Dosimetria da pena: critérios para a fixação da pena privativa de liberdade e a desproporcionalidade na aplicação da pena

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15/06/2020 às 20:43
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5. DO CONCURSO ENTRE CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS FAVORÁVEIS E DESFAVORÁVEIS

As circunstâncias judiciais podem, motivadamente, restar classificadas individualmente como favorável ao agente, desfavorável ao agente, ou ainda como neutra, em caso de impossibilidade de sua valoração no caso concreto57. Nessa lógica, nenhuma circunstância judicial se presume favorável ao agente. Se ausentes elementos concretos à sua valoração, esta deverá ser encarada como neutra58.

Nesse aspecto, a doutrina ainda debate se há a possibilidade de compensação entre as circunstâncias judiciais para a fixação da pena-base.

Para Schmitt, essa possibilidade é inconcebível, pois a pena-base somente poderá ser exasperada do mínimo legal a partir da existência de circunstâncias judiciais que sejam reconhecidas e valoradas como desfavoráveis ao agente. Portanto, para o autor, é a quantidade de circunstâncias judiciais desfavoráveis que irá dimensionar o quantum a ser acrescido na pena59.

Nesse sentido, para que o sentenciado tenha direito à fixação da pena-base no mínimo legal, não poderá ter contra si circunstância judicial desfavorável. Do contrário, caso concorra somente circunstâncias favoráveis e/ou neutras, o sentenciado fará jus à fixação da pena-base no mínimo legal, pois, somente nessas hipóteses, é que o julgador não terá elementos concretos para justificar o eventual acréscimo de pena60.

Portanto, bastará a existência de uma única circunstância judicial valorada negativamente pelo julgador para que a pena-base seja afastada do mínimo legal em abstrato. Com isso, quanto maior a quantidade de circunstâncias judiciais negativas ao agente, maior será o acréscimo de pena61.

Schmitt alerta que caso não fosse este o raciocínio, estar-se-ia afirmando que bastaria ao condenado possuir quatro circunstâncias judiciais favoráveis entre as oito existentes para que a pena-base fosse fixada no mínimo legal. Para o autor, as circunstâncias avaliadas como favoráveis ou neutras ao agente apenas limitam a atividade do julgador, autorizando a fixação da pena-base no mínimo legal. Contudo, para que a pena seja afastada do mínimo legal, exige-se do julgador motivação idônea, baseada em elementos concretos presentes aos autos62.

Em outro giro, Nucci argumenta que na primeira e segunda etapa da fixação da pena, o julgador pode valer-se da compensação. Nesse aspecto, nada impediria que a valoração negativa da motivação do crime fosse anulada pelos bons antecedentes do réu (exemplo citado pelo autor), assim como é possível que uma agravante se dissolva pela presença de uma atenuante63.

Entretanto, por ser adepto do método de pesos para a fixação da pena-base, Nucci alude que a personalidade negativa do réu, por exemplo, com peso 2, somente poderia ser anulada, caso existissem dois componentes com peso 1 favoráveis ao sentenciado64.

Quando, porém, não houver prova suficiente nos autos apta a embasar a formação do convencimento do magistrado em relação à existência de qualquer das circunstâncias judiciais (CP, art. 59), estas não poderão ser consideradas para a exasperação da pena, logo, seu peso é zero ou neutro. Ou seja, não se computa para efeito algum na dosagem da pena-base. Nesse sentido, o ponto positivo tem o condão de anular um ponto negativo, enquanto o neutro apenas deixa de contribuir para a formação do grau de sua culpa65.

Vale lembrar, conforme já debatido em linhas pretéritas e também como previne Nucci no seu raciocínio, não se pode considerar a individualização da pena somente como um procedimento meramente aritmético, pois o julgador deve ter a sensibilidade de avaliar o grau de preponderância de determinado elemento do art. 59. do CP. Por isso, embora o autor tenha sustentado que a personalidade possui o peso 2, nada impediria que, no caso concreto, inúmeras facetas negativas da personalidade do agente devidamente evidenciadas no processo impliquem em um aumento de pena maior do que o parâmetro sugerido66.

Rogério Sanches Cunha, por sua vez, aduz que ocorrendo o concurso entre circunstâncias judiciais favoráveis e desfavoráveis, poderia o julgador invocar o art. 67, do CP67, desde que essa análise favoreça o réu, pois se o prejudicar, estar-se-ia diante de uma analogia in malam partem, em clara violação ao princípio da legalidade68.

