Dosimetria da pena: critérios para a fixação da pena privativa de liberdade e a desproporcionalidade na aplicação da pena

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15/06/2020 às 20:43
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4. DO CRITÉRIO IDEAL PARA A FIXAÇÃO DA PENA-BASE E A DISCRICIONARIEDADE REGRADA DO JULGADOR NA APLICAÇÃO DA PENA

A conceituação das circunstâncias judiciais e o âmbito de sua incidência não denota grande dificuldade para o julgador, diferentemente do que ocorre com a tarefa de estabelecer critérios para a fixação da pena-base, posto que a individualização da pena (pode-se entender como o cálculo da pena) está calcada no campo da discricionariedade e, portanto, não está relacionada com a ciência exata por não se curvar a resultados obtidos através de simples operações matemáticas24.

No entanto, a criação de critérios orientadores, sobretudo para fixação da pena-base, tornou-se necessária na medida em que se busca segurança jurídica no sistema penal, impondo-se aos Tribunais a adoção de diferentes modelos, porém necessários para a harmonia do sistema trifásico25.

A doutrina é unânime ao afirmar que a fixação da pena fica ao prudente arbítrio do julgador. Entretanto, não se pode olvidar que existem parâmetros a serem observados pelo julgador e, portanto, não se trata de apreciação subjetiva pura e simples, embora se admita certa dose de discricionariedade26. A utilização de fórmulas matemáticas como parâmetro para a elevação da pena tem por objetivo dar a indispensável transparência ao magistrado e convencer a acusação e a defesa de sua correta dosagem na fixação da pena27.

Guilherme de Souza Nucci propõe que a culpabilidade, como forma de apuração do grau de culpa do agente que é, seja vista como gênero do qual emanam as demais circunstâncias enumeradas no art. 59. do CP28. E vai mais além, aduz que pelo exame do complexo de normas penais (Código Penal e legislação especial) e dos institutos por elas regradas, o legislador concentrou sua preocupação com os aspectos da personalidade, antecedentes e os motivos, razão pela qual o autor atribui peso maior (peso 2) para estas três circunstâncias como critério de fixação da pena-base, enquanto as demais circunstâncias previstas recebem peso inferior (peso 1)29.

Desse modo, os pontos favoráveis ao acusado são considerados positivos ou neutros, todavia, o positivo tem o condão de anular um ponto negativo (como forma de compensação), enquanto o neutro apenas deixa de contribuir para a formação da culpabilidade e, por conseguinte, para a elevação da pena-base30.

No sistema de pesos proposto por Nucci, as sete circunstâncias avaliadas para apurar o grau de culpa (culpabilidade) perfazem o total de 10 pontos e caso todos os pontos fossem desfavoráveis ao sentenciado a pena-base deverá ser fixada no máximo da pena em abstrato, sem prejuízo de uma avaliação mais sensível por parte do julgador, posto que não se trata de um procedimento meramente aritmético31.

Logo, no modelo proposto por Nucci, a personalidade, os antecedentes e os motivos seriam capazes de exasperar a pena-base em 1/5 sobre o intervalo da pena abstrato para cada uma dessas três circunstâncias quando valoradas negativamente ao réu, enquanto as demais circunstâncias elevariam a pena em 1/10, apenas, para cada uma delas valoradas negativamente.

Mesquita Júnior, sem se apegar ao sistema de pesos proposto por Nucci, também assevera que a personalidade, os antecedentes e os motivos preponderam sobre as demais, pois, no seu entendimento, o próprio Código Penal no art. 6732 estabelece que existem circunstâncias mais relevantes do que outras, embora sem grande amparo lógico, reconhece o autor33.

Contudo, os Tribunais Superiores, assim como o TJDFT, passaram a tratar com absoluta igualdade todas as circunstâncias judiciais enumeradas no estatuto repressivo, conferindo-se a elas o mesmo grau de importância34, pois, nas vezes em que o legislador quis atribuir grau de preponderância entre elas assim o fez expressamente, a exemplo da Lei de Drogas (art. 42, da Lei nº 11.343/2006)35.

