INTRODUÇÃO
A pandemia da Covid-19 tem desafiado de forma inédita, na atualidade, as autoridades públicas de diversos países, especialmente as brasileiras, com o intuito de conter o avanço do vírus. Dessa forma, as interfaces nada mais são do que a ligação de cunho físico, ou lógico, entre os elementos legais de entendimento da aplicação das normas no caso concreto.
De maneira que medidas das mais variadas espécies são criadas, tais como decretos e leis infraconstitucionais, a fim de evitar a numerosa perda de vidas, o esgotamento do sistema de saúde pública e a degradação da atividade econômica. Fronteiras são fechadas, determinações de isolamento, suspensão das mais diversas atividades são decretadas, cerceamento do direito de ir e vir da população, de revindicar, são interpostas.
A meta é o confinamento, o isolamento social, o afastamento do trabalho e das fontes de renda, em nome da contenção do novo coronavírus.
ALVES, RESQUE e NEVES (2019, p. 12) enaltecem a negativação ética e moral da defesa dos Direitos Fundamentais. Nesse sentido, tais direitos vivem uma espécie de crise discursiva e epistemológica. Uma crise que afeta a legitimação de normas e o desenvolvimento de uma práxis que vem ocorrendo de maneira a estigmatizar tais direitos e ameaçar não apenas sua narrativa, como até mesmo a vida e a integridade daqueles que ousam defendê-lo[1].
Diante da pandemia que assola o país, mostra-se salutar uma análise rápida sobre o sistema brasileiro de contenção de crises e as formas anômalas, pelas quais o Estado pode agir de forma a manter a ordem pública, a tranquilidade social e preservar a saúde da sociedade.
Para tanto, buscar-se-á abordar o direito de ir e vir, de revindicar, de exercer o livre trabalho, com o intuito de manter o sustento e a dignidade, preceitos estes garantidos pela Constituição Federal de República (CR/1988), e que ecoam as necessidades da população amedrontada e exaurida de necessidades elementares.
Apesar de todas as violações constatadas em decretos e leis sob a égide dos direitos inalienáveis e universais, por mais vaga e difusa que possa parecer, persiste em tempos de crise a necessidade de manutenção da dignidade e sanidade mental das mazelas sociais.
Nesse sentido, ALVES, RESQUE e NEVES (2019, p. 12) sustentam que a ideia de Direitos Fundamentais foi articulada como instrumento de luta para superação da bipolaridade global, para a derrubada de regimes ditatoriais, para o estabelecimento dos direitos civis e o fim das violações contra a população, em busca de melhores condições de trabalho e dignidade. Apesar das constantes violações, o discurso dos Direitos Fundamentais parece ter se tornado hegemônico e legitimador da ordem social e da democracia{C}[2].
Dada à ênfase do assunto, se lança um olhar acerca do fenômeno jurídico constitucional, dando destaque aos direitos e garantias fundamentais instituídos pela Carta Magna, sem esquecer-se de denotar o momento pelo qual se passa.
Isso se justifica a partir de várias razões, dentre as quais, a circunstância de que os efeitos da contaminação e disseminação do Covid-19 não respeitam fronteiras. Ainda que estas sejam fechadas, medidas se fazem necessárias, racionais e preventivas de forma a garantir a preservação da saúde da população, sem, contudo não se deixar de lado as dificuldades que a noção de crise geralmente pressupõe.
Mesmo que os direitos elementares nunca tenham gozado de condição serena, na atualidade se assiste à emergência de novos desafios, no território brasileiro e especialmente no Paraná, que, há exatamente noventa dias, vem tomando uma espécie de negativação ética e moral da defesa dos Direitos Fundamentais.
É possível se afirmar que situações como as que se vive atualmente tornam-se, temporariamente, secundárias ante as milhares de questões e problemas com os quais lida o Direito, deslocando o foco para a necessidade urgente de identificar, avaliar e equacionar centenas de desafios ao direito constitucional.
Essa assertiva remete ao que talvez seja o principal e mais urgente problema e desafio do ponto de vista constitucional - a necessidade de que sejam adotadas as medidas emergenciais de enfrentamento em termos de saúde pública - de forma a fortalecer a Democracia e as instituições do Estado Democrático.
Nesse aspecto, estabelece-se, aqui, um vinculo direto e umbilical entre a necessidade e os Direitos Fundamentais, de maneira a se verificar que a principal fonte de violações está relacionada ao fato de que tanto as medidas engendradas e concretamente aplicadas, ainda que com o escopo de proteger a saúde e vida da população, quanto as omissões, envolvem restrições aos direitos e garantias do cidadão, seja no sentido de uma intervenção constitucionalmente ilegítima no seu âmbito de proteção, seja em virtude da ofensa ao dever estatal de proteção suficiente.
O ponto nodal da questão, contudo, não é o fato corriqueiro da restrição a direitos, característico e indissociável do dia a dia da vida numa sociedade politicamente organizada, mas sim, a sua legitimação jurídico-constitucional, que parte do pressuposto de que os fins não justificam o uso de todo e qualquer meio, e da conexa proibição de arbítrio.
