uma criança com deficiência, acreditando, também, que um corpo malformado era a morada de uma mente igualmente malformada, supersticiosamente vista como feiticeiros ou bruxos.

 

Assim, aos indivíduos que apresentassem alguma deficiência somente restava o abandono, a discriminação e a manutenção de distância e, também, a prática de mendicância.

 

Registrou-se nesses casos, maior atenção quando ficou demonstrado a criação de hospitais e abrigos para doentes e pessoas portadoras de deficiências, por senhores feudais e por governantes com a ajuda da Igreja.

 

Dentre os hospitais daquela época destinados ao acolhimento de pessoas com deficiência, se destacou a fundação do primeiro hospital para cegos, criado por Luís IX (1214-1270) e foi chamado de Hospice des Quinze-Vingts[17] que oferecia moradia e alimentação à aproximadamente trezentos cegos.

 

A origem da expressão "quinze-vingts" deveu-se ao aprisionamento de Luís IX pelos sarracenos, quando trezentos de seus soldados tiveram seus olhos vazados pelos inimigos, por ordem dos sultões, à proporção de vinte soldados por dia, durante quinze dias, período que eram aguardado o desfecho das negociações para o pagamento do resgate exigido para a libertação do Rei da França.

 

Assim, Quinze-Vingts significa 15 vezes 20, cálculo que resulta nos trezentos cavaleiros que tiveram seus olhos vazados. Otto Marques da Silva alertou, entretanto, que essa justificativa não é corroborada por uma parte de historiadores e biógrafos[18].

 

Com o Renascimento que marcou indelevelmente a chamada Idade Moderna que compreendeu fatos históricos ocorridos como a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos em 1453 e a Revolução de 1789.

 

As grandes transformações ocorridas nas artes e, principalmente nas ciências, alteraram significativamente o tratamento dispensado às pessoas com deficiência. E, surgiram hospitais e abrigos destinados a atender aos enfermos e pobres. Os deficientes era aquele grupo especial que fazia parte dos marginalizados, e que começaram a receber atenção mais humanizada.

 

E, nisto resultou em relevantes descobertas para o tratamento de certas deficiências. Numa era em que a sociedade humana ainda pensava ser impossível se proceder à educação de pessoas com deficiência auditiva ou visual, o médico e matemático italiano Gerolamo Cardamo (1501-1576) inventou um código de sinais destinados a ensinar as pessoas surdas a ler e a escrever.

 

Influenciado por Cardamo, o monge beneditino Pedro Ponce de Leon (1520-1584) elaborou método de ensino para pessoas com deficiência auditiva, baseado no código de sinais.

 

E no que tange às doenças mentais, ganharam destaque os estudos feitos por Philippe Pinel[19] (1745-1826), o médico francês foi pioneiro a prover tratamento mais científico e menos supersticioso contra a loucura defendendo tratamentos mais humanos aos doentes mentais.

 

Para Pinel, a causa de tais enfermidades eram alterações patológicas no cérebro decorrentes de fatores hereditários, lesões fisiológicas ou excesso de pressões sociais e psicológicas.

 

E, nesse sentido, propugnou pela liberação de pacientes que, em muitos casos, estavam confinados e acorrentados há mais de vinte ou trina anos, procurou combater as crendices como a de que um louco estaria possuído por demônios, e, buscou explicações científicas para as doenças mentais, o médico concluiu que as pessoas com problemas mentais deviriam ser tratadas como doentes.

 

Diante dessa valorização do homem, um número expressivo de pessoas com deficiência era obrigado a viver de esmolas e da caridade pública, chegando mesmo até a prática de furto, como meios de sobrevivência.

 

Já no início do século XIX, embora ainda não se cogitasse em efetiva integração dos deficientes na sociedade, começou-se uma nova e boa fase para estes, pois começou a sociedade assumir sua responsabilidade quanto à essas pessoas.

 

Chegou-se à conclusão de que o tratamento dedicado aos deficientes até então, não solucionaria os problemas vivenciados por esses indivíduos, uma vez que não era apenas uma questão de abrigo, de simples atenção e tratamento. Ou de esmola ou de providências paliativas similares, conforme se sucedera até então.

 

Constatou-se a necessidade de prover atenção especializada às pessoas com deficiência. E, a partir daí, que se começou a cogitar que na verdade, não precisava tanto de hospitais de caridade ou de casas de saúde, mas sim, de organizações separadas, o que tornaria o cuidado e atendimento mais racional e menos dispendioso.

 

Entretanto, a internação de pessoas com deficiências, embora com o fim de tratamento de suas patologias, não passava de um meio de marginalização e de exclusão social.

 

A partir da segunda metade do século XIX, deu-se o reconhecimento da pessoa com deficiência, que passou a ser encarada como força laboral. E, tal potencialidade da pessoa deficiente para o trabalho fora reforçada notadamente por Napoleão Bonaparte ao exigir de seus generais que olhassem os seus soldados feridos ou mutilados como elementos potencialmente úteis, tão logo, tivessem seus ferimentos curados.

 

Também por Napoleão Bonaparte, apesar que de forma indireta que se criou o braille, o sistema de leitura utilizado por cegos até os dias de hoje.

 

Em atenção à uma especial solicitação de Bonaparte que Charles Barbier (1764-1841), um oficial do exército francês, elaborou um sistema para que as mensagens transmitidas durante a noite pudessem ser decodificadas pelos comandantes no período de batalhas.

 

Uma vez que o sistema de leitura noturna fora considerado demasiadamente complicado pelos militares do exército de Bonaparte, Barbier levou o seu método ao conhecimento dos alunos do Instituto Nacional dos Jovens Cegos de Paris.

 

Dentre os alunos estava o jovem Louis Braille (1809-1852) que na época contava com quatorze anos, que apresentou algumas melhores ao método de Barbier. Diante da negativa deste em realizar alterações em seu sistema. Louis Braille o reformulou quase que totalmente, dando origem à escrita braille.

 

Dom Pedro II, o Imperador do Brasil fortemente influenciado pelas ideias europeias, veio a fundar o Imperial Instituto dos Meninos Cegos em 1854, atualmente chamado de Instituto Benjamin Constant (em homenagem ao seu terceiro diretor), e o Imperial Instituto dos Surdos Mudos, em 1857, denominado atualmente como Instituto nacional de Educação de Surdos, INES, ambos em atividade atualmente e servindo de referência nacional para o tratamento dessas necessidades especiais.

 

Finalmente, com o século XX é que realmente ocorreu maior mobilização para o atendimento e proteção efetiva além de se prover a inserção da pessoa com deficiência na sociedade. Na primeira década do século XX foram realizadas grandes conferências e congressos em vários países, versando sobre crianças inválidas, pessoas deficientes, reabilitação, dentro outros temas, procurando dar maior ênfase as seguintes, a saber: Primeira Conferência sobre Crianças Inválidas (Londres/Inglaterra, 1904), Congresso Mundial dos Surdos (Saint Louis/EUA, 1909), e a Primeira Conferência da Casa Branca sobre os Cuidados de Crianças Deficientes (Washington DC nos EUA, 1909).

 

Tais progressos, no entanto, foram interrompidos com a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914- 1918)  quando um grande contingente de homens fora convocado para servir aos exércitos e as forças armadas e, então, restou às mulheres a incumbência de sustentar os filhos, o que levou a forte migração de mulheres ao trabalho nas indústrias.

 

Quase toda a humanidade saudável da Europa fora literalmente empurrada para os exércitos ou para as marinhas ou então para as fábricas improvisadas que serviam a guerra. Ocorreu enorme substituição de homens por mulheres na indústria.

 

É provável que mais da metade da população, nos países beligerantes da Europa, tenha mudado completamente de emprego durante a guerra. A educação e o trabalho científico normal eram restritos ou desviados para fins militares imediatos.

 

Ao final da primeira guerra mundial, os soldados que retornavam das batalhas com mutilações elevaram em número, assim engordando a margem de pessoas com deficiência. A crise financeira que assolou o mundo não poderia prescindir de nenhuma força de trabalho, sendo necessário tomar medidas eficazes para a reabilitação dos ex-combatentes.

 

A Conferência de Paz que aprovou o Tratado de Versalhes, além de dispor sobre as novas dimensões da fronteira alemã, sobre as sanções e reparações impostas aos vencidos, também criou importante organismo internacional para tratar da reabilitação de pessoas para o trabalho no mundo, inclusive das pessoas com deficiência: a Organização Internacional do Trabalho - OIT -, estabelecendo a sua Constituição na parte XIII do tratado.

 

Destacou-se, igualmente, a criação da primeira organização voltada a buscar novos e melhores meios de reabilitação às pessoas com deficiência denominada Sociedade Escandinava de Ajuda aos Deficientes, hoje conhecida como Rehabilitation International.

 

Essa nova visão sobre a pessoa com deficiência fora reforçada especialmente na sociedade norte-americana, com figura do Presidente dos EUA, Franklin Delano Roosevelt que embora tenha adquirido poliomielite aos trinta e nove anos (1921) demonstrou ao mundo que a paraplegia não era impedimento para uma vida independente, produtiva e rentável.