Para Schmitt, é esse tratamento legislativo igualitário entre as oito circunstâncias enumeradas no art. 59. do CP que conduziu a jurisprudência a definir o quantitativo ideal de exasperação da pena-base em 1/8 para cada circunstância judicial valorada negativamente36. Nesse sentido, vejam-se os seguintes julgados:

PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. CORRUPÇÃO DE MENOR. DOSIMETRIA. CONSEQUÊNCIAS DO CRIME. INCREMENTO DA PENA-BASE EM FRAÇÃO SUPERIOR A 1/8. POSSIBILIDADE. REGIME PRISIONAL FECHADO. PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. CIRCUNSTÂNCIA JUDICIAL DESFAVORÁVEL. PENA SUPERIOR A 4 E INFERIOR A 8 ANOS DE RECLUSÃO. INTELIGÊNCIA DO ART. 33, §3º, DO CÓDIGO PENAL. INEXISTÊNCIA DE FLAGRANTE ILEGALIDADE. WRIT NÃO CONHECIDO. (...) 3. Diante do silêncio do legislador, a jurisprudência passou a reconhecer como critério ideal para individualização da pena na primeira etapa do procedimento dosimétrico o aumento na fração de 1/8 a cada circunstância judicial negativamente valorada, a incidir sobre o intervalo de pena abstratamente estabelecido no preceito secundário do tipo penal incriminador, sendo facultado ao julgador, desde que mediante fundamentação idônea, estabelecer quantum superior. Precedentes deste Superior Tribunal de Justiça. (...) 7. Writ não conhecido.

(HC 422.824/RJ, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 27/02/2018, DJe 05/03/2018);

PENAL E PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. VIAS DE FATO. DOSIMETRIA. QUANTUM DE AUMENTO NA 1ª FASE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO PARCIALMENTE. 1. A jurisprudência consolidou entendimento de ser um critério razoável para o cálculo da pena-base a modulação em 1/8 (um oitavo) para cada circunstância judicial, aplicado sobre o resultado obtido da diferença entre a pena máxima e mínima cominadas ao crime. Não se cuida de preceito absoluto, mas de parâmetro para a dosimetria da primeira fase da pena. (...).

(Acórdão n.1193030, 20180510019190APR, Relator: CARLOS PIRES SOARES NETO 1ª TURMA CRIMINAL, Data de Julgamento: 08/08/2019, Publicado no DJE: 20/08/2019. Pág. 109. - 123). (Grifou-se)

Apesar de existir esse patamar ideal para valoração das circunstâncias judiciais, que se revela mutável (relativo), a doutrina de Schmitt propõe que o julgador incida esse quantitativo sobre o intervalo da pena em abstrato ou, ainda, sobre a pena mínima em abstrato, a critério do julgador37. Isso porque, no sistema trifásico de aplicação da pena, é necessário que se respeite a hierarquia das fases, pois os elementos que integram a fase seguinte sempre terão um patamar mais elevado que a fase anterior. Significa dizer que os elementos que compõem a pena-base não poderão ter um patamar de valoração superior aos elementos que compõem as circunstâncias legais (atenuantes e agravantes) que, por sua vez, não terão um patamar que seja superior aos elementos que compõem as causas de aumento e de diminuição38.

Segundo o autor supramencionado, o objetivo de definir um critério ideal para a fixação da pena-base é para que seja respeitada a hierarquia das fases, não permitindo-se, com isso, diante do caso concreto, que uma circunstância judicial tenha um patamar de elevação superior à de uma circunstância legal, uma vez que há delitos com intervalo de pena em abstrato bastante reduzido e outros com o intervalo de pena bastante amplo que podem resultar em violação do sistema hierárquico, a depender se o patamar de 1/8 incide sobre a pena mínima ou se sobre o intervalo da pena em abstrato39.