Neste sentido pergunta-se, mas tais preceitos de proibição e suspensão de Direitos Fundamentais se aplicam em tempos de pandemia, ou seja, enfermidade amplamente disseminada, de forma a privar a sociedade de sua dignidade enquanto sujeitos de direitos?
A questão fica mais evidente e se torna particularmente ameaçadora quando se busca instrumentalizar o estado de anormalidade jamais vivido antes, e crise econômica e política que se delineiam, de modo a arrancar a fórceps, sob o manto da legitimidade constitucional, a autorização para a decretação de um estado de defesa ou mesmo de um estado de sítio em situações nas quais, durante a sua vigência, uma série de fortes restrições a direitos e garantias fundamentais da população pode ser autorizada.
O fato é que a instalação de um estado de sítio, por si só já corresponde a uma ofensa aos mais elementares valores e princípios de um Estado Democrático de Direito e, no caso brasileiro, frontal, inequívoca e inadmissível violação da Carta Magna, especialmente quando originária daqueles que juraram solene e publicamente, fidelidade à ordem constitucional, seja a qual poder ou instituição pública pertençam.
{C}1. ARTIGO 5º DA CONSTITUIÇÃO – OS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
Para ALVES, RESQUE e NEVES (2019, p. 19): Direitos Fundamentais são hoje considerados uma das fontes centrais de legitimidade do direito, o núcleo de conteúdo para o qual o discurso jurídico precisa se remeter com vistas a mostrar-se socialmente legítimo[3].
Mas é fato que em situações de grave crise e instabilidade, é cabível a decretação formal de medidas de exceção constitucional, medidas rigorosas, que, por sua vez, implicam na restrição, em níveis mais acentuados, de alguns direitos e garantias fundamentais do sujeito, tudo condicionado também a um controle igualmente mais vigilante de sua consistência jurídica e dos respectivos critérios.
É bom frisar, que não quer dizer que todas as providências sejam constitucionalmente, mas também legalmente corretas, convocando os atores responsáveis à sua fiscalização, que poderá levar à sua supressão ou reformatação de forma os referidos estados de exceção constitucional só podem ser legitimamente instaurados quando for manifestamente inviável dar conta da gravidade dos problemas pelas vias até então levadas a efeito.
Mesmo que se trate de uma típica hipótese autorizativa da decretação de um estado de exceção constitucional pelo menos três diretrizes se impõe necessárias: a rigorosa observância dos critérios materiais e procedimentais inscritos na CR/88; que o conteúdo e alcance das medidas previstas e impostas sejam consistentes com a máxima da interpretação restritiva das medidas, aqui ainda mais rigoroso, no sentido de uma ultima ratio; que o estado de sítio, tal qual disposto no artigo 137 da CR/88, somente possa ser decretado nos casos de comoção grave, de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa, ou então quando declarado o estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira[4]. BRASIL (2015, p.88)
Basta, portanto e por ora, uma mera leitura do texto constitucional para que se perceba a absoluta impossibilidade da decretação de um estado de sítio antes de esgotadas as alternativas anteriores.
É preciso ter clareza de dados e medidas eficazes de garantia da dignidade da pessoa humana em todas as suas necessidades, em época de pandemia, conceituada pelo dicionário on line de português como uma epidemia que se espalhou geograficamente, saindo do seu lugar de origem, especialmente falando de doenças contagiosas que assolam praticamente o mundo inteiro.
Faz-se necessário um trabalho conjunto entre governos, governos e população, e que não ocorra deturpação de dados ou informações por uma mídia sensacionalista que teima em transformar informação em notícia, de forma a espalhar a paranoia na sociedade, que passa a exprimir uma certeza absoluta, sem permitir a dúvida, o questionamento, expressando a megalomania concedente com o inacessível juízo da realidade.
Nesse sentido, ALVES, RESQUE e NEVES (2019, p. 20) enaltecem que se faz necessária à retomada da moral como fundamentação interpretativa de determinados casos e situações, como explicação do próprio direito individual de ser informado e de conhecer a realidade dos fatos. Todo o tecnicismo e a positividade passariam a ser considerados instrumentos a serviço de um raciocínio holístico maior, ligado aos fundamentos morais consubstanciados nos Direitos Fundamentais. Entretanto, essa positivação, ao contrário do que se pensava, é somente o começo e não o fim da discussão acerca da compreensão dos Direitos Fundamentais e de sua aplicabilidade universal.
Sob essa perspectiva se enaltece que o direito de ir e vir se constitui direito constitucional, preestabelecido no artigo 5º, inciso XV da CR/1988 que pondera que é garantida a livre locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens. BRASIL (2015, p.13)[5].
Entretanto, se enaltece que nenhum direito, mesmo sendo fundamental não é absoluto, visto que a própria Carta Magna prevê situações em que ele pode ser limitado, como em decorrência de prisão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de Juiz; de prisão civil, administrativa ou especial para fins de deportação, nos casos cabíveis na legislação específica ou durante vigência de estado de sítio, para determinar a permanência da população em determinada localidade, única situação na qual há permissão expressa de restrição generalizada deste direito.