 

Afinal, antes mesmo da declaração da Segunda Grande Guerra mundial, já circulavam pela Alemanha propagandas de cunho eugênico em relação às pessoas com deficiência. E, foi uma dessas propagandas, publicada em 1938, pela Neues Volk (Novo Povo), revista mensal do Escritório de Políticas Raciais do Partido Nazista[20] que alertava ao povo alemão que sessenta mil reichsmarkks é o que essa pessoa portadora de defeitos hereditários custava ao povo durante a vida.

 

Já e primeiro de setembro de 1939, o chanceler alemão Adolf Hitler declarou guerra à Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial e, em documento da mesma data, assinado pelo próprio Führer, instalou-se oficialmente o Programa de Eutanásia na Alemanha nazista, realizado de 1939 a 1941, mas teve prosseguimento extraoficial mesmo após ao término da guerra.

 

Esse memorandum, visava estabelecer a eliminação de doentes incuráveis, idosos senis, deficientes físicos e doentes mentais, determinando que o programa de eutanásia fosse sob a direção de Philipp Bouler, chefe da chancelaria privada de Hitler e do Doutor Karl Brandt, médico pessoal do Führer.

 

O decreto nazista de eutanásia se configurou num dos raros casos em que houve protestos populares na Alemanha contrários às diretrizes impostas, especialmente pelos familiares das vítimas.

 

Dentre os magistrados germânicos, um juiz se notabilizou, Lothar Kreyssig que se manifestou contra a lei. No cargo de juiz de casos de guarda de pacientes mentais em Brandemburgo, no ano 1940, deparou-se com expressivo número de certidões de óbito de pessoas com tais deficiências, o que levou a enviar carta de protesto ao então Ministro da Justiça, Franz Gütner.

 

E, mesmo sendo advertido de que era a vontade de Hitler[21], considerado a fonte da lei, Lothar Kreyssig determinou a proibição de transferência de pacientes sem a sua expressa autorização e, ainda, dois anos mais tarde, ingressou com processo público onde acusava de assassinato Philipp Bouler, o chefe do programa. Assim, no mesmo ano, o juiz fora afastado de suas funções.

 

E mesmo diante de protesto popular, deu-se o início da execução do programa de eutanásia nazista para o extermínio de pessoas consideradas portadoras da vida indigna de ser vivida.

 

O termo, segundo Giorgio Agambem (2010, p. 132-136), deriva da obra intitulada Die Freigabe der Vernichtung lebensunwerten Lebens (A autorização do aniquilamento da vida indigna de ser vivida), publicada em 1920, cujos autores foram Karl Binding, um especialista em direito penal, e Alfred Hoche, um professor de medicina.

 

Ao defender a impunidade do suicídio e, principalmente, o conceito de “vida sem valor” (ou “indigna de ser vivida”) orientavam à prática da eutanásia em indivíduos considerados incuravelmente perdidos e que expressassem seu desejo de “libertação”.

 

A eutanásia também era recomendada aos “idiotas incuráveis”, independentemente de manifestação destes, sendo que, mesmo neste caso, como aponta Giorgio Agambem, os autores não reconheciam razão alguma “nem jurídica, nem social, nem religiosa para não autorizar a morte destes homens, que não são mais do que a espantosa imagem ao avesso [...] da autêntica humanidade”.

 

Com a finalidade de reforçar as determinações da Carta das Nações Unidas de 1948, foi criada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em seu artigo 25 fez menção explícita à pessoa com deficiência, embora denominada inválida.

 

     Artigo XXV. 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança, em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora do seu controle.

 

Em verdade, o programa de eutanásia em massa fora oficialmente encerrado em 1941, porém, se constatou que as execuções persistiram até mesmo o final da guerra, chegando-se à estimativa de que cerca de duzentas e setenta e cinco mil adultos e crianças com deficiências morreram nesse período, e, outras quatrocentas mil pessoas suspeitas de terem hereditariedade de cegueira, surdez e deficiência mental foram esterilizadas em nome da raça ariana pura e saudável.

 

O referido programa de eutanásia alemão ficou notabilizado após guerra como T4, tal designação é a abreviação de Tiergartenstrasse 4, o endereço de uma casa localizada em Berlim onde funcionava a sede do sinistro programa. A edificação foi derrubada restando hoje apenas uma placa no pavimento que indica sua antiga localização.

 

Com o término da segunda guerra mundial, o mundo se conscientizou da imperiosa necessidade de tomar medidas para que as atrocidades cometidas em nome da guerra não mais prosperassem, bem como de que maneira se poderia organizar o tratamento e reabilitação das pessoas que a guerra tornara deficientes.

 

Em 1945, foi constituída a Organização das Nações Unidas- ONU - com a primaz função de trabalhar pela paz no mundo. E, no documento de sua fundação é a Carta das Nações Unidas que fora depois ratificada pelos então cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (China, França, URSS, Reino Unido e os EUA) e pela maioria dos quarenta e seis membros, e assim dispõe em seu preâmbulo, in verbis:

 

Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que, por duas vezes no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes de direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla.

 

Tal documento internacional de inestimável valor histórico e humanitário serviu de impulso à melhor organização das pessoas com deficiência, resultando no maior interesse na criação de novas instituições e, na consolidação das já existentes, voltadas à busca de meios de concretizar a inclusão social desses indivíduos.

 

Logo após ao início da década de cinquenta, progressivamente foram criadas instituições dedicadas ao específico tratamento de pessoas com deficiência em vários países, principalmente na busca de alternativas para sua integração social e aperfeiçoamento das ajudas técnicas para pessoas com deficiência física, auditiva e visual.

 

Porém, no direito internacional deu-se a flagrante carência de previsões específicas sobre os direitos da pessoa com deficiência. E, mesmo com a Resolução da ONU de 1971, a Declaração de Direitos das Pessoas com Retardo Mental, e a Resolução de 1975 (Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes) não se verificou o real avanço em termos legislativos quanto a proteção das pessoas com deficiência.

 

Ao longo da segunda metade do século XX, tratou-se de direitos dos refugiados, da não discriminação racial, da não discriminação da mulher, dos direitos das crianças, citando-se a título de exemplo: a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951, Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, Convenção sobre a eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, de 1969, Convenção sobre a eliminação de todas as formas de Discriminação contra a mulher, de 1979, Convenção sobre os Direitos Políticos das mulheres, em 1979 e, a Convenção sobre o Direito das Crianças de 1989.

 

Apesar da existência da declaração, em 1981, do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, demonstrando a preocupação mundial com a temática, pouco realmente de consistente se operou na esfera mundial, persistindo a contínua exclusão da pessoa com deficiência na esfera legislativa.

 

Evolução Legislativa brasileira para a inclusão das pessoas com deficiências como exercício do direito à dignidade humana.

 

No que se refere aos dispositivos legais voltados a promover a integração social da pessoa com deficiência nas Constituições brasileiras, restaram silentes as Constituições de 1824 e a de 1891. A Constituição Imperial e a Republicana.

 

A Constituição de 1934, trouxe o embrião do conteúdo do direito à integração social da pessoa deficiente, ao disciplinar em seu artigo 138, ser incumbência da União, dos Estados e dos Municípios: a) assegurar amparo aos desvalidos, criando serviços especializados e animado os serviços sociais, cuja orientação procuraram coordenar.

 

Já as Constituições brasileiras de 1937, 1945 e 1967, entretanto, não trouxeram maiores inovações ou progressos quanto à matéria, restringindo-se apenas a garantir o direito à igualdade e breve menção ao direito previdenciário em caso de invalidez do trabalhador.

 

Foi a Emenda Constitucional nº12, feita à Constituição Federal de 1967 é que se pode constatar a autêntica evolução na proteção dos direitos das pessoas com deficiência, servindo, de base para uma série de medidas judiciais (a ação dos deficientes que requereram acesso às rampas de embarque de metrô de São Paulo).

 

O marco principal veio a ser finalmente estabelecido com a Constituição Cidadã, ou seja, a de 1988. Seguindo a evolução mundial que se iniciava a respeito da proteção de pessoas com deficiência, assegurando em diversos dispositivos essa proteção específica (art. 5, caput, art. 7, inciso XXXI, artigo 37, VIII, artigo 203, IV e V, artigo 208, III, artigo 227, inciso II, do parágrafo I e II).

 

No ano de 1989 foi editada a Lei 7.853/1989 que criou a Coordenadoria Nacional para Integração de Pessoa Portadora de Deficiência - CORDE, bem como disciplinou, entre outros pontos, o apoio às pessoas portadoras de deficiência e sua integração social.

 

Diversas outras medidas legais de proteção à pessoa com deficiência seguiram-se à essa lei, a Lei 8.112/1990 (Lei dos Servidores Públicos - previsão de reserva de vagas em concursos públicos); Lei 8.213/91 (Previdência Social, cota de vagas em empresas privadas); Declaração de Salamanca de 1994 (trouxe a concepção de educação inclusiva); a Lei 9394/1996 (LDB) acesso à educação e especialização, Decreto Federal 3.298/99 (regulamentação); Convenção de Guatemala (Decreto 3.956/2001) não discriminação.

