A ausência de critérios objetivos para concessão da gratuidade de justiça e seu impacto na efetivação da garantia de acesso à prestação jurisdicional

27/06/2020 às 16:52

Considerações sobre a ausência de critérios objetivos na legislação brasileira para concessão da gratuidade de justiça e seu impacto negativo na efetivação da garantia constitucional de livre acesso à prestação jurisdicional.

A AUSÊNCIA DE CRITÉRIOS OBJETIVOS PARA CONCESSÃO DA GRATUIDADE DE JUSTIÇA E SEU IMPACTO NA EFETIVAÇÃO DA GARANTIA DE ACESSO À PRESTAÇÃO JURISDICIONAL

 

Davi de Lima Pereira da Silva

 

 

 

SUMÁRIO: Introdução. 1. A Garantia Constitucional do acesso à justiça. 2. A gratuidade de justiça no ordenamento jurídico brasileiro: Ausência de critérios objetivos. 3. A perigosa discricionariedade do magistrado brasileiro para concessão da gratuidade. Conclusão. Referências Bibliográficas

 

 

INTRODUÇÃO

No ordenamento jurídico brasileiro, o direito à gratuidade de justiça para os que não dispõe de recursos para arcar com as despesas processuais se encontra previsto tanto na Constituição da República, quanto na legislação infraconstitucional.

Em seara constitucional, este direito decorre da previsão contida no artigo 5º, inciso LXXIV, da Carta Magna, que garante assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovem insuficiência de recursos. Infraconstitucionalmente, esta garantia atualmente é tutelada entre os artigos 98 e 102 do Código de Processo Civil, redigidos no mesmo sentido que dispõe a Constituição.

No entanto, muito embora essa previsão legal e constitucional, inexistem, em nosso ordenamento, critérios objetivos a serem observados para a concessão da gratuidade de justiça aos litigantes em processos judiciais, o que confere grande discricionariedade ao magistrado, acarretando, muitas vezes, em verdadeira afronta ao princípio constitucional do livre acesso à prestação jurisdicional, pois diversos jurisdicionados acabam tendo o acesso à justiça negado por terem a gratuidade indeferida pelo julgador e por não disporem de recursos para arcar com o pagamento das despesas processuais.

Este é, portanto, o problema a ser enfrentado neste artigo, que discorrerá sobre como essa grande discricionariedade conferida aos julgadores prejudica as garantias constitucionais do cidadão comum, buscando analisar soluções que podem ser adotadas para sanar esse obstáculo imposto ao jurisdicionado em sua busca pela justiça.

 

1. A GARANTIA CONSTITUCIONAL DO ACESSO À JUSTIÇA

O artigo 5º da Constituição Federal estabelece, em seu caput, os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, que são efetivados através de regras e princípios estabelecidos em seus 78 incisos.

No inciso XXXV, consta o princípio da inafastabilidade da jurisdição, determinando que a lei não deverá excluir da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito. Mais adiante, no inciso LXXIV, está o comando que obriga o Estado a prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem hipossuficiência de recursos.

Estes dois dispositivos, juntos, são importantes mecanismos da garantia constitucional do livre acesso à justiça, que configura-se, para além de um direito do cidadão, em uma verdadeira obrigação do Estado para fins de efetivação dos direitos fundamentais.

Ou seja, para a proteção de seus direitos, o jurisdicionado pode sempre se socorrer da tutela judicial, sendo esse acesso gratuito para aqueles que comprovarem não dispor dos recursos necessários para custeio de uma ação.

Outro dispositivo constitucional positivado neste sentido é o do inciso LXXVII do mesmo artigo 5º, ao estabelecer, in verbis, que são gratuitas as ações de habeas corpus e habeas data, e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania.”

Tem-se, portanto, que o referido dispositivo determina a gratuidade dos remédios constitucionais do habeas corpus e habeas data, bem como de qualquer outro ato necessário para o exercício da cidadania, o que pode ser entendido como qualquer outra ação judicial que tenha por objeto a efetivação dos direitos fundamentais.

É de se concluir, portanto, que o espírito da Constituição de 1988 é no sentido de garantir amplo e irrestrito acesso do cidadão à prestação jurisdicional, não podendo o Estado, de forma alguma, dificultar este acesso, pois isso se configuraria em verdadeira afronta à garantia constitucional do livre acesso à justiça.

Compete acrescentar que esse acesso é garantido tanto à pessoa física quanto à pessoa jurídica, conforme lição de Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino:

 

“Por fim, cabe ressaltar que esse benefício da gratuidade constitui direito público subjetivo reconhecido tanto à pessoa física quanto à pessoa jurídica de direito privado, independente de esta possuir, ou não