Não obstante, ainda que o critério adotado pelos tribunais respeite a hierarquia das fases, exasperar a pena em 1/8 sofre algumas críticas por parte da doutrina. Isso em razão da impossibilidade de utilização da última circunstância elencada no art. 59, do CP (comportamento da vítima) para exasperar a pena-base e, por isso mesmo, deve ser taxada como neutra ou, quando muito, como causa de redução da pena-base se a vítima contribuir para a ocorrência do crime40.

Daí surgem diversas correntes doutrinárias. Há aqueles que propõem, na impossibilidade de avaliar o comportamento da vítima em desfavor do réu, que o cômputo a ser atribuído a esta circunstância devesse ser utilizado para elevar o patamar atribuído às circunstâncias ditas como preponderantes, em analogia ao art. 67. do estatuto repressivo. Dentre eles, estão Nucci41 e Damásio Evangelista de Jesus42.

Outros, no entanto, adotam o critério de 1/7 para cada circunstância judicial valorada negativamente, pois não mais existiriam oito circunstâncias judiciais passíveis de influenciar o sistema dosimétrico, mas somente sete, o que conduziria na necessidade de abandonar o critério ideal de 1/8, como lembrado por Schmitt em sua doutrina43 e também pela jurisprudência, in verbis.

APELAÇÃO CRIMINAL - LATROCÍNIO TENTADO - ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS - IMPOSSIBILIDADE - MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS - ATIPICIDADE DA CONDUTA - DOLO EVIDENCIADO - PALAVRA DA VÍTIMA - RELEVO - CRIMES PATRIMONIAIS - DOSIMETRIA - PRIMEIRA FASE - PENA DE MULTA - RAZOABILIDADE - SENTENÇA MANTIDA. (...). 4. Não existe critério matemático definido para a fixação da pena-base, sendo aceito, pela jurisprudência, como razoável, a aplicação tanto da fração de 1/6 (um sexto) sobre a pena mínima para cada circunstância desfavorável, como a aplicação das frações de 1/7 (um sétimo) ou 1/8 (um oitavo) sobre o intervalo entre a pena mínima e a pena máxima abstratamente previstas para o delito sob julgamento. (...). 6. Recurso conhecido e desprovido.

(Acórdão 1188681, 20180110226343APR, Relator: J.J. COSTA CARVALHO, Revisor: GEORGE LOPES, 1ª TURMA CRIMINAL, data de julgamento: 25/7/2019, publicado no DJE: 31/7/2019. Pág.: 116-123). (Grifou-se)

Schmitt, por outro lado, embora admita que na prática são sete as circunstâncias que possam ser valoradas como desfavoráveis ao réu, pondera que isso não significa que o comportamento da vítima não possa ser analisado pelo julgador. Aliás, para Schmitt, o julgador deve analisar normalmente esta última circunstância judicial, não cabendo o questionamento de que a partir da definição do critério ideal para a dosimetria da pena-base em 1/8 impossibilitaria na fixação da pena-base no máximo da pena prevista em abstrato, diante da impossibilidade de valoração de uma delas44.

Isto porque não há um critério absoluto ou rígido, mas sim um sistema de indeterminação relativa, como conceitua o autor, que permite ao juiz sentenciante estabelecer um patamar superior e, até mesmo, inferior ao reputado como ideal, todas as vezes em que o caso concreto assim justificar a adoção de tal medida45.