 

Temos, portanto, que o legislador brasileiro não se distanciou da evolução que se efetivava principalmente quanto à preocupação social e jurídica no que tange à pessoa com deficiência.  Afinal, um país que pretende ser democrático, deve ser sempre preocupado com o respeito à dignidade da pessoa humana.

 

Desde 1948, em seu primeiro artigo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, já se proclamava a igualdade "em dignidade e direitos", de todos os seres humanos, ou seja, mesmo diante da premente diferença entre todas as pessoas, sem exceção, somos iguais em dignidade e termos direito a essa dignidade.

 

No mesmo sentido, seguiu a atual Constituição federal brasileira pois determinou como fundamento do próprio Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana (art. 1.,inciso III) e, ressaltando, em seu preâmbulo, que este Estado fora instituído com o objetivo de assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça".

 

Portanto, garantir e promover a plena inclusão da pessoa com deficiência é efetivar os direitos consagrados constitucionalmente, com vistas à construção da sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos que os brasileiros vislumbraram ao ratificar a tão almejada Constituição do país.

 

E, nesse sentido, interessantes as palavras do Ministro do Luiz Fux, na época que estava no STJ: “Consectário de um país que ostenta uma Carta Constitucional cujo preâmbulo promete a disseminação das desigualdades e a proteção à dignidade humana, promessas alçadas ao mesmo patamar da defesa da Federação e da República, é o de que não se pode admitir sejam os direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiência, relegados a um plano diverso daquele que o coloca na eminência das mais belas garantias constitucionais”. (REsp 567873/MG, Recurso Especial 2003/0151040-1, Relator(a) Ministro LUIZ FUX, Órgão Julgador T1 - PRIMEIRA TURMA, Data do Julgamento 10/02/2004. Data da Publicação/Fonte DJ 25.02.2004 p. 120 RSTJ vol. 182 p. 134).

 

Na busca constante para oferecer maior garantia e especificidade aos direitos das pessoas com deficiência, sempre sob a luz do princípio da dignidade humana, sobreveio a Convenção Internacional dos Direitos dos Deficientes.

 

Em nosso país, desde a pesquisa realizada pelo IBGE em 2000, já se verificava que cerca de 14,5% da população brasileira eram portadores de deficiência, chegando-se aproximadamente a vinte e cinco milhões de pessoas. E, diante a tais dados, elevou-se potencialmente o interesse e a necessidade do Brasil em tratar de forma visceral da questão da pessoa com deficiência.

 

Essa finalidade crucial se viu concretizar através do recente tratado de direitos humanos, que fora aprovado pela 61ª Assembleia da ONU, que ocorreu em dezembro de 2006: a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ambos assinados e ratificados pelo Brasil em 2007.

 

Sendo regulamentada por meio do Decreto Legislativo 186/2008, ratificada em 2008 e, finalmente promulgada pelo Decreto Federal 6.949/2009, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência se consubstancia em inestimável documento jurídico e histórico.

 

Inicialmente estatui-se uma verdadeira mudança de paradigma projetada sobre a visão social incidente na pessoa com deficiência, ao conceituar em seu artigo primeiro que in litteris:

    Art. 1º: Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.

 

Decorre de tal preceito resulta o reconhecimento do pleno direito das pessoas com deficiência de se integrarem na sociedade, de forma autônoma e respeitosa, como expressão maior do seu direito à dignidade humana.

 

Não se criou propriamente novos direitos, mas foram estes especificados, para que a pessoa na condição de deficiente possa desfrutar das mesmas oportunidades, para que a pessoa na condição de deficiente possa desfrutar das mesmas oportunidades que os demais.

 

Não vige mais indiferença, o desprezo, o extermínio e nem mesmo a simpatia ou mero assistencialismo. Simplesmente vige o respeito. Se existe uma deficiência, esta não é mais da pessoa, e sim, da sociedade.

 

O marcante cariz da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência ganhou destaque histórico na legislação pátria, pois se tratou do primeiro internacional tratado de direitos humanos que foi aprovado segundo os termos do artigo 5, §3º da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional 45 de 2004.

 

Aliás, de acordo com o novo procedimento dado aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que foram aprovados em cada Casa do Congresso nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

 

Desta forma, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência inaugurou a figura jurídica inédita no ordenamento jurídico pátrio, uma vez que essa equivalência determinada pela letra da Constituição Federal, significa mencionar que a esse tratado é reconhecido seu status constitucional, servindo, inclusive, como paradigma de controle concentrado, a fim de invalidar, erga omnes as normas infraconstitucionais com eles incompatível, e, ainda, paradigma de controle difuso, exercitável em qualquer grau de jurisdição.

 

A tecnologia hermenêutica pretende partir da letra da lei até o espírito do direito. Ao disciplinar a conduta humana, os modelos normativos utilizam palavra-signos linguísticos que devem expressar o sentido daquilo que deve ser. A compreensão jurídica dos significados que referem os signos demanda o uso de uma tecnologia hermenêutica.

 

Ainda que os mais recentes estudos da hermenêutica jurídica pontem para a sua essência filosófica, porém, é inegável a sua importante função instrumental, à medida em que oferece as técnicas voltadas por norteamento de práticas interpretativas do Direito.

 

As diversas técnicas interpretativas não operam isoladamente, estas sempre se complementam e se completam, mesmo porque não existe, na teoria jurídica interpretativa, uma hierarquização segura e pacífica das múltiplas técnicas de interpretação.

 

Neste sentido, devemos entender que a interpretação da norma jurídica é sempre multidimensional, e não unidimensional e, se desenvolve a partir de diferentes perspectivas.

 

Cogita-se como todos sabem, de uma interpretação histórica, sistemática, gramatical e teleológica. Cada qual

dessas interpretações oferece diferentes pontos de vista para entender o significado último da norma.

 

Tradicionalmente, a doutrina vem arrolando as seguintes técnicas interpretativas, a saber: a gramatical, a lógico-sistemática, a histórica, a sociológica e a teleológica.

 

Através a técnica gramatical ou filológica, o hermeneuta se debruça sobre as expressões normativas, investigando a origem etimológica dos vocábulos e aplicando as regras estruturais de concordância ou regência, seja verbal e nominal. Corresponde a um processo hermenêutico quase que superado diante do anacronismo do brocardo jurídico in claris cessat interpretatio[22].

 

Afora o processo hermenêutico gramatical, pode ser usada a técnica lógico-sistemática que consiste em referir o dispositivo normativo ao contexto normativo mais amplo do qual faz parte, correlacionando, dessa forma, a norma à totalidade do sistema jurídico e, até de outros ordenamentos jurídicos paralelos, conformando assim, o denominado direito comparado.

 

Na interpretação lógico-sistemática de um diploma legal, deve-se, portanto, cotejar o preceito normativo com outros do mesmo diploma legal ou de legislações diversas, mas referentes ao mesmo objeto, visto que, examinando as prescrições normativas, conjuntamente, é possível verificar o sentido de cada uma destas.

 

Lembremos que não se pode interpretar o comando normativo de forma isolada, devendo ser compreendido e aplicado em contato com as demais normas que compõem o ordenamento jurídico, seja no plano horizontal, seja no plano vertical do sistema hierárquico da ordem jurídica.

 

Desta forma, exemplificando, uma cláusula de um contrato não poderá ser entendida e aplicada como se estivesse insulada das demais cláusulas que integram a avença contratual, dentro do mesmo plano horizontal de normatividade jurídica.

 

Já sob a ótica vertical do sistema jurídico, a referida cláusula de um contrato deverá ser analisada à luz de normatividade jurídica superior, a fim de aferir-se sua validade e eficácia, pelo que o jurista se valerá também do confronto com as normas da legislação infraconstitucional e, em derradeira inspeção, da própria Constituição, a Lei Magna que está localizada no ápice de todo ordenamento jurídico.

 

Assim, munido com a técnica história, o intérprete perquire ciosamente os antecedentes imediatos, como por exemplo a declaração de motivos, debates parlamentares, projetos e anteprojetos e, mesmo os remotos registros do modelo normativo.

 

O processo sociológico de interpretação do direito visa a conferir a aplicabilidade da norma jurídica às relações sociais que lhe deram origem; elastecendo o sentido da norma a relações novas, inéditas ao momento de sua criação; e temperar o alcance do preceito normativo a fim de fazê-lo espelhar as necessidades atuais da comunidade jurídica.

 

Segue-se umbilicalmente ligado à técnica sociológica, o processo teleológico que objetiva depreender a finalidade do modelo normativo. Daí, resulta que, a norma se destina a um escopo social, cuja valoração dependerá do hermenêutica, com base nas circunstâncias concretas de cada situação jurídica.

 

A técnica teleológica procura, deste modo, delimitar o fim, vale dizer a ratio essendi do preceito normativo, para a partir dele determinar o seu real significado. A delimitação do sentido normativo requer, pois, a captação dos fins para os quais se elaborou a norma jurídica.