Sob essa égide, foram editadas algumas normas infraconstitucionais de forma a prever severas restrições ao direito de locomoção na atualidade do Covid-19. Apresentam-se duas em destaque: o isolamento e a quarentena.
Para ALVES, RESQUE e NEVES (2019, p. 21) apud (ZÚÑIGA, 2010) a partir desse impulso, é possível levar a discussão sobre Direitos Fundamentais para além da descrição de tratados internacionais e sua forma de positivação no ordenamento pátrio. Isto sem desmerecer ou diminuir os preceitos constitucionais, fato é que liberdade, igualdade, saúde, segurança não são conceitos prontos e acabados, mas dependem para seu dimensionamento de circunstâncias que só vem à tona nos casos concretos, razão pela qual é preciso sempre rediscutir esses direitos para que os mesmos tenham um conteúdo substantivo e não seja apenas um discurso vazio e fechado[6].
Nesta seara, é possível se afirmar que os deveres constitucionais de proteção estatais, concernentes à efetiva fruição dos Direitos Fundamentais, podem justificar a legitimidade jurídico-constitucional de determinadas restrições a direitos e garantias decorrentes do estado de calamidade, observados, à evidência, as exigências da proporcionalidade e da salvaguarda de seu núcleo essencial em razão da pandemia.
{C}2. ISOLAMENTO E QUARENTENA
Constantes da lei 13.979/20, regulamentada pelo decreto 10.282/20 e portaria 356/20 do Ministério da Saúde, que prevê em seu artigo 2º, inciso I - que o isolamento consiste na separação de pessoas sintomáticas ou assintomáticas, em investigação clínica e laboratorial, de maneira a evitar a propagação da infecção e transmissão local{C}[7].
Sendo que o isolamento poderá ser determinado por médico ou recomendada por agente sanitário pelo prazo máximo de 14 dias, podendo se estender por mais 14 dias, a depender de resultado de exame laboratorial que comprove o risco de transmissão da doença.
Já a quarentena, expressa no inciso II da referente lei se define como restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus{C}[8].
A quarentena poderá ser decretada pelos gestores locais de saúde, como vem sendo feito em diversos estados em que houve suspensão de atividades comerciais e separação de pessoas suspeitas, como em Curitiba pelo atual decreto 774/2020, que busca estabelecer medidas restritivas às atividades e serviços essenciais e não essenciais como mecanismo de enfrentamento da Emergência em Saúde Pública (decreto 421/2020), decorrente do novo Coronavírus, de acordo com a situação epidêmica da COVID-19 e a situação de Risco Médio de Alerta.
O descumprimento destas medidas pode levar à prisão do infrator pelo crime do artigo 268 do Código Penal (CP), que pune criminalmente a conduta de “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”, pelo que se nota a gravidade na restrição do direito de ir e vir{C}[9]. BRASIL (2016, p.96)
Ainda que não decretado estado de sítio, única situação que possibilita autorização expressa para restrição generalizada da liberdade de locomoção, o direito de ir e vir deve conviver com outros princípios da Constituição da República e não pode ser considerado absoluto, é o caso do direito à saúde.
Segundo COMPARATO (2010, p. 126/127) o artigo 196 da CR/88 prevê que o direito à saúde tem duas dimensões: o direito subjetivo de todos, ou seja, um direito a prestação no sentido estrito, e o dever do Estado de desenvolver uma política pública, abrangendo regramentos, organização pessoal e previsão orçamentária específica.
Portanto, para ALVES, RESQUE e NEVES (2019, p. 21) apud HOPGOOD (2014), a dificuldade para a implementação dos Direitos Fundamentais no seio das sociedades vai muito além da sua simples previsão normativa. É necessário que se analise, dentre outros fatores, qual o impacto deste discurso nos contextos mais complexos{C}[10].
Nesse contexto, a lei 13.949, ao prever as medidas de isolamento e quarentena, traz medidas para salvaguarda do direito à saúde de cada indivíduo (saúde como direito individual) e medidas preventivas operacionais para que o Poder Público exerça sua obrigação de tutela da saúde pública (saúde como dever do Estado). São ambas as expressões do art. 196 da CR/88 que estabelece a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução de riscos de doença e de outros agravos{C}[11]. BRASIL (2015, p.118)
Em uma situação como esta, que envolve o conflito aparente entre os princípios da liberdade de locomoção e direito à saúde, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem aplicado a regra da proporcionalidade para solução do impasse, tal como expressa no RE 732.686 RG/SP - SÃO PAULO que compreende:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. AMBIENTAL. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ORDEM ECONÔMICA. LEI MUNICIPAL. OBRIGAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO DE SACOS E SACOLAS PLÁSTICAS POR SACOS E SACOLAS DE MATERIAL ECOLÓGICO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA.