Embora o art. 67, do CP não trate do concurso entre as circunstâncias judiciais (CP, art. 59), Damásio de Jesus entende que os mesmos princípios podem ser aplicados na primeira fase69. Todavia, não existe na legislação qualquer indicativo de que haja preponderância das circunstâncias judiciais umas sobre as outras, tal como ocorre no concurso de circunstâncias legais (CP, art. 67)70. Tal posicionamento doutrinário mostra-se isolado à luz da jurisprudência.

Nesse aspecto, apesar da insistência de parte da doutrina, os Tribunais Superiores entendem que tal compensação seria impossível, vez que basta uma única circunstância desfavorável para que a pena-base seja afastada do mínimo legal. In verbis:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ART. 1º, I, DO DECRETO-LEI N° 201/67 E ART. 89. DA LEI N° 8.666/93. OFENSA AO ART. 619. DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. AUSÊNCIA DE OMISSÃO. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO. ART. 386, VII, DO CPP. DOSIMETRIA. FUNDAMENTAÇÃO CONCRETA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 7. DO STJ. COMPENSAÇÃO ENTRE CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO NÃO PROVIDO. (...). 4. Não é demais mencionar, ainda, que não é possível haver compensação entre as circunstâncias judiciais do art. 59. do Código Penal, na medida em que as circunstâncias favoráveis ou neutras apenas impedem o acréscimo da pena-base de seu grau mínimo, mas não anulam outra já considerada desfavorável. Assim, um único vetor desfavorável, já autoriza o acréscimo da pena-base, desde que de feito forma razoável, como no caso. 5. Agravo regimental não provido.

(AgRg no AREsp 1404788/RS, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 26/02/2019, DJe 06/03/2019). (Grifou-se)

Neste diapasão, a doutrina e a jurisprudência entendem que a correta fixação da pena-base se dá após e de acordo com o exame das oito circunstâncias judiciais, levando-se em conta somente as que forem desfavoráveis ao réu. As circunstâncias favoráveis já o beneficiariam, na medida em que não podem elevar a pena, razão pela qual é inaceitável cogitar uma possível compensação entre as favoráveis e as desfavoráveis, porquanto poderá acarretar em grave distorção, no sentido de se atender o binômio da necessidade e suficiência da reprimenda71.

Logo, a função das circunstâncias judiciais é de elevação da pena, sendo evidente que visam a esse objetivo tão-somente as desfavoráveis, efetivando o princípio da individualização da pena, na medida de sua culpabilidade (CP, art. 29)72.

Não obstante, a jurisprudência vem entendendo que o comportamento da vítima é circunstância neutra ou favorável, não sendo admitida a possibilidade de valoração negativa ao agente quando a vítima em nada contribuir para o fato delituoso, conforme já delineado em tópico próprio. Portanto, o comportamento da vítima, quando valorado favoravelmente ao réu, torna-se a única exceção admitida no que se refere à compensação com alguma das outras sete circunstâncias previstas no art. 59. do Código Penal. Nesse sentido já decidiu o eg. STJ no AgRg no REsp 1706409/SC, Rel. Min. Felix Fisher, 5ª Turma, julgado em 06.02.2018, DJe 16.02.2018.


6. A PENA-BASE COMO PARÂMETRO PARA A FIXAÇÃO DA PENA PROVISÓRIA E SEUS REFLEXOS PARA A HIERARQUIA DAS FASES

O sistema trifásico de fixação da pena exige do julgador a observância de três princípios básicos: a individualização da pena; a hierarquia das fases; e a proporcionalidade. Por isso mesmo o julgador deve estar atento aos parâmetros norteadores que a doutrina e a jurisprudência vem traçando ao longo dos anos, desde a reforma da parte geral do Código Penal em 1984.

No entanto, verifica-se que o sistema penal, para a individualização da pena, em suas inúmeras facetas, pode apresentar certas distorções e desproporcionalidades mesmo quando são adotados os critérios sugeridos pela doutrina e jurisprudência. O presente estudo poderia apontar várias outras situações que criam distorções na individualização da pena. Contudo, para que o presente estudo seja instrumento de reflexão para a dogmática, foi eleito o trato da fixação da pena de réu multirreincidente73.