 

A interpretação teleológica serve de norte para os demais, processos hermenêuticos. Isto é assim porque convergem todas as técnicas interpretativas em função de objetivos que informam o sistema jurídico. Toda interpretação jurídica ostenta uma natureza teleológica, fundada na consistência axiológica do direito.

 

E comungando desse entendimento, pontificou Miguel Reale que o ato de interpretar uma lei, importa previamente, em compreendê-la em sua plenitude de seus fins sociais, a fim de poder-se, assim, determinar o sentido de cada um de seus dispositivos.

 

Somente assim, a lei é aplicável a todos os casos concretos que correspondam àqueles objetivos. Conforme se vê, a primeira cautela do hermeneuta contemporâneo consiste em saber qual a finalidade social da lei, no seu todo, pois é o fim que possibilita penetrar na estrutura de suas significações mais particulares.

 

Portanto, o sincretismo de caminhos interpretativos, iluminados que são pela teleologia do direito, autoriza ao intérprete transcender da palavra em direção ao espírito do ordenamento jurídico, quiçá da justiça.

 

A hermenêutica jurídica então oferece ao intérprete repositório de técnicas interpretativas, destinadas a dar resolução dos problemas linguísticos inerentes ao discurso normativo.

 

No desenvolvimento da interpretação jurídica, o operador do direito se valerá destas ferramentas hermenêuticas para deslinde de obstáculos da linguagem jurídica. Há sincera compatibilidade entre as dimensões semióticas e as técnicas interpretativas. E, usemos, por exemplo, de alguns exemplos oriundos da interpretação do Código de Defesa do Consumidor, dentro do contexto da ordem jurídica pátria.

 

Os problemas sintáticos podem ser resolvidos fundamentalmente pelo recurso aos processos hermenêutico gramatical e ao lógico-sistemático. Desta forma, ao analisarmos o artigo 51, caput do CDC que prescreve que são nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços, a expressão entre outras sinaliza para uma ideia de inclusão.

 

O que permite firmar o caráter exemplificativo traçado do elenco geral de cláusulas abusivas (numerus apertus), o que se depreende através do uso do processo hermenêutico gramatical.

 

O Estatuto da pessoa com deficiência, a Lei 13.146/2015 originado a partir de princípios de Direitos Humanos e regido pelas normas globais de Direito Internacional e Direito Constitucional. Marca seu advento coo sendo o resultado da multidisciplinariedade, envolvendo tanto o Direito Internacional, como o Constitucional, os Direitos Humanos, Direito de Família e o Direito Civil em geral.

 

Em sintonia com o Decreto 6.949/2009 que regulamentou a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, com status equivalente ao de Emenda Constitucional, conforme os termos do artigo 5º, §3º da Constituição Federal.

 

O principal escopo foi de promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e das liberdades fundamentais das pessoas com deficiência, promovendo o respeito pela sua dignidade inerente.  Ratifica-se que as pessoas com deficiências gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida.

 

Igualmente, no âmbito das esferas cível, notadamente, a do Direito de Família, o diploma legal em comento, trouxe significativas alterações, principalmente no instituto da interdição, cujo objetivo, então, passou a cingir-se tão somente às esferas patrimonial e negocial - noutras palavras, a figura do curador[23], superadas as fases de conhecimento e perícias, existentes no âmbito processual, terá sua atuação limitada de acordo com a necessidade de sua intervenção, por sentença a ser proferida pelo juízo competente.

 

Destarte, com o advento das alterações trazidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, a incapacidade civil absoluta restou delimitada somente aos menores de dezesseis, ou seja, observando apenas o critério etário, afastando,  assim situações de deficiência de qualquer natureza e grau de manifestação, da figura de absolutamente incapaz, em conformidade com os  da Convenção Sobre os Direitos com Deficiência.

 

Atualmente vige controvérsia de grande repercussão na jurisprudência pátria, conforme será demonstrado mais à frente, posto que magistrados e a promotoria de justiça tem entendido, em diversas situações, que a extinção da incapacidade absoluta para os casos de deficiência mental severa e incurável podem trazer consequências devastadoras, tanto para a vida da pessoas com deficiência, quanto para a sociedade.

 

Nas palavras da Doutora Flávia Piovesan: "A história da construção dos direitos humanos das pessoas com deficiência compreende quatro fases: a) fase de intolerância em relação às pessoas com deficiências, em que a deficiência simbolizava impureza, pecado, ou mesmo, castigo divino; b) uma fase marcada pela invisibilidade das pessoas com deficiência; e a terceira fase guiada pela verve assistencialista e pautada mais na perspectiva médica  biológica de que a deficiência era uma "doença a ser curada", sendo o foco centrado no indivíduo como portador da enfermidade; finalmente, a quarte fase guiada pelo paradigma dos direitos humanos onde emergem os direitos à inclusão social, com ênfase na relação da pessoa com deficiência e do meio em que esta se insere, bem como na necessidade de eliminar obstáculos, e barreiras superáveis, sejam elas culturais, físicas ou sociais, que impeçam o pleno exercício de direitos humanos” .(PIOVESAN, 2013).

 

Em síntese, considerando os aspectos históricos e elementares, o Estatuto da Pessoas com Deficiência (EPD), em seu nascedouro, surgira a partir dos princípios basilares de Direitos Humanos trouxe significativa influência sobre os direitos civis e de família pátrios e é regido pelas normas de Direito Internacional e Constitucional.

 

A jurisprudência pátria tem divergido na análise das considerações sobre a constitucionalidade do Estatuto da Pessoa com Deficiência, pois o diploma legal trouxe significativas alterações na seara do Direito Civil, de Família e de Sucessões, com destaque, aos casos referentes ao instituto da interdição[24].

 

O referido Estatuto difunde as premissas da Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, com força de emenda constitucional, suprimiu a existência da figura do "absolutamente incapaz" no tocante à deficiência mental.

 

A propósito, o doutrinador Flávio Tartuce, em verdade, o Estatuto da Pessoa com Deficiência gerou muitas polêmicas desde sua entrada em vigor, particularmente, diante de conflitos do CPC/2015. E, para tentar apaziguá-las, encontra-se em trâmite no Senado Federal, o Projeto de Lei 757/2015 que conta com parecer e apoio parcial do ilustre doutrinador.

 

Isto porque, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD) alterou, essencialmente, o Código Civil vigente, posto que revogou todos os incisos do artigo 3º e alterou os incisos II e III do artigo 4º da legislação civil pátria, cuja atual redação, in verbis:

 

Artigo 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de dezesseis anos. (Redação dada pela Lei 13.146/2015).

I. (Revogado) (Redação dada pela Lei 13. 146/2015;

II. (Revogado) (Redação dada pela Lei 13.146/2015)

III (revogado). Redação dada pela Lei 13.146, de 2015.

 

Artigo 4º São incapazes, relativamente de certos atos ou à maneira de os exercer: (Redação dada pela Lei 13.146/2015)

I os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

II os ébrios habituais e os viciados em tóxico;

III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;

IV. os pródigos.

Parágrafo único A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial (Redação dada pela Lei 13.146/2015)

 

Desta forma, conforme alhures mencionado e nos termos da legislação, acima colacionada, com as alterações trazidas pelo EPD, atualmente, somente os menores de 16 anos são considerados, para os efeitos legais e civis, absolutamente incapazes, não havendo ais, assim, pessoas maiores absolutamente incapazes no esmo âmbito.

 

Importante ressaltar que o objetivo do Estatuto em comento é, à luz das normas internacionais de direito das pessoas com deficiência, consoante os paradigmas de direitos humanos e os princípios basilares da dignidade da pessoa humana, a plena inclusão da pessoa com deficiência sob qualquer ótica.

 

No que se refere ao instituto da interdição[25], o Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), em seu artigo 84, com base no princípio da inclusão social com dignidade/liberdade - herança da Convenção Internacional que lhe deu origem, assegura à pessoa com deficiência o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas, de forma que, se por ventura necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, nos termos da lei.

 

A curatela[26] corresponde a medida protetiva de caráter extraordinário, devendo atender, proporcionalmente às necessidades e às particularidades de cada caso, com a menor duração possível, e sua decretação afetará tão somente os atos de natureza patrimonial e negocial, nos termos do artigo 85 do EPD.

 

Nesse sentido, de acordo com a disposição legal vigente, a curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto, podendo existir limitações somente aos atos patrimoniais e não para os existenciais, que visam a promoção da pessoa humana, conforme corrobora Flávio Tartuce.

 

Dispõe o CPC vigente que no que refere ao instituto da interdição, no caput do artigo 755 e seu inciso II: "Na sentença que decretar a interdição, o juiz considerará as características pessoais do interdito, observando suas potencialidades, habilidades, vontades e preferências, e, adiante, em seu terceiro parágrafo, parte final: " (..) constando do edital os nomes do interdito e do curador[27], a causa da interdição, os limites da curatela e, não sendo total a interdição, os atos que o interdito poderá praticar autonomamente".