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, reputou constitucional a questão. O Tribunal, por unanimidade, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada. BRASIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO 732.686 SÃO PAULO. Ministro relator: Luiz Fux.{C}[12]{C}
Paradigmático, nesse sentido, foi o julgamento do “Caso Ellwanger”, em que o Ministro Gilmar Mendes explica no seu voto que: “... o princípio da proporcionalidade alcança as denominadas colisões de bens, valores ou princípios constitucionais. Nesse contexto, as exigências do princípio da proporcionalidade representam um método geral para a solução de conflitos” (HC 82.424)[13].
Neste sentido ALVES, RESQUE e NEVES (2019, p. 24/25) sustentam que a efetivação dos Direitos Fundamentais, do discurso à prática, vai muito além de questões relativas à sua normatização. De modo mais abrangente, as dificuldades são metajurídicas, isto é, são muito mais sofisticadas do que o aparato jurídico, seja no âmbito interno, seja no âmbito internacional. A responsabilidade pela efetivação dos Direitos Fundamentais é múltipla. Isso não exclui o importante papel que os juristas podem desempenhar para a efetivação dos direitos básicos do ser humano.
A respeito da proporcionalidade RAMOS (2014, p. 116) explicita que a regra de proporcionalidade prescreve que um princípio deve ceder diante de outro desde que atenda aos seguintes requisitos: adequação; necessidade e proporcionalidade em sentido estrito[14].
Portanto, no primeiro momento, deve-se questionar se as medidas de isolamento e quarentena são adequadas para fomentar o objetivo sanitário perseguido, isto é, a contenção da pandemia de coronavírus, a despeito de restringirem a liberdade de locomoção.
Considerando os estudos médicos, orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e exemplo de diversos outros países, a diminuição do contato entre pessoas é a providência mais adequada atualmente para enfrentamento da pandemia. Com efeito, a transmissão da doença Covid-19 se dá pela transmissão, de secreções ou saliva. Além disso, a transmissão também ocorre pelo contato com superfícies contendo saliva ou secreções e posterior colocação das mãos à boca, olhos e nariz.
Diante de tal reprimenda, os deveres de proteção estatais e sua concretização mediante organização e procedimento, devem ser compreendidos de modo a assegurar aos Direitos Fundamentais; a sua máxima efetividade possível, sendo que em tais situações, a medida de isolamento e quarentena, por afastar pessoas, reduzir seus fluxos em espaços públicos e prevenir aglomerações, são medidas adequadas para o combate à pandemia.
No entanto, se deve questionar se as medidas são necessárias para seu objetivo, visto que seguindo um teste comparativo existiriam alternativas menos invasivas ao direito de locomoção que possuam igual eficiência no combate à pandemia?
Caso existam, elas devem ser adotadas no lugar do isolamento e quarentena. Contudo, se sabe de antemão que não existem outras medidas, como, por exemplo, vacinas ou EPI’s simples, baratos e altamente seguros. Assim, por ora, as medidas de isolamento e quarentena são necessárias para atingir o objetivo de proteção à saúde.
Por fim, constatadas a adequação e necessidade, ainda deve-se questionar se as medidas atendem ao requisito da proporcionalidade em sentido estrito. A última etapa serve para evitar exageros, pois se pode deparar com medidas adequadas e necessárias, mas que causem uma restrição insuportável em outros Direitos Fundamentais, o que tornaria o objetivo perseguido injustificado.
ALVES, RESQUE e NEVES (2019, p. 30) apud RODRÍGUEZ GARAVITO, (2014) compreendem que um grave problema dos Direitos Fundamentais é a defesa dos marcos legal como um fim em si, além do excesso de legalização.
Não é o caso das medidas sanitárias de combate ao coronavírus, pois elas não suspenderam atividades essenciais, possuem tempo de duração delimitada no tempo, estão sujeitas a controle jurisdicional regular e revisão periódica das autoridades sanitárias.
Nota-se que o parágrafo 1º, do art. 3º, da lei 13.979/20 disciplina que as medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública[15]. As medidas, portanto, atendem ao requisito da proporcionalidade em sentido estrito.
O STF, por enquanto, foi chamado a decidir, em sessão realizada no dia 15/04/2020, sobre aspectos da competência para editar regulamentos desta natureza (ADI’s 6341, 6343 e ADO 56), quando reconheceu a autonomia dos municípios e governos estaduais para decretarem medidas sanitárias de contenção à epidemia.
Segundo, a Rádio Senado, em reportagem de Regina Pinheiro o STF confirmou competência concorrente de Estados, Distrito Federal, Municípios e União em ações para combater pandemia da Covid-19. Governadores e prefeitos estão livres para estabelecer medidas como o isolamento social e o fechamento do comércio. A maioria dos ministros reconhece também que a União pode legislar sobre o tema, mas garantindo a autonomia dos demais entes[16].
A cerca do tema o Ministro Marco Aurélio, reconheceu a competência concorrente, ressaltando que não há na norma transgressão a preceito da CR/88. Para o ministro, a medida provisória (MP) 926, não afasta os atos a serem praticados pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, que têm competência concorrente para legislar sobre saúde pública. Efeito sustentado pelo artigo 23, inciso II, da CR/88 que prescreve que cabe a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios cuidar da saúde e da assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência. BRASIL (2015, p.28)[17].