Essa distorção na individualização da pena costuma ocorrer quando o julgador conclui a análise da primeira fase e passa a avaliar as demais fases da dosimetria da pena. Isto porque uma avaliação malfeita na primeira fase pode prejudicar a avaliação da fase posterior e, por conseguinte, violar um ou outro princípio basilar da dosimetria citados alhures.

Para ilustrar a problemática, imagine que o réu A, quando condenado pelo crime de roubo simples (CP, art. 157. – pena de 4 anos a 10 anos de reclusão e multa), possua duas condenações transitadas em julgado aptas a serem valoradas como reincidência na segunda fase dosimétrica e não tenha ao seu desfavor qualquer circunstância judicial prevista no art. 59. do CP. Na primeira fase a pena-base deve ser fixada no mínimo legal, ou seja, em 4 anos. Na segunda fase, presente a agravante da reincidência (multirreincidência), a pena-base anteriormente fixada em 4 anos deve agora ser agravada em patamar superior ao tido como ideal para a fixação da pena provisória, ou seja, em fração maior que 1/6 sobre a pena-base74. Caso o julgador opte por valorar duplamente a sua reincidência (multirreincidência), a pena provisória seria fixada em 5 anos e 6 meses. Na terceira fase, ausentes causas de aumento e de diminuição, a pena anteriormente fixada tornar-se definitiva em 5 anos e 6 meses de reclusão.

Agora, imagine que o réu B tenha praticado o crime de roubo simples (CP, art. 157), também possuindo duas condenações transitadas em julgado aptas a valorar a reincidência e não possua circunstâncias judiciais desfavoráveis. Nesse caso, é possível que o julgador, ao verificar a multirreincidência do réu (duas condenações transitadas em julgado anteriores ao tempo do novo fato delituoso), opte por utilizar uma das condenações para valorar negativamente os antecedentes do réu na primeira fase dosimétrica. Com isso, na primeira etapa dosimétrica, a pena-base deste réu será fixada em 4 anos e 9 meses, adotando-se, por exemplo, o critério de 1/8 para cada circunstância judicial valorada negativamente. Na segunda fase, presente a agravante da reincidência, a pena provisória deve ser exasperada em 1/6 sobre a pena-base em concreto, sendo agravada em 9 meses e 15 dias, ou seja, a pena provisória será fixada em 5 anos, 6 meses e 15 dias. Na terceira fase, ausentes causas de aumento e de diminuição a pena, torna-se definitiva em 5 anos, 6 meses e 15 dias de reclusão.

Neste último exemplo, a utilização dos parâmetros para fixação da pena obedeceu ao princípio da hierarquia das fases, pois o patamar de valoração da primeira fase (1/8) é menor do que o patamar atribuído na segunda fase da dosimetria (1/6), assim como a utilização de tais patamares resultaram na exasperação da pena em 9 meses na primeira etapa e em 9 meses e 15 dias na etapa posterior.

No entanto, deve-se ressalvar que no segundo exemplo as operações feitas pelo julgador resultaram em uma pena definitiva maior do que as operações realizadas no primeiro exemplo o que viola o princípio da proporcionalidade. Isto porque o réu A, que possui duas anotações, ambas valoradas na reincidência, obteve pena menor do que a do réu B que, por sua vez, possui duas anotações também aptas a valorarem a reincidência. Porém, teve uma delas utilizada para valorar os antecedentes (primeira etapa) e a outra para a reincidência (segunda etapa).

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Cabe ressaltar que para a doutrina e a jurisprudência, caso haja duas condenações com trânsito em julgado, ainda que aptas para valorar a reincidência, é lícito ao julgador valorar uma delas como antecedente criminal (primeira etapa), mantendo-se a outra para valorar a agravante da reincidência (segunda etapa). Para os Tribunais e para a doutrina esta operação não violaria o princípio do non bis in idem 75, visto o afastamento da incidência do enunciado de Súmula 241 do eg. Superior Tribunal de Justiça76. Veja-se um julgado como referência:

APELAÇÃO CRIMINAL. RECEPTAÇÃO. ABSOLVIÇÃO. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. CONJUNTO PROBATÓRIO COESO. VERSÃO DO RÉU ISOLADA. DOLO. COMPROVAÇÃO. DOSIMETRIA DA PENA. ANTECEDENTES CRIMINAIS. ELEVAÇÃO DA PENA-BASE. PROPORCIONALIDADE. DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE. IMPOSSIBILIDADE. DESPROVIMENTO. (...). III - Quando o réu possui várias condenações com trânsito em julgado, é permitido ao julgador utilizar uma ou algumas delas para valoração negativa dos antecedentes, da conduta social e da personalidade, na primeira fase da dosimetria, e outra para reincidência, na segunda fase. (...). VI - Recursos conhecidos e desprovidos.