 

Frise-se que a interdição constitui medida extraordinária, para que a curatela seja deferida e delimitada, é indispensável o ajuizamento de competente ação judicial e específica, seguindo os ditames das hipóteses da nova redação do artigo 4º do Código Civil vigente.

 

Tem-se, portanto, que para os efeitos das inovações trazidas pelo EPD ao ordenamento jurídico pátrio, no que tange aos absolutamente incapazes caracterizados exclusivamente dentro do critério etário, estarão os atos condicionados à representação, sob pena de nulidade absoluta, e , com relação aos relativamente incapazes, in casu, pessoas com deficiência, a assistência deverá suprir a incapacidade relativa, sob pena de anulabilidade do negócio jurídico.

 

Consigne-se ainda que com o advento do referido Estatuto para negócios jurídicos mais complexos, de cunho patrimonial, a pessoa com deficiência poderá fazer o uso da tomada de decisão apoiada, que substituiu, no diploma vigente, a anteriormente denominada curatela especial, deferida a favor do enfermo ou portador de deficiência física, condicionada ao requerimento expresso próprio ou, na sua impossibilidade, excepcionalmente poderia ele ser formulado pelos pais, pelos tutores, pelo cônjuge, por qualquer outro parente ou pelo Ministério Público[28].

 

Por derradeiro, além de todas as alterações e revogações, prima facie, confusas, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, em seu artigo 115, alterou o Título IV do Livro IV da Parte Especial do Código Civil, que passou a vigorar com a seguinte redação: "Da Tutela, da Curatela e da Tomada de Decisão Apoiada e, desta forma, acrescentou o artigo 1.783-A no Código Civil, regulamentando os procedimentos relativos à camada tomada de decisão apoiada[29], cujo objetivo é o auxílio à pessoa com deficiência nos atos de celebração mais complexos.

 

 Quanto ao procedimento de tomada de decisão apoiada, na explicação do doutrinador Flávio Tartuce, in litteris:

     "De início, conforme o caput da norma, a tomada de decisão apoiada é o processo judicial pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos duas pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessárias para que possa exercer sua capacidade”.

 

Segundo este doutrinador paulista parece que a tomada de decisão apoiada tem a função de trazer acréscimos ao antigo regime de incapacidade dos maiores, sustentado pela representação, pela assistência e pela curatela".

 

São notórias e explícitas as inovações e controversos os efeitos que o Estatuto da Pessoa com Deficiência trouxe ao nosso ordenamento jurídico, de forma que, consequentemente, desafia os aplicadores e intérpretes do Direito Privado no exercício de suas atribuições principalmente no que concerne à sua compatibilidade com as novas normas processuais, sendo ambas legislações emergentes de maneira concomitante, o que causa, inevitavelmente, desconforto e sentido confuso à sua aplicabilidade e interpretação.

 

Assim bem compreendidas as principais alterações do Estatuto em comento, em consonância com as normas de direito internacional que originaram sua elaboração e promulgação no ordenamento jurídico pátrio, necessárias considerações, a seguir, das controvérsias acerca do EPD, no ordenamento jurídico, bem como sobre sua constitucionalidade.

 

CONTROVÉRSIAS

 

É perceptível que a controvérsias advêm da confusão decorrente das múltiplas alterações no ordenamento jurídico, em razão da mencionada multidisciplinariedade do Estatuto da Pessoa com Deficiência que abarca as searas do Direito Internacional, Direito Constitucional, Direitos Humanos, Direito Civil e Direito de Família

 

Para Tartuce houve uma verdadeira revolução na teoria das incapacidades[30], que foi trazida por força pela Convenção Internacional e com o advento do EPD, ao ordenamento jurídico pátrio, sob nova ótica das deficiências e dos direitos humanos inerentes a toda forma de vida humana.

 

E, nesse sentido, não há que se falar, pois, em inconstitucionalidade do EPD, posto que em nível mundial, a Convenção originária do diploma em comento fora aprovada pela comunidade internacional, da qual é o Brasil signatário e, por força cogente e vinculante, não permitindo que, assim seja o nosso ordenamento jurídico contrário às disposições impostas pelo diploma legal internacional de direitos humanos.

 

No respeitável entendimento dos magistrados, promotores de Justiça e operadores de direito, a extinção da incapacidade absoluta para casos de deficiência mental severa e incurável podem trazer consequências devastadoras, tanto para a vida da pessoa com deficiência, quanto para a sociedade.

 

Por outro lado, consideram, também presumida a exclusão da proteção de tais pessoas como indivíduos vulneráveis, ou conforme a dicção de Tartuce, a "dignidade-liberdade" que substitui a "dignidade-vulnerabilidade" pois, nesta lógica, todas as pessoas com deficiência que, anteriormente, eram consideradas absolutamente incapazes, atualmente, infere-se, passaram a ser consideradas relativamente capazes para as práticas da vida civil.

 

No entanto, os tribunais brasileiros divergem quanto a interpretação das disposições trazidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, conforme é possível verificar nos recentes julgados dos tribunais superiores, cujas ementas seguem a seguir colacionadas, a saber:

 

01. “AÇÃO DE INTERDIÇÃO - ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE - ARTIGOS 84, CAPUT, § 3º E ARTIGO 85, §§ 1º E 2º DA LEI 13.146/2015 (ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA) - CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA - PROMULGAÇÃO PELO DECRETO 6.949/2009 - STATUS DE EMENDA CONSTITUCIONAL - ARTIGO 5º, § 3º DA CR/88 - VÍCIO INEXISTENTE - INCAPACIDADE DO INTERDITANDO - AUSÊNCIA DE CONTROVÉRSIA - INTERDIÇÃO DECLARADA PARA OS ATOS DE NATUREZA PATRIMONIAL E NEGOCIAL - SENTENÇA MANTIDA. 1. Não prospera a arguição de inconstitucionalidade dos artigos 84, "caput" e seu § 3º, e 85, §§ 1º e 2º, ambos da Lei 13.146/2015 - Estatuto da Pessoa com Deficiência, segundo os quais pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas, e a curatela é medida extraordinária e restrita aos atos de natureza patrimonial e negocial, previsão esta em perfeita sintonia com os ditames da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pelo Decreto nº 6.949/2009, com status equivalente ao de Emenda Constitucional, nos termos do artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal. 2.Restando incontroversa a incapacidade do interditando, deve ser mantida a sentença que declarou sua interdição para os atos de natureza patrimonial e negocial, nos termos do artigo 85, § 1º da Lei 13.145/2015. ”

 

(TJ-MG - AC: 10000170109227001 MG, Relator: Afrânio Vilela, Data de Julgamento: 06/08/0017, Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 10/08/2017)

 

02. “AÇÃO DE INTERDIÇÃO. DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 114, DA LEI Nº 13.146/15. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. INTERDIÇÃO ABSOLUTA. REFORMA DA SENTENÇA. AUSÊNCIA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ADEQUAÇÃO DA LEI À CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. STATUS CONSTITUCIONAL. INCAPACIDADE RELATIVA. ART. 4º, III, CC. ATUAÇÃO DA CURADORA QUANTO AOS DIREITOS DE NATUREZA PATRIMONIAL E NEGOCIAL. APELAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PROVIDA. 1. A sentença declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade parcial do art. 114, da Lei nº 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e decretou a interdição absoluta da apelada. 2. Recurso do Ministério Público. Hipótese de provimento. 3. A Lei nº 13.146/15, no que tange ao estabelecimento da incapacidade relativa para os portadores de deficiência, está em conformidade com a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pelo Decreto nº 6.949/2009, e com status equivalente ao de emenda constitucional (art. 5º, § 3º, CF). 4. Interditanda tem 91 anos, é portadora de doença mental[31], de prognóstico incurável, e não exprime nenhum pensamento, nem vontade. 5. Reforma da r. sentença para afastar a declaração incidental de inconstitucionalidade, decretar a interdição nos termos do art. 114, da Lei nº 13.146/15 e do art. 4º, III, CC, bem como para manter a nomeação da curadora, que poderá praticar os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, conforme art. 85, da Lei nº 13.146/15. 6. Apelação do Ministério Público provida.”.

 

(TJ-SP - APL: 10037659420158260564 SP 1003765-94.2015.8.26.0564, Relator: Alexandre Lazzarini, Data de Julgamento: 14/03/2017, 9ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/03/2017)

 

03. “DIREITO CONSTITUCIONAL - DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE ARTIGOS DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA - LEI 13.146/15 - E DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 - ARTIGOS 84, "CAPUT" E SEU § 3º, E 85, §§ 1º E 2º, AMBOS DA LEI 13.146/2015, E AINDA DO ART. 4º, INCISO III, DO CÓDIGO CIVIL, ALTERADO PELA LEI MENCIONADA - PRINCÍPIO DA RESERVA DE PLENÁRIO - SUBMISSÃO DA MATÉRIA AO ÓRGÃO ESPECIAL. - Diante do princípio da reserva de plenário insculpido no art. 97 da Constituição Federal, a questão da inconstitucionalidade de artigos do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) e do Código Civil, deve ser submetida ao Órgão Especial, nos termos do art. 33, I, c, do Regimento Interno deste Tribunal. - Suscitaram incidente de inconstitucionalidade.”