Compreende o ministro que a norma apenas trata das atribuições das autoridades em relação às medidas a serem implementadas em razão da pandemia. Ressaltou ainda que a MP, diante da urgência e da necessidade de disciplina, foi editada com a finalidade de mitigar os efeitos da chegada da pandemia ao Brasil e que o Governo Federal, ao editá-la, atuou a tempo e modo, diante da urgência e da necessidade de uma disciplina de abrangência nacional sobre a matéria.
É fato que foi levado em conta o momento de crises políticas e estruturais que atingem o sistema federativo, desequilibrando-o, de forma que o legislador constituinte admitiu a utilização de um “remédio” constitucional, apenas quando necessário, com o escopo de solver problemas dessa espécie.
Entretanto, cabe ressaltar que a interpretação da MP 926 é que o presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais mediante conformidade com a Constituição para preservar as atribuições de cada esfera de governo. Dessa forma, têm validade os decretos de governadores e prefeitos que forem mais restritivos que as medidas do governo federal.
É notório que neste momento de crise e de pandemia que o país se encontra, cabe à União estabelecer regras gerais, direcionar estados, Distrito Federal e municípios em prol de um feito comum, a preservação da dignidade e integridade do ser humano.
No caso da doença que se pretende combater, existe dispositivo constitucional que parece muito pedagógico no sentido de apontar qual seria o papel da União neste enfrentamento: cabe planejar e promover a defesa permanente em caso de calamidade pública, de maneira a coordenar e oferecer apoio material. Os entes federados não podem ser afastados dessa batalha, porque têm o poder-dever de enfrentar a doença. É fato que dentro dessas competências, qualquer ato governamental precisa balizar-se pelos critérios da razoabilidade e proporcionalidade.
Para ALVES, RESQUE e NEVES (2019, p. 30) o importante papel a ser desempenhado pelos juristas vai além da compreensão do Direito como apenas ordenamento jurídico, e isso só é possível se o ensino jurídico tiver como enfoque, também, a aplicação deste instituto, e não apenas a sua absorção normativa abstrata. Para que os juristas alcancem esse mister de compreender o Direito por meio de sua aplicabilidade, faz-se necessário construir um ensino problematizante, em que os sujeitos estejam constantemente empenhados em resolver situações de aplicabilidade real das normas{C}[18].
Diante de tais apontamentos, é possível sustentar que mediante a compreensão constitucionalmente adequada dos princípios, direitos e regras processuais, o sistema de justiça poderá priorizar o combate à pandemia, focando nas situações emergenciais, sem descuidar do direito fundamental a uma prestação judiciária efetiva.
{C}3. LOCKDOWN
O Ministério da Saúde define o lockdow como o nível mais alto de segurança do isolamento social, e que pode ser necessário podendo ser implementado quando o sistema de saúde estiver sobrecarregado, sem que haja estado de defesa ou de necessidade.
No lockdown, em regra, as pessoas só podem ir à rua para fazer compras em supermercados e farmácias ou trabalhar em atividades essenciais.
Nesse regime, há limitação de alguns Direitos Fundamentais. Especialmente os de ir e vir e de reunião. Por isso, há quem questione a constitucionalidade da medida.
A Constituição permite a restrição desses Direitos Fundamentais pelos estados de defesa ou de sítio, o Brasil não decretou nenhum deles, e sim o estado de calamidade pública.
Sendo que a finalidade do estado de defesa é preservar ou restabelecer a ordem pública ou a paz social, ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza. Tal situação pode limitar os direitos de reunião e de sigilo de correspondência e comunicação telefônica.
Mais rigoroso, o estado de sítio pode ser decretado nos casos de comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; ou declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. Nesse regime, o poder público pode obrigar as pessoas a permanecerem em certo local; deter indivíduos; restringir a inviolabilidade da correspondência, o sigilo das comunicações, a prestação de informações e a liberdade de imprensa; suspender a liberdade de reunião; promover buscas e apreensões em domicílios; intervir em empresas de serviços públicos e requisitar bens.
Tanto o estado de defesa quanto o de sítio devem ser propostos pelo Presidente da República, dependendo de aval do Congresso. O primeiro deve durar 30 dias, podendo ser prorrogado uma vez. Já o segundo não pode ultrapassar um mês, salvo em caso guerra.
Embora a Constituição só autorize expressamente a restrição dos direitos de ir e vir e de reunião nos estados de defesa e de sítio, não é necessário decretar um deles para instituir o lockdown.
Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, afirma que tais regimes excepcionais se aplicam melhor a situações de violência e comprometimento da ordem pública, e não são necessários em crises sanitárias{C}[19].
Na visão do professor, mecanismos como os estados de emergência e de calamidade pública, instituído pelo Congresso, são suficientes para combater o coronavírus.
Serrano diferencia um momento de legalidade extraordinária, como o que o Brasil vive devido à epidemia, de um estado de exceção. A legalidade extraordinária é a forma como o Estado Democrático de Direito reage a uma situação emergencial. Mas não há anomia (ausência ou suspensão de leis e direitos), como no estado de exceção. Na legalidade extraordinária, o Estado segue submisso à legislação e deve criar o mínimo possível de novas leis. A ideia é solucionar os problemas com base no ordenamento jurídico em vigor.