(Acórdão 1167157, 20180410012804APR, Relator: NILSONI DE FREITAS CUSTODIO, Revisor: JESUINO RISSATO, 3ª TURMA CRIMINAL, data de julgamento: 25/4/2019, publicado no DJE: 2/5/2019. Pág.: 182/191)

Destarte, apesar de não configurar bis in idem, é patente a afronta ao princípio da proporcionalidade e também ao princípio da hierarquia das fases quando as operações da dosimetria, feitas pelo julgador, resultarem em uma pena menor para um réu multirreincidente em relação àquele que possui duas anotações, porém, uma delas sendo utilizada para reconhecer reincidência (na segunda etapa) e a outra anotação para valorar negativamente os antecedentes (na primeira etapa), como explicitado nos exemplos acima remetidos.

Obviamente, ser multirreincidente (ter duas anotações criminais duplamente valoradas na segunda etapa) é mais gravoso do que ter uma das anotações avaliadas na primeira etapa da dosimetria como mau antecedente, dado o caráter subsidiário desta última frente àquela, já que a reincidência, para fins de dosimetria, se revela em um plus de reprovação da conduta do sentenciado, como bem diz Schmitt77.

Seria uma incoerência do sistema dosimétrico se uma variante resultar em uma pena maior caso seja deslocada para uma fase anterior daquela em poderia ser reconhecida e valorada, a exemplo disso, é o caso da reincidência e os antecedentes penais do réu.

Nessa lógica, os Tribunais já começaram a debater a situação em análise criando alternativas para o caso. Colaciona-se, por exemplo, o seguinte julgado da c. 3ª Turma Criminal do eg. TJDFT que debateu o tema, embora em circunstâncias próprias da hipótese em concreto. In verbis:

APELAÇÃO CRIMINAL. ROUBO CIRCUNSTANCIADO PELO CONCURSO DE PESSOAS. RECEPTAÇÃO. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. ABSOLVIÇÃO INCABÍVEL. PRODUTO DO CRIME EM PODER DO APELANTE. DEPOIMENTO DA VÍTIMA CORROBORADO POR OUTROS ELEMENTOS DE PROVA. DOSIMETRIA DA PENA. AGRAVANTE DA REINCIDÊNCIA. PATAMAR DE AUMENTO READEQUADO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (...). 3. Na segunda fase da dosimetria da pena, o agravamento da pena por uma circunstância legal agravante, em regra, é estabelecido em 1/6 (um sexto), patamar amplamente adotado pela jurisprudência, salvo se demonstrada a necessidade de uma reprimenda superior, a exemplo do que ocorre com a multirreincidência, conforme entendimento que tem sido sufragado pelo Superior Tribunal de Justiça. Inexistindo fundamentação concreta para uma maior quantidade de pena, procede-se à sua readequação. 4. Em face do sistema hierárquico da dosimetria da pena, não se pode conferir a uma circunstância agravante peso inferior ao que seria cabível por uma circunstância judicial, sob pena de se ter para uma situação mais grave do reincidente uma pena mais branda do que a que seria cabível para o portador de maus antecedentes. Não se pode conceber que seja melhor ao réu ser reincidente do que ter maus antecedentes. Pena readequada para que o acréscimo na segunda fase da dosimetria guarde, no mínimo, proporcionalidade com a quantidade de pena que seria acrescida na fase antecedente. 5. Recurso parcialmente provido.

(Acórdão 1177243, 20170610087813APR, Relator: DEMETRIUS GOMES CAVALCANTI, Revisor: NILSONI DE FREITAS CUSTODIO, 3ª TURMA CRIMINAL, data de julgamento: 23/5/2019, publicado no DJE: 13/6/2019. Pág.: 154/173)

No julgado em apreço, apesar de não se tratar de réu multirreincidente e sim de réu reincidente, a c. Turma preferiu afastar a incidência pura e simples da fração de 1/6 sobre a pena-base (fixada no mínimo legal de 4 anos), o que resultaria em 8 meses de agravamento da pena pela reincidência.