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Mesquita Júnior, por sua vez, assevera que o comportamento da vítima deve funcionar por via inversa, eis que todas as demais circunstâncias judiciais provocam certa exasperação, se desfavoráveis. Caso a vítima não tenha contribuído para o delito, considera-se normal (neutra), mas se ela contribuiu, o julgador deverá considera-la para atenuar a pena na segunda fase da dosimetria (CP, art. 65, inciso III, alínea “c”) ou como causa de diminuição de pena, se prevista em lei46. Não obstante a sua análise, o referido autor pactua com a lição de Carvalho Neto47 que não vê razão lógica para que o comportamento da vítima seja considerado circunstância neutra ou, se muito, favorável ao réu, pois quando o julgador utiliza a pena mínima como ponto de partida para a fixação da pena-base, já considerou que a vítima contribuiu para o delito, ou seja, favorável ao réu48.

Apesar da celeuma doutrinária, a jurisprudência é firme no sentido de que o comportamento da vítima não poderá elevar a pena-base, assim como a doutrina tende a sustentar o patamar ideal em 1/8 ainda que o comportamento da vítima não possa ser valorado em desfavor do réu na primeira fase dosimétrica.

Isto porque o que deverá nortear a possibilidade de alteração do quantitativo ideal é a concretude do fato, a gravidade em concreto do delito e as reais condições pessoais do sentenciado. No entanto, a valoração em patamar superior àquele tido como ideal deverá ser explicitada pormenorizadamente pelo julgador e aplicada durante o processo de dosimetria da pena-base, até o patamar de 1/649.

Nesse aspecto, a doutrina majoritariamente vem entendendo que as circunstâncias judiciais não podem ser hipervalorizadas a ponto de seu patamar ultrapassar a 1/650. Há também aqueles que igualmente entendem que não poderiam ser subvalorizadas, aplicando-as em quantitativo aquém de 1/1051.

Schmitt, porém, sustenta que não existe na jurisprudência valor mínimo estipulado para valoração das circunstâncias judiciais, podendo o juiz sentenciante valorá-la bem abaixo do patamar ideal, desde que o faça motivadamente. Todavia, o julgador não poderá deixar de valorar quando presente circunstância desfavorável, sendo obrigado, portanto, a exasperar a pena-base mesmo que em grau mínimo, se justificável assim o for, a depender do caso concreto52.

Nesse caso, o quantitativo máximo de 1/6 para cada circunstância judicial advém por dois aspectos. Primeiro, porque decorre da discricionariedade conferida ao julgador para a fixação da pena-base, não podendo o julgador ser tolhido de estabelecer um critério diferenciado quando houver elementos concretos relacionados ao fato delituoso ou ao agente que justifiquem a necessidade de um acréscimo maior da pena53.

E segundo, porque a observância da hierarquia das fases não permite que o valor de acréscimo a ser atribuído a uma circunstância judicial possa superar o valor a ser atribuído a uma circunstância agravante, pois a jurisprudência já fixou o patamar ideal de elevação em 1/6 para segunda etapa da dosimetria, sendo este, portanto, o patamar máximo a ser alcançado por uma circunstância judicial negativa54.

Portanto, podem receber o patamar de 1/6 quaisquer circunstâncias judiciais que o julgador considere necessário para valorá-la em patamar superior ao tido como o ideal (fração de 1/8), assim como aquelas circunstâncias judiciais que a lei reputa como preponderantes sobre as demais circunstâncias enumeradas no art. 59, do CP, a exemplo da Lei de Drogas. Isto porque uma circunstância judicial preponderante não poderá receber o mesmo tratamento dispensado às demais55.

No entanto, Schmitt alerta que o julgador não poderá aplicar um patamar superior às circunstâncias judiciais, ainda que preponderantes, ao patamar que será aplicado posteriormente na segunda fase de dosimetria pela valoração de uma eventual circunstância agravante ou atenuante, pois o seu caráter de preponderância é apenas em relação às demais previstas no art. 59, do CP que não foram classificadas como preponderantes pelo legislador56.

Sobre o autor
Rony Roberto José Martins

Bacharel em Direito pela Universidade do Distrito Federal (UDF) - 2019. Advogado, OAB / DF 65.763, especialista em dosimetria da pena.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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