 

(TJ-MG - AC: 10000170344196001 MG, Relator: Ana Paula Caixeta, Data de Julgamento: 25/07/0017, Câmaras Cíveis / 4ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 27/07/2017).

 

04. “APELAÇÃO CÍVEL - PORTADORA DE EPILEPSIA GRAVE COM CONFUSÃO MENTAL SEVERA- CURATELA - INOVAÇÕES TRAZIDAS PELO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA - CONVENÇÃO DA ONU SOBRE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA - STATUS DE EMENDA CONSTITUCIONAL - MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO PLENA E EFETIVA NA SOCIEDADE - PRECEDENTE DO COL. STF- DEFINIÇÃO PREPONDERANTEMENTE SOCIAL - ARTIGOS 84, "CAPUT" E SEU § 3º, E 85, §§ 1º E 2º, AMBOS DA LEI 13.146/2015, E DO ARTIGO 4º, INCISO III, DO CÓDIGO CIVIL - INCONSTITUCIONALIDADE - REJEIÇÃO - RECURSO DESPROVIDO. 1 - O conceito de pessoa com deficiência veiculado pela Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência assinada em Nova York em 30 de março de 2007 e aprovado pelo Congresso por meio do Decreto Legislativo n. 186, de 9 de julho de 2008, em observância ao procedimento estabelecido pelo parágrafo 3º, do art. 5º, da CF/88, goza do status de emenda constitucional. 2 - Acerca do conceito de pessoa com deficiência prepondera, contemporaneamente, o modelo social, devendo os dados médicos ser utilizados para definir compreender suas necessidades, bem como os mecanismos de integração que deverão ser adotados. 3 - Diante das inovações trazidas pela Lei Federal nº 13.146/2015, que instituiu o Estatuto da Pessoa Com Deficiência, a pessoa com deficiência poderá ser submetida a curatela, cujos limites[32] deverão respeitar, na medida do possível, a manifestação do livre desenvolvimento e de vida do curatelado, numa clara superação ao "modelo médico da abordagem da situação das pessoas com deficiência" para dar lugar a uma abordagem social, inclusiva. Precedente do col. STF. 4 - A disciplina dada ao instituto da curatela pela Lei Federal nº 13.146/2015, destina-se à ampliação do espectro de direitos e garantias fundamentais inerentes aos portadores de deficiência mental, não havendo incompatibilidade com o Texto Constitucional. 5 - Recurso desprovido.”

 

(TJ-MG - AC: 10133150029006001 MG, Relator: Sandra Fonseca, Data de Julgamento: 26/09/2017, Câmaras Cíveis / 6ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 06/10/2017)

 

05. “CIVIL E CONSTITUCIONAL. AÇÃO DE INTERDIÇÃO. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. ALTERAÇÃO E REVOGAÇÃO DE DISPOSITIVOS DO CÓDIGO CIVIL. INCAPACIDADES ABSOLUTA E RELATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE AFASTADA. CURATELADA COM QUADRO PROGRESSIVO E INCURÁVEL DE DEMÊNCIA PÓS-AVC. IMPOSSIBILIDADE DE ENTENDER, CONSENTIR E EXPRESSAR SUA VONTADE. INSTITUIÇÃO DE CURATELA. EXTENSÃO DA MEDIDA. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. - O Estatuto da Pessoa com Deficiência inaugurou nova realidade no ordenamento jurídico, com modificações que precisam ser debatidas, assimiladas e aplicadas, e não extirpadas sob a pecha de inconstitucionalidade. A legislação parece conter mais lacunas do que ser inconstitucional, sendo necessário que o intérprete a elas se adapte e construa interpretação que possa aproveitar o seu conteúdo. - Embora as alterações operadas pelo Estatuto no Código Civil possam trazer algumas indagações e perplexidades, há dispositivos legais que permitem graduar a extensão da curatela, e, assim, proteger de forma eficaz a individualidade, a dignidade e os direitos daqueles que, como a autora, não podem exprimir sua vontade.”

 

(TJ-MG - AC: 10701160046986001 MG, Relator: Alberto Vilas Boas, Data de Julgamento: 26/09/2017, Câmaras Cíveis / 1ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 04/10/2017).

 

Da leitura atentar das ementas retromencionadas, percebe-se claramente a recorrente incidência de recursos que versam sobre a matéria tratada, neste momento, qual seja a inconstitucionalidade de dispositivos do Estatuto da Pessoa com Deficiência.

 

Porém, igualmente, nota-se que os relatores têm, em sua maioria, acompanhado a corrente majoritária de constitucionalidade do diploma em comento, não obstante as contumazes suscitações de inconstitucionalidade em sede de recurso às instâncias superiores.

 

Conforme observou o doutrinador Flávio Tartuce com clareza solar (...)"na opinião deste autor, parece ter havido mais um sério cochilo do legislador, que acabou por atropelar uma lei por outra". Portanto, é no mínimo, curioso perceber que a recente Lei 13.146/2015 que instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência, alterou artigos do Código Civil brasileiro sobre a matéria.

 

Porém, alguns desses dispositivos foram revogados pelo Código Civil, manifestando uma verdadeira desatenção do legislador que gerou o atropelamento de uma norma jurídica por outra, sem as devidas ressalvas. Esperamos que tais imprecisões sejam corrigidas celeremente, por meio do Projeto 757, já em curso no Senado Federal.

 

Acerca das controvérsias jurisprudenciais incidentes sobre a constitucionalidade de normas contidas no Estatuto da Pessoa com Deficiência, bem como as respectivas mudanças trazidas, advém da interpretação literal do texto de lei.

 

Insta frisar que na Ciência Jurídica, a função e papel da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB) que permite, ao operador de direito, o uso da hermenêutica para o preenchimento das lacunas, mais especificamente em seu artigo 4º, in litteris: "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com analogia, os costumes e os princípios gerais de direitos" e, ato contínuo, em seu artigo 5º: "Na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".

 

Afinal é a hermenêutica que contém as regras bem ordenadas que fixam os critérios e princípios que deverão nortear a interpretação. A hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar, mas não esgota o campo da interceptação jurídica, por sem apenas um instrumento para sua realização.

 

A omissão da lei, por sua vez, pode ser interpretada como ausência do rol taxativo ou exemplificativo de situações a serem tratadas de forma especial e individual,, como in casu os tipos e graus de deficiência, que hodiernamente, encontra-se em fase de regulamentação conforme alhures mencionado, por meio do Projeto de Lei 757/2015, em trâmite no Senado brasileiro.

 

Nesta senda, atualmente pode o magistrado com base em laudos periciais e estudos biopsicossociais do interditando, e não havendo regulamentação específica em Lei, delimitar a incapacidade relativa de cada indivíduo com base no perfil biopsicossocial, utilizando, para tanto, da hermenêutica.

 

É possível perceber, apesar das suscitadas inconstitucionalidades sob a escusa de que a supressão da incapacidade absoluta dá margem ao abandono de incapazes.

 

A lei definiu expressamente que o julgador pode, dentro das limitações de cada indivíduo fixar os limites da curatela, considerando, acima de tudo, as características pessoais do interdito, e observando suas potencialidades, habilidades, vontade e preferências, ou exercer suas potencialidades e habilidades, o juiz fará constar da sentença e tornar pública a incapacidade relativa da pessoa com deficiência e quais atos está apto ou não a praticar.

 

Analisando, o histórico da evolução dos direitos da pessoa com deficiência, considerado pelas Nações Unidas para a aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, vem Flávia Piovesan lecionar que a Convenção em comento inovou ao reconhecer explicitamente que "o meio ambiente econômico e social pode ser causa ou fator de agravamento de deficiência, destarte, reconhecendo, a própria Convenção, que a deficiência é um conceito em construção, que resulta da interação de pessoas com restrições e barreiras que impedem a plena e efetiva participação na sociedade em igualdade com os demais.

 

Com fulcro nos paradigmas dos Direitos Humanos, acrescidos aos da hermenêutica jurídica é curial a interpretação e aplicação da lei, as deficiências, em geral, devem ser consideradas, como resultados da interação entre indivíduos e seu meio ambiente e não como algo que reside intrinsecamente no indivíduo.

 

Por conseguinte, caberá ao intérprete e ao aplicador do direito, no processo interpretativo, seguir as orientações de várias técnicas interpretativas dentre as quais, a gramatical, a lógica, a sistemática, o histórico e sociológico ou teleológico.

 

Em sua maioria as controvérsias geradas através da interpretação literal do texto do Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), as técnicas interpretativas recomendadas são o processo sistemático, a técnica interpretativa histórica e o processo sociológico, já conceituadas pela doutrinadora Maria Helena Diniz.