Vale ressaltar que esse período de legalidade extraordinária pode ser interpretado como um momento em que o Executivo em geral tem mais poderes. Mas, na realidade, ele tem mais deveres. Autoridades públicas têm limitações às suas prerrogativas, tanto ou mais do que os cidadãos têm restrições aos seus direitos. E elas têm que agir muito mais por dever do que por poder nesse período.
RODRIGUEZ-GARAVITO (2014, p. 519) sustentam que uma vez que os profissionais do direito não podem se dar ao luxo de simplesmente celebrar a crítica e se satisfazer com as incertezas, as suas respostas acerca do discurso concreto, oscilam entre a defesa e a reconstrução reflexiva. Atitudes defensivas tendem a ser a reação sem pautas constitucionais com o intuito de defender seus próprios interesses e não os direitos fundamentais da sociedade. A reconstrução reflexiva é a resposta daqueles que reconhecem o valor de tais críticas, mas acreditam que elas não representam o fim de um ideal de luta pelos Direitos Fundamentais, mas sim a necessidade de novas formas de pensá-lo e praticá-los{C}[20].
Já o professor de Direito Administrativo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Gustavo Binenbojm diz que a imposição do lockdown sem decretação de estado de defesa ou sítio não é inconstitucional, visto estabelecer medidas menos agressivas aos Direitos Fundamentais do que as que ocorreriam nestes regimes. Sendo menos gravosas, essas medidas são preferíveis do ponto de vista da proporcionalidade, por serem menos limitadores de direitos fundamentais[21].
Além disso, ressalta o professor, o STF reconheceu que os estados e municípios têm competência para adotar providências de polícia administrativa sanitária em defesa da saúde pública. Ou seja: os entes podem restringir a circulação de pessoas, mas não no nível dos regimes de exceção previstos na Constituição.
Cabe lembrar que nem o direito de ir e vir nem o direito de reunião são absolutos, eles podem ser limitados em prol da saúde pública. Dessa maneira, se a circulação ou aglomeração de pessoas ameaça o bem-estar da população, o Estado pode usar o poder de polícia para impedir o exercício desses direitos.
Cabe aos juristas, agentes privilegiados, contribuir com eficácia para a manutenção da ordem pública em consonância com os Direitos Fundamentais, mas tal contribuição só será possível se os profissionais do Direito em conjunto com os agentes do Estado, estiverem aptos para tanto, motivo pelo qual a inserção de metodologias diferenciadas de interpretação, focadas na problematização do conhecimento, apresenta-se como uma alternativa viável.
A situação de emergência em questão impõe a adoção de medidas adequadas e necessárias para conter o espalhamento da doença e colapso das redes pública e privada de saúde, inclusive com restrições justificadas ao direito de ir e vir. Se for discutível a necessidade de prévia decretação de estado de sítio ou de defesa, é certo que tais medidas devem ser fundamentadas em lei e devem ser justificadas diante da situação específica de cada município.
Mediante tais percepções Binenbojm, em artigo para o Conjur, enfatiza que não existem circunstâncias objetivas que autorizem a aplicação desses regimes excepcionais. Segundo ele, há medidas de polícia administrativa sanitária que podem ser tomadas pelos governos federal, estaduais e municipais para combater a epidemia. Apenas se elas forem insuficientes é que se devem cogitar providências mais duras. Por sua vez, Serrano acredita não ser preciso suspender tantos direitos para enfrentar o coronavírus. E os estados de defesa e sítio abririam oportunidade para disputas políticas, como a perseguição de adversários e a implantação de limitações abusivas[22].
Mesmo que para atender a tão nobre e relevante dever de cuidar da saúde da sociedade, o exercício por parte da administração pública tanto do poder de polícia, com o intuito de aplicar medidas coercitivas e restritivas, como do poder regulamentar, com o intuito de editar decretos regulamentares, encontra limites na Constituição Federal.
{C}4. DECRETO 774/2020 DA PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA E PROIBIÇÃO DE PROTETOS – DIREITO OU NECESSIDADE?
O referido questionamento se baseia em uma frase que escrita numa placa na entrada do DOI-CODI de São Paulo, na década de 1970, que tinha os seguintes dizeres: “Contra a pátria, não há direitos”. Aos poucos, especialmente depois da inédita sentença de condenação da União, em decorrência da morte do repórter Vladimir Herzog, mostrou-se que há limites para o exercício do poder soberano do Estado.
A redemocratização do Brasil trouxe consigo a consagração do constitucionalismo e a teoria dos direitos fundamentais, que é o núcleo intangível da Constituição representativo dos valores mais caros da sociedade, não sendo passíveis de supressão ou alteração sequer por emenda constitucional. É um limite ao arbítrio, tão cobrado para a superação do período anterior ou pelo menos deveria ser.