Isto porque, no entendimento do colegiado, o agravamento da pena em 8 meses não se mostraria adequado para a hipótese, pois caso essa anotação fosse utilizada para exasperar a pena-base como antecedentes penais, a pena seria exasperada em 9 meses, aplicando-se o critério de 1/8 sobre a pena em abstrato do crime de roubo (CP, art. 157), ou seja, em quantidade maior do que seria obtido na etapa seguinte, aplicando-se a fração de 1/6 sobre a pena-base em concreto que fora fixada no mínimo legal de 4 anos. Por essa razão, no referido julgado a pena provisória foi agravada em 9 meses para que este quantitativo fosse equiparado ao que seria obtido na primeira etapa.

Todavia, esta solução dada pela c. 3ª Turma Criminal não encontra conformidade na doutrina especializada. Schmitt ensina que quando houver a possibilidade de valoração de um vetor como circunstância judicial ou como circunstância agravante ou atenuante e o julgador optar por valorá-la na primeira etapa, a pena-base resultante não poderá ser superior ao resultado que se obteria em um cenário em que essa valoração fosse postergada na segunda fase, que é hierarquicamente superior à primeira fase78.

Com isso, para o caso supra referido não seria lícito exasperar a pena-base em 9 meses tampouco poderia o julgador equiparar o resultado dessa operação com aquele que seria obtido na etapa imediatamente anterior, conforme o entendimento supra referido de Schmitt.

Ainda nessa discussão, para corrigir a distorção retro apresentada outra solução encontrou a c. 1ª Turma Criminal do eg. TJDFT. Na segunda etapa dosimétrica, ao invés de aplicar a fração de 1/6 sobre a pena-base em concreto, o colegiado preferiu aplicar a fração de 1/6 novamente sobre o intervalo da pena abstratamente cominada para o tipo penal, a exemplo do que é permitido para a fixação da pena-base. In verbis:

PENAL E PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. ROUBO. DOSIMETRIA DA PENA. CULPABILIDADE. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. AUMENTO DE UM OITAVO. REINCIDÊNCIA. BIS IN IDEM. NÃO CONFIGURADO. SEGUNDA FASE. FRAÇÃO DE 1/6 (UM SEXTO). TERMO MÉDIO DA PENA. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (...). 2. O entendimento jurisprudencial considera como critério razoável, para o cálculo da pena-base, a modulação em 1/8 (um oitavo) para cada circunstância judicial, aplicado sobre o resultado obtido da diferença entre a pena máxima e mínima cominadas ao crime. Precedentes do STJ e da Câmara Criminal. 3. No caso, na segunda fase da dosimetria penalógica, a agravante da reincidência deve justificar a exasperação da pena em 1/6 (um sexto) sobre a diferença entre os patamares máximos e mínimos da pena abstratamente estipulada para o tipo penal, em total observância ao sistema hierárquico e trifásico do cálculo da pena, em que as fases seguintes ostentam peso superior à etapa imediatamente anterior. 4. Recurso conhecido e parcialmente provido. Pena reduzida.

(Acórdão n. 1192162, 20171410003012APR, Relator: CARLOS PIRES SOARES NETO, Revisor: GEORGE LOPES, 1ª TURMA CRIMINAL, Data de Julgamento: 25/07/2019, Publicado no DJE: 15/08/2019. Pág.: 402 - 419);

PENAL E PROCESSO PENAL. APELAÇÃO. ROUBO MAJORADO. EMPREGO DE ARMA. CAUSA DE AUMENTO EFETIVAMENTE COMPROVADA. FORMA DE CÁLCULO DA PENA INTERMEDIÁRIA. REGIME PRISIONAL. PLURALIDADE DE CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS FAVORÁVEIS. FIXAÇÃO DO REGIME SEMIABERTO. POSSIBILIDADE. (...). 2. As agravantes e as atenuantes não devem incidir indiscriminadamente sobre a pena-base, mas sobre o que for maior entre pena-base e intervalo de pena em abstrato previsto para o crime. Precedentes do STJ. (...). 4. Recursos conhecidos e não providos. Reforma, de ofício, para diminuir a pena fixada em sentença.