 

Em tempo, o processo sistemático é o que considera o sistema onde se insere a norma relacionando-a com outras normas referentes ao mesmo objeto. O sistema jurídico não se compõe de um único sistema normativo, mas de vários, que constituem um conjunto harmônico e interdependente, embora cada qual esteja fixado em seu lugar próprio.

 

Poder-se-á até mencionar que se trata de uma técnica de apresentação de atos normativos, em que o hermeneuta relaciona umas normas a outras até vislumbrar-lhes o sentido e o alcance. É preciso lembrar que uma das principais tarefas da ciência jurídica consiste exatamente em estabelecer as conexões sistemáticas existentes entre as normas (...)

 

Deve-se, portanto, comparar o texto normativo, em análise, com os demais diplomas legais ou leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto, pois por umas normas pode-se desvendar o sentido de outras. Examinando as normas, conjuntamente, é possível verificar o sentido de cada uma delas.

 

A técnica interpretativa histórica baseia-se na averiguação de antecedentes da norma. Refere-se ao histórico do processo legislativo, desde o projeto de lei, sua justificativa ou exposição de motivos, emendas, aprovação e promulgação, ou às circunstâncias fáticas que a precederem e que lhe deram origem, às causas ou necessidades que induziram o órgão a elaborá-la, ou seja, às condições culturais e psicológicas sob as quais o preceito normativo surgiu (occasio legis).

 

Como a maior parte das normas jurídicas constitui a continuidade ou modificação das disposições precedentes, é bastante útil que o aplicador investigue o desenvolvimento histórico das instituições jurídicas, com o fito de apreender o exato significado das normas, tendo sempre em vista a razão destas (ratio legis), isto é, os resultados que visam atingir. Essa investigação pode conduzir à descoberta do sentido e o alcance da norma jurídica.

 

O processo sociológico ou teleológico objetivo conforme quis Ihering[33], adaptar a finalidade da norma às exigências sociais. E, a adaptação está prevista pelo artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil.

 

Ferrara nos informa que a interpretação não é pura dialética e nem se desenvolve como método geométrico, num círculo de abstrações, mas perscruta as necessidades práticas da vida e a realidade social.

 

Segundo Henri de Page[34] não deverá quedar-se surdo diante das exigências da vida, porque o fim da norma não deve ser a imobilização ou a cristalização da vida, e, sim, manter o contato íntimo com ela, segui-la em sua evolução e a esta adaptar-se.

 

Daí, resultante, continua De Page, que a norma se destina a um fim social, de que o magistrado deverá participar, ao interpretar o preceito normativo.

 

É importante que o aplicador e hermeneuta não se restrinja a disposição literal do artigo da lei, mas principalmente, deve conectar-se às demais normas exigentes, para o uso de analogia, quando cabível, bem como acompanhar e sintonizar o processo evolutivo e progressista da sociedade, levando-se em consideração os momentos históricos vividos, bem como as questões sociais.

 

Cabe ressaltar ainda que as diversas técnicas interpretativas, não devem ser aplicadas isoladamente posto que se complementem não existindo uma hierarquia confiável entre as diversas técnicas de interpretação na teoria jurídica interpretativa, pois, tratando-se de operações distintas e sua relação de reciprocidade, devem atuar conjuntamente.

 

Cabe salientar a complexidade da matéria e a inexistência de solução legal até o presente momento, no que tange a constitucionalidade do Estatuto da Pessoa com deficiência. E, ainda em tramitação está o Projeto de Lei 757/2015 que objetiva regulamentar o Estatuto da Pessoa com Deficiência, em consonância com o Código Civil brasileiro e o Código de Processo Civil vigente.

 

Deverão realmente os referidos diplomas legais supramencionados serem uniformizados e sincronizados entre si, pois a principal fonte das controvérsias são mesmo os textos de lei omissos, divergentes e, conforme aduziu Flávio Tartuce, atropelados uns pelos outros.

 

Já se pronunciaram alguns tribunais superiores brasileiros seguindo o entendimento que a matéria é constitucional posto que se trate de Convenção Internacional recepcionada por nosso ordenamento jurídico com força de Emenda Constitucional.

 

Mas há outros operadores de Direito, que não acompanhando a evolução e as mudanças impostas, não entendem que o rumo total e efetivo visa a inclusão social, lastreada nos princípios de direitos humanos e na premissa maior e fundamento da república brasileira, a dignidade da pessoa humana que é inerente a todos.

 

 Projeto de Lei do Senado nº 757, de 2015, de autoria dos Senadores Antonio Carlos Valadares (PSB/SE), Paulo Paim (PT/RS) e outros. Natureza: Norma Geral. Assunto: Social - Direitos humanos e minorias. Ementa: Altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), e a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), para dispor sobre a igualdade civil e o apoio às pessoas sem pleno discernimento ou que não puderem exprimir sua vontade, os limites da curatela, os efeitos e o procedimento da tomada de decisão apoiada.

Explicação da Ementa: Altera o Código Civil, o Estatuto da Pessoa com Deficiência e o Código de Processo Civil para não vincular automaticamente a condição de pessoa com deficiência a qualquer presunção de incapacidade, mas garantindo que qualquer pessoa com ou sem deficiência tenha o apoio de que necessite para os atos da vida civil.

Último andamento da tramitação em 11/10/2017; local: CCJ - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania; Situação: Pronta para a pauta na comissão; Ação: Recebido, às 10h25min, o relatório da Senadora Lídice da Mata, com voto pela aprovação do Projeto, nos termos do Substitutivo que apresenta. Matéria pronta para a Pauta na Comissão. 25/06/2018 PLEN - Plenário do Senado Federal Situação: AGUARDANDO LEITURA PARECER (ES) Ação: Encaminhado ao Plenário para comunicação da conclusão da instrução da matéria e abertura de prazo para recurso. Recebido em: SF-SEADI - Secretaria de Atas e Diários em 25/06/2018 às 17h05 21/06/2018 SF-SACCJ - Secretaria de Apoio à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania Ação: Devolvido à SLSF.

Recebido em: PLEN - Plenário do Senado Federal em 25/06/2018 às 16h49 20/06/2018 PLEN - Plenário do Senado Federal Ação:

Encaminhado ao Plenário para comunicação da conclusão da instrução da matéria e abertura de prazo para recurso. Retificado em 21/06/2018 Encaminhado à CCJ. Recebido em: SF-SACCJ - Secretaria de Apoio à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania em 21/06/2018 às 19h19 20/06/2018 CCJ - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania Ação:

À SLSF, para prosseguimento da tramitação. Recebido em: PLEN - Plenário do Senado Federal em 20/06/2018 às 18h26 20/06/2018 CCJ - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania Situação: APRECIADA EM DECISÃO TERMINATIVA PELAS COMISSÕES Ação:

Na 22ª Reunião Ordinária realizada nesta data, a Comissão adota definitivamente, em Turno Suplementar, o Substitutivo oferecido ao PLS nº 757, de 2015, relatado pela Senadora Lídice da Mata (art. 284 do RISF). Anexei o Texto Final do Substitutivo à matéria. Anexei o Ofício nº 102/2018-PRESIDÊNCIA/CCJ, que comunica a decisão da Comissão em caráter terminativo, no Turno Suplementar, para ciência do Plenário e publicação no Diário do Senado Federal, nos termos do art. 91 e 92 do RISF.(fl. 106). 07/06/2018 CCJ - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania Situação: INCLUÍDA NA PAUTA DA REUNIÃO Ação: Matéria incluída na pauta para apreciação em Turno Suplementar. 06/06/2018 PLEN - Plenário do Senado Federal Situação: AGUARDANDO RECEBIMENTO DE EMENDAS Ação: Recebido o Ofício nº 80, de 2018, da CCJ, comunicando a aprovação de Substitutivo. Concluída a deliberação da matéria em turno único, fica aberto o prazo até o encerramento da discussão, em turno suplementar, perante a CCJ, para oferecimento de emendas ao Substitutivo à matéria, nos termos do art. 282 do RISF.  Publicado no DSF Páginas 120-121 - DSF nº 81 Recebido em: CCJ - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania em 07/06/2018 às 8h59 06/06/2018 SF-SEADI - Secretaria de Atas e Diários Ação: Prazo: Apresentação de Emendas perante as Comissões durante turno suplementar (Art. 282 combinado com o art. 92 do RISF). A partir de 06/06/2018. Perante a/o CCJ. 06/06/2018 PLEN - Plenário do Senado Federal Ação: Encaminhado ao Plenário. Recebido em: SF-SEADI - Secretaria de Atas e Diários em 06/06/2018 às 20h52 06/06/2018 CCJ - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania Ação: Encerrada a relatoria da Senadora Lídice da Mata por deliberação da matéria. À SLSF, para prosseguimento da tramitação. Recebido em: PLEN - Plenário do Senado Federal em 06/06/2018 às 17h44 06/06/2018 CCJ - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania Situação: AGUARDANDO TURNO SUPLEMENTAR EM APRECIAÇÃO TERMINATIVA Ação: Na 19ª Reunião Ordinária, realizada nesta data, a Comissão aprova o Substitutivo oferecido ao PLS n° 757, de 2015, relatado pela Senadora Lídice da Mata. O Substitutivo será submetido a Turno Suplementar, nos termos do disposto no art. 282 c/c art. 92 do RISF. Anexei o Ofício nº 80/2018- PRESIDÊNCIA/CCJ, que comunica a decisão da Comissão e a inclusão na Pauta da próxima Reunião, para apreciação em Turno Suplementar (fl. 90).  Publicado no DSF Páginas 273-298 - DSF nº 81 P.S 70/2018 – CCJ 28/05/2018 CCJ - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania Situação: INCLUÍDA NA PAUTA DA REUNIÃO Ação: Matéria incluída na Pauta da Comissão. 04/05/2018 CCJ - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania Situação: INCLUÍDA NA PAUTA DA REUNIÃO Ação: Matéria constante da Pauta da 15ª Reunião Ordinária da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, agendada para o dia 09/05/2018.