É fato que nos dias atuais a Constituição, por mais incrível e inatingível que possa parecer, agora sofre sua maior ameaça, que não decorre de uma crise política, mas de uma causa biológica: o coronavírus, patógeno invisível que afetou o equilíbrio federativo e as relações de poder. As medidas adotadas em âmbito regional e local, não são o porto seguro para a crise, visto que afetam direitos garantidos e fundamentados como essenciais para a manutenção da dignidade da população.
Em decreto recente da Prefeitura de Curitiba, foram suspensas as atividades de academias, templos religiosos, bares, parques e clubes com vista a proteger a coletividade, de acordo com a situação epidêmica de COVID19 e o Protocolo de Responsabilidade Sanitária e Social no município de Curitiba.
Entretanto, cabe ressaltar que existe a necessidade de transparência e estudo sobre os fatos reais da aplicação de tal fundamento, visto que se faz necessário o respeito à Constituição, pois somente a partir dela é que se constroem soluções para a crise.
Entre direitos, deveres e desejos, a Constituição é o caminho necessário. Mas não é o que está se passando.
Embora se diga, sem maiores reflexões, que situações excepcionais devem ser tratadas de forma excepcional, não se pode perder de vista que a solução para a crise e os desafios jurídicos que ela provocou deve ser encontrada na centralidade da Constituição, no sistema jurídico. Na iniciativa qualificada de lei, nos projetos de emenda à Constituição, somente assim as medidas adotadas seriam pautadas na efetividade.
A liberdade de ir e vir (artigo 5º, XV) e as obrigações de fazer ou deixar de fazer determinado comportamento (artigo 5º, II) é uma conquista histórica sobre o arbítrio e para tanto devem ser respeitadas acima de tudo, bem como o direito de reunir-se pacificamente, em locais abertos e públicos, de forma que sejam respeitados os princípios do Estado Democrático de Direito, de maneira a garantir a dignidade e cidadania. Sendo que a dignidade da pessoa humana e a cidadania foram colocadas na esfera de fundamentos da República justamente para validar a existência do Estado Democrático de Direito. A ideia central de dignidade da pessoa humana, como uma proposição formada por vários conteúdos, dentre os quais estão os chamados direitos individuais e os políticos, além dos direitos sociais, culturais e econômicos.
Fato que fica evidenciado nas palavras do professor André de Carvalho Ramos que enfatiza que essa sintonia entre liberdade e, legalidade é fruto da consagração do Estado de Direito, de maneira a ficar superada a submissão de todos à vontade dos monarcas, substituída pela vontade da lei.
Na crise brasileira de 2020, decorrente da pandemia do coronavírus, a vontade do monarca parece substituída pela vontade dos governadores e prefeitos.
Não há lei que impeça a liberdade ambulatorial das pessoas, a limitação ao direito de reunião ou a intervenção da propriedade e interrupção de atividades econômicas, matéria relativa ao direito civil, comercial, desapropriações, requisições civis, que são assuntos de competência da União (artigo 22, I à III, da Constituição), que podem ser delegadas aos Estados, em questões específicas, mediante leis complementares sobre o assunto, que ainda não existem, conforme parágrafo único do artigo 22 da Constituição. A ausência de lei não é suprida sequer por leis locais, mas por decretos.
Nesse contexto, é preciso entender com certa reserva as decisões que são adotadas pelos Governantes, pois geralmente essas mesmas pessoas, eleitas pelo povo, passam a legislar sem a devida competência para o referido cargo, agindo de maneira proeminente, deixando de lado o Princípio Constitucional que é o pilar base da nossa conceituação jurídica.
Na situação pandêmica causada pela Covid-19, anote-se, muitas vezes, sem a devida lógica jurídica, percebemos a obstrução desastrosa da “liberdade de ir e vir”, ocasionando uma insegurança à população, pois não respeita a competência.
Não menos falha, foi à decisão liminar da juíza Gabriela Scabello Milazzo, que determinou a suspensão de manifestações. A decisão da Justiça também estipula multa de R$ Um mil para cada manifestante, comprovação que pode ser feita “inclusive por fotografia ou filmagens de pessoas ou placa de veículo”, conforme consta no documento obtido pela Prefeitura. De maneira a infringir o pré-constituído na Carta Magna no Artigo 5º, inciso XVI que prevê que todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo exigido apenas prévio aviso a autoridade competente{C}[23]. BRASIL (2015, p.13/14)
No entanto, tal decisão foi pautada na motivação da circulação ou aglomeração de pessoas ameaça o bem-estar da população, o Estado pode usar o poder de polícia para impedir o exercício desses direitos.
O Estado avança sobre a liberdade e intimidade do cidadão, ao ponto de saber onde circula, como no admirável mundo novo de 1984, de Aldous Huxley, na formação de guethos para a terceira idade e na criação de barreiras entre Estados e Municípios, o que é expressamente vedado pelo artigo 150, V, da CR/88.