(Acórdão 1183921, 20181610022100APR, Relator: CRUZ MACEDO, Revisor: J.J. COSTA CARVALHO, 1ª TURMA CRIMINAL, data de julgamento: 4/7/2019, publicado no DJE: 10/7/2019. Pág.: 79-92). (Grifou-se)

A possibilidade de aplicar a fração ideal de 1/6 sobre o intervalo da pena na segunda etapa de dosimetria vem sendo autorizada pelo eg. STJ, sobretudo quando há vetores que possam ser valorados em diferentes fases da dosimetria, como acontece entre a reincidência e os antecedentes criminais, por exemplo. Contudo, essa operação somente é permitida quando a pena-base em concreto for inferior ao termo médio do tipo penal incriminador. Do contrário, caso a pena-base seja igual ou superior ao termo médio a pena provisória ou intermediária deverá necessariamente fixada a partir da pena-base em concreto. In litteris:

PENAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. EVASÃO DE DIVISAS. DESCAMINHO. FALSIDADE IDEOLÓGICA. QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO. (...) DOSIMETRIA. AUMENTO NA SEGUNDA FASE. PROPORCIONALIDADE. PENA-BASE. CONSEQUÊNCIAS DO CRIME. VALOR EVADIDO. EXASPERAÇÃO. VALIDADE. ART. 62, I E III, DO CÓDIGO PENAL. FRAÇÃO DE AUMENTO. RAZOABILIDADE. (...) 11. O patamar utilizado na segunda fase foi de, aproximadamente, 1/8 para cada agravante, inferior, portanto, ao coeficiente de 1/6 aceito como razoável e proporcional pela jurisprudência deste Tribunal Superior, bem como do Supremo Tribunal Federal. Não é muito lembrar, inclusive, que a fração eleita pode ter como base o intervalo da pena abstratamente cominada, em vez da pena-base concretamente aplicada, dada a possibilidade de o patamar aplicado na segunda fase suplantar o da primeira (art. 59. do Código Penal), nos termos do sistema trifásico de dosimetria da pena, estabelecido no art. 68. do Código Penal. (...) 14. Embargos de declaração rejeitados.

(EDcl no REsp 1497041/PR, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 10/03/2016, DJe 17/03/2016);

PROCESSUAL PENAL E PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. DOSIMETRIA. DISCRICIONARIEDADE RELATIVA. (...) TRÊS AGRAVANTES VALORÁVEIS. INCIDÊNCIA SOBRE O INTERVALO DE PENA ABSTRATA DO PRECEITO SECUNDÁRIO. CONFORMIDADE COM O SISTEMA HIERÁRQUICO DE DOSIMETRIA TRIFÁSICO. PENA INTERMEDIÁRIA DAS INSTÂNCIAS INFERIORES MAIS FAVORÁVEL. MANUTENÇÃO. OBEDIÊNCIA À REGRA NE BIS IN IDEM. WRIT NÃO CONHECIDO. (...). 5. Dentro do sistema hierárquico da dosimetria da pena, consagrado pela forma trifásica, as agravantes são circunstâncias de gravidade intermediária, haja vista sua subsidiariedade em relação às qualificadoras e causas de aumento, preponderando apenas sobre as circunstâncias judiciais. Não é por outra razão que doutrina e jurisprudência consagraram o parâmetro indicativo mínimo de valoração de cada agravante em 1/6 (um sexto), porquanto corresponde ao menor valor fixado pelo legislador para as causas de aumento, que são preponderantes àquelas e superior ao parâmetro de 1/8 (um oitavo) das circunstâncias judiciais. Ressalta-se que a fração de 1/6 das agravantes não é um absoluta, sendo possível sua exasperação em patamar superior desde que seja fundada em circunstâncias concretas. 6. Conclui-se, pois, que, havendo circunstância judicial desfavorável cuja valoração é passível de ocorrer em etapas posteriores da dosimetria, porquanto prevista igualmente como agravante ou causa de aumento, mostrar-se-ia antissistêmico chegar, nas etapas seguintes, a acréscimos de pena inferiores àquele fixado por ocasião da pena-base. 7. Por essas razões, as agravantes ou atenuantes não necessariamente incidirão sobre a pena-base, somente ocorrendo se esta for maior ou igual ao intervalo de pena em abstrato do preceito secundário, caso contrário, malgrado haja pena concreta dosada, sob pena de as agravantes tornarem-se menos gravosas e as atuantes menos benéficas do que as meras circunstâncias judiciais da primeira etapa, o que subverteria o sistema hierárquico da dosimetria trifásica. Precedentes. (...) 9. Habeas corpus não conhecido.

(HC 311.852/RS, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 13/09/2016, DJe 20/09/2016). (Grifou-se)

Com a possibilidade de aplicar a fração de 1/6, ora sobre o intervalo da pena em abstrato, ora sobre a pena-base em concreto, tem-se que não mais existirá a desproporcionalidade analisada se comparada a pena de um sentenciado multirreincidente com aquele reincidente que teve uma das anotações valorada como antecedente criminal na primeira etapa.