25/04/2018 CCJ - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania Situação: PRONTA PARA A PAUTA NA COMISSÃO Ação: Recebido, às 15h20min, o Relatório reformulado da Senadora Lídice da Mata, com voto pela aprovação do Projeto, nos termos do Substitutivo que apresenta. Matéria pronta para a Pauta na Comissão. Relatório Legislativo Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/124251.

 

A proposta primordial do Estatuto das Pessoas com deficiência ou a Lei Brasileira de inclusão é melhor inserir as pessoas com deficiência mental na sociedade. Porém, muitas dúvidas judiciais vêm surgindo.

 

Dentre essas, a mais polêmica é a que disciplina a teoria das incapacidades. E, com efeito, a regra é que deficiência mental não afeta a capacidade civil da pessoa, e assim sendo, deficiente é considerado capaz para celebrar contratos em geral, casar-se, propor ação nos juizados especiais e mesmo no foro em geral.

 

Ao excluir os deficientes da lista de pessoas absolutamente incapazes, do artigo 3º do CC, a aplicação de institutos assistenciais e protetivos, tais como a curatela e tutela, e o da tomada de decisão apoiada, passaram a ser aplicados apenas em casos excepcionais, sendo restritos apenas aos atos negociais e patrimoniais, resguardando os demais direitos das pessoas com deficiência, como votar, trabalhar e casar (art. 6º, 84 e 85 da Lei Brasileira de Inclusão).

 

Realmente com as alterações realizadas pela referida lei, as pessoas referidas no artigo 1.767 do Código Civil, que são sujeitas à curatela não são mais declaradas ineptas a todos os atos da vida civil, e, portanto, não mais poderão ser nomeados curadores para geri-las integralmente.

 

Desta forma, sem o respaldo na lei material, fica sem sentido as disposições dos artigos 747 e seguintes do CPC que dispõe sobre a ação de interdição. E, de fato, o Estatuto traz como institutos assistenciais e protetivos apenas a tomada de decisão apoiada e a curatela, determinando como requisito para a instituição desta última, a comprovação de deficiência ou doença menta[35]l grave que coloque o deficiente em estado de vulnerabilidade perante terceiros.

 

A tomada de decisão apoiada antes inexistente no ordenamento jurídico brasileiro, fora criada pelo artigo 116 da Lei de inclusão e deve ser observada quando a pessoa for portadora de transtornos mentais[36] brandos, isto é, quando a deficiência ou doença não afetar completamente seu discernimento.

 

Diferentemente das intervenções já conhecidas até então, a tomada de decisão apoiada, não restringe o exercício de direito do deficiente, tratando-se apenas de uma salvaguarda para situações pontuais, principalmente diante casos concretos que necessite contratar, negociar ou acordar com terceiros.

 

Sem abrir de seus poderes e capacidade, a pessoa com deficiência mental, conhecendo e tendo clareza de sua doença, poderá indicar duas pessoas idôneas e de confiança para orientá-la e acompanhá-la na realização de atos de vida civil, de forma que auxiliem na tomada de decisões em que a sua situação de hipossuficiência pudesse prejudicá-la, possibilitando, assim que exerça com plenitude sua capacidade.

 

A prerrogativa do pedido para a instituição da tomada de decisão é apoiada, sendo personalíssima da pessoa com deficiência, ou seja, apenas esta pode solicitar esse apoio ao Judiciário.

 

 

 

E, postulado o pedido, o juiz munido de equipe multidisciplinar, poderá avaliar não apenas a pertinência ou doença mental grave, e, assim, por incapacidade permanente ou transitória que afete sua manifestação de vontade, necessita que um terceiro administre seu patrimônio e seus negócios, perdendo relativamente a sua capacidade para tanto.

 

Importante ressaltar ainda que além de a curatela afetar apenas os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, conforme prevê o artigo 85 da LBI, é necessário um laudo elaborado por equipe multiprofissional e interdisciplinar demonstrando e atestando a ausência de discernimento.

 

Afora isso, sublinhe-se que a Lei de inclusão proíbe que a curatela alcance os direitos civis relativos ao próprio corpo, sexualidade, matrimônio, privacidade, educação, saúde, ao trabalho e ao voto. E, por ser medida extraordinária, deverá constar na sentença que determinar a instituição da curatela as razões e motivações de sua definição, preservando os interesses do curatelado.

 

Ainda, ao nomear o curador, o juiz deverá dar preferência pessoa que tenha vínculo de natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado. É relevante também a inovação realizada pela lei em comenta que é a implementação de possibilidade de o juiz nomear mais de uma pessoa como curador, possibilitando, assim a chamada curadoria compartilhada, conforme prevê o artigo 1.775-A do Código Civil brasileiro.

 

Embora a lei tenha extinguido a interdição[37] in totum das pessoas com transtorno mental, ainda existem procedimentos necessários para apoiar as pessoas que possam ser vulneráveis, hipossuficientes em questões patrimoniais.

 

E, uma vez que o CPC/2015 entrou em vigência após a lei de inclusão, apesar de ter sido aprovada antes, não há procedimento para a nomeação de curador ou de apoiador aos deficientes.

 

Pelo exposto, é inegável que a interdição plena, bem como o curador com os poderes indefinidos, gerais e ilimitados, não mais existem dentro do ordenamento jurídico pátrio. Obviamente que o procedimento de interdição ainda permanece, contudo, sob outra perspectiva, desta feita, limitada aos atos de conteúdo econômico ou patrimonial.

 

A lei conforme está redigida, necessita de ser alterada e, para tanto, há o Projeto de Lei em trâmite de número 757/2015, cujo objetivo é ajustar os pontos controversos que ficaram na legislação brasileira após o atropelamento legislativo que esta causou.

 

Porém, até que o projeto vingue, as questões relativas à capacidade civil das pessoas devem ser regidas pelo citado Estatuto, em concorrência do bom senso, do princípio da razoabilidade e proporcionalidade para cada caso concreto, a fim de que a lei não venha justamente a se voltar contra àqueles a quem deveria proteger, ou seja, as pessoas deficientes mentais em graus de discernimentos diversos.

 

Referências

 

ANTONIO, Thays. A interdição dos direitos civis, frente ao Estatuto da Pessoa com deficiência. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI287451,51045-A+interdicao+dos+direitos+civis+frente+ao+estatuto+da+pessoa+com  Acesso em 9.10.2019.

ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. Publicação oficial da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – CORDE. Brasília, 1994.

BADR, Eid. Hermenêutica Constitucional: programa de pós-graduação em Direito Ambiental da EUA: Metrado em Direito Ambiental/ Orgs. Eid Badr, Mauro Augusto Ponce de Leão Braga. Manaus: Editora Valer, 2016.

Brasil, Constituição Federal da República Federativa do. Promulgada em 05 de outubro de 1988.

Brasil, Decreto n. 6.949, 25 de agosto de 2009. Convenção Internacional dos Direitos Da Pessoa com Deficiência. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007.

BRASIL. Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.

BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil.

BRASIL. Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. AC: 10000170109227001 MG, Relator: Afrânio Vilela, Data de Julgamento: 06/08/0017, Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 10/08/2017.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. AC: 10701160046986001 MG, Relator: Alberto Vilas Boas, Data de Julgamento: 26/09/2017, Câmaras Cíveis / 1ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 04/10/2017.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. AC: 10000170344196001 MG, Relator: Ana Paula Caixeta, Data de Julgamento: 25/07/2017, Câmaras Cíveis / 4ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 27/07/2017.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. AC: 10133150029006001 MG, Relator: Sandra Fonseca, Data de Julgamento: 26/09/2017, Câmaras Cíveis / 6ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 06/10/2017.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. APL: 10037659420158260564 SP 1003765-94.2015.8.26.0564, Relator: Alexandre Lazzarini, Data de Julgamento: 14/03/2017, 9ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/03/2017.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 15ª ed. – à luz da Lei n. 10.406/02. São Paulo: Saraiva, 2003.

NUNES, Rizzatto. Manual da Monografia Jurídica. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14.ª ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. Ebook

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 7. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017.

SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e interpretação jurídica. 4.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

 

 

 

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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