Faz-se necessário o entendimento diverso a cerca do caso concreto com vistas a agregar valor à corrente universalista, ou mesmo para mostrar pontos em que seja reconhecida a relativização de direitos básicos, que embora já sedimentados, sofrem as consequências da ingerência de uma teoria pouco possível na prática, levando a graves violações de direitos que causam incontáveis traumas àqueles que estão desprotegidos pela ordem.
É fato que as medidas de isolamento social se mostraram as mais recomendadas pelas regras de experiência até aqui para evitar o alastramento da pandemia e os riscos à vida humana e à saúde pública. Resta à lei consagrar os critérios técnicos bem sucedidos como direitos e obrigações. Por enquanto, no vácuo legal, desejos e iniciativas isoladas, algumas arbitrárias e outras acertadas. Mas, entre direitos, obrigações e desejos, os primeiros prevalecerão.
Os Poderes da União têm, em suas mãos, a iniciativa de lei, o poder de suprir a omissão reconhecida pelo STF, que representam o único caminho de reorganizar a Federação, dentro dos moldes do Estado Democrático de Direito fundado na CR/1988, que, agora, é ameaçada por um inimigo invisível, que desarruma das finanças às liberdades públicas e ameaça a vida das pessoas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em tempos de confinamento e restrições pessoais em razão da COVID – 19, o mundo e especialmente o Brasil têm passado por grandes transformações decorrentes de uma nova visão de sociedade globalizada, que impõe mudanças e reflexões no posicionamento dos institutos do Direito, em especial da Constituição Federal, do Direito Processual Penal e da justiça em geral. Assim, estas alterações devem sempre estar norteadas por princípios que constituem o Estado Democrático de Direito, principalmente em face do direito de punir do Estado, bem como nas mais variadas acepções da intervenção na vida do cidadão, de maneira a garantir a dignidade da sociedade.
Em que pesem as considerações que são feitas pelas diversas correntes, deixar de se estabelecer um “mínimo ético irredutível”, mesmo que existindo uma imensidade incalculável de culturas no mundo, seria o mesmo que violar direitos humanos pela via da omissão.
Isto porque a importância de entendimentos diversos seja para agregar valor à corrente universalista, ou mesmo para mostrar pontos em que esta teoria necessita de melhoria se perfaz na teoria relativista quando se observa que esta permite, de forma direta, a relativização de direitos básicos que, embora já sedimentados, sofrem as consequências da ingerência de uma teoria pouco possível na prática, o que leva a graves violações de direitos que causam incontáveis traumas àqueles que estão desprotegidos pela ordem internacional.
Faz-se necessário sublinhar que o papel do Estado no regime democrático tem tudo a ver com a salvaguarda da vida humana e da saúde (art.5º, caput, e 196 a 200, CR/88), e, ainda com a liberdade, a dignidade, e os valores éticos que lhe são inerentes. Estado e governo nada mais são que instrumentos a serviço do homem e da sociedade. Como se pode assinalar, a pessoa é o centro de todo o Direito, e não pode ser usada como meio e sim como fim em si mesmo. Aos Estados não há escolha a ser feita. Há tão somente o objetivo primeiro e imediato de proteger a pessoa e sua condição, e isso independe do matiz ideológico de um governante ou outro, que apenas estão temporariamente no cargo.
Todavia, esse proceder não significa que não existam outros elementos e dimensões a serem observadas e que também exigem no momento oportuno a ação contundente dos governos, dos indivíduos, das empresas e da comunidade, inclusive para a própria sobrevivência, de forma a esclarecer os fatos com transparência sem versões dúbias, mas sim carregadas de verdades.
É notório que apesar da crise ser generalizada, os seus efeitos sobre cada pessoa são diferentes, e manter a contraparte informada sobre a real situação é um dever do Estado, a fim de proporcionar um ambiente de cooperação e lealdade.
Se por um lado é inegável que a população se encontra diante de uma situação absolutamente imprevisível, por outro ainda é impossível dimensionar os efeitos das medidas restritivas relacionadas ao coronavírus sobre as diversas atividades, sobretudo por não haver como ainda prever a duração de tais restrições.
A pandemia global investe contra outra frente, a economia. Nesta, a excessiva globalização econômica, com efeito desastroso e perverso.
Os abusos, as hostilidades, o jogo de interesses se ligam ao âmago do capitalismo selvagem, perigoso e imprudente, e à falta de limites legais existentes e fica evidente que é indispensável e urgente resgatar o princípio nacional e a soberania.
A burocracia tecnocrata, as ideologias universalistas e os desmandos de toda ordem na gestão da saúde pública coadunam para o efeito de paranoia na comunidade, a fim de instigar a violência e a onipotência frente a algo desconhecido e a estrutura do país em enfrentar tamanho caus.
Após esse desastre, esse caos, talvez possa o Brasil acordar e tomar a devida providência com o intuito de salvar-se enquanto ainda há certo tempo, criar um sistema que vá de encontro com os preceitos constitucionais e legais, que pesem a necessidade de leis que atendam as necessidades básicas de uma sociedade carente e desacreditada.
Tal como diz Goya vivemos numa sociedade na qual se dormiu, e se está à deriva. Uma sociedade na qual o sono da razão produz monstros. É passada a hora de acordar.
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