A título de exemplo dessa operação, um réu multirreincidente que não tenha circunstâncias judiciais valoradas negativamente teria a pena definitivamente fixada em 6 anos em um crime de roubo (CP, art. 157), se ausentes causas de aumento e de diminuição de pena. Por sua vez, o reincidente que teve uma anotação utilizada para valorar negativamente os antecedentes, teria, nas mesmas condições, a pena definitivamente fixada em 5 anos e 9 meses. Portanto, corrigida estaria esta distorção, pois o multirreincidente receberia uma pena maior do que aquele reincidente com maus antecedentes.

Para o STJ essa orientação facilitaria o cálculo dosimétrico, pois o julgador agora usaria a mesma base de cálculo da pena (intervalo da pena em abstrato) para aplicar as frações tidas como ideais (1/8 para primeira etapa e 1/6 para a segunda etapa), evitando com isso, a violação aos princípios da hierarquia das fases e da proporcionalidade.

Não obstante, a doutrina ainda não reconhece como válida a referida orientação jurisprudencial. Isso porque, concluída a primeira etapa da dosimetria, na segunda etapa já se tem uma pena em concreto (pena-base) dosada pelo julgador que independe do quantitativo fixado na pena-base. Portanto, para a doutrina, é a pena-base em concreto que deverá sofrer as eventuais modificações que fizer jus nas etapas seguintes, razão pela qual é esse quantitativo que deve ser tomado pelo julgador como o único ponto de partida para estabelecer a pena provisória79. Raciocínio semelhante também são as lições de Sérgio Salomão Shecaira80 e Fernando Galvão81.

Shecaira, por seu turno, apesar não se referir expressamente quanto à reincidência e aos antecedentes criminais, ensina que sempre que uma circunstância for comum a mais de uma fase da dosimetria da pena, deverá esta ser utilizada pelo julgador uma única vez e na última fase que couber82. Com esse posicionamento de Shecaira, caso o réu ostente duas anotações, ambas aptas a valorarem a reincidência, deveria o julgador valorá-las na segunda etapa da dosimetria. Não poderia, contudo, aplicar uma delas para valorar os antecedentes do réu na primeira etapa penalógica, tal como permite a jurisprudência.

Aplicando-se este conceito de Shecaira, seria o mesmo que dizer que quando houver duas ou mais condenações transitadas em julgado ao tempo do novo fato criminoso, estas anotações devem ser utilizadas, necessariamente, para valorar a multirreincidência do réu.

Apesar da discricionariedade do julgador na avaliação das anotações criminais que o réu possua, ainda é amplamente aceito tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência que o julgador avalie o melhor momento em que a anotações penais serão valoradas, se na primeira ou na segunda etapa da dosimetria, ou ainda, se nas duas etapas concomitantemente, desde que não haja violação ao enunciado da Súmula 241 do STJ.

No entanto, para que seja evitado violação aos princípios da dosimetria, Schmitt ensina que além de estabelecer o patamar ideal para a fixação da pena-base o julgador deve, ainda, estabelecer onde este patamar irá incidir, se sobre o intervalo da pena em abstrato ou, ainda, se sobre a pena mínima abstratamente cominada83.

Este ensinamento de Schmitt não pode ser ignorado pelo julgador a ponto de que a pena-base seja sempre fixada aplicando-se a fração ideal de 1/8 (ou mesmo 1/6) sobre o intervalo da pena em abstrato. Portanto, o julgador deve analisar se é o caso de aplicar esse patamar sobre a pena mínima em abstrato, diante da indispensável necessidade de obediência a hierarquia das fases84.

Por final, é importante mencionar que tal distorção apresentada na dosimetria da pena igualmente ocorreria com a utilização de outros critérios para a fixação da pena-base, à exemplo da aplicação da fração de 1/6 sobre a pena mínima em abstrato. Com a utilização desse critério, ainda assim, o réu multirreincidente teria uma pena menor do que o réu reincidente possuidor de maus antecedentes.

Sobre o autor
Rony Roberto José Martins

Bacharel em Direito pela Universidade do Distrito Federal (UDF) - 2019. Advogado, OAB / DF 65.763, especialista em dosimetria da pena.

Informações sobre o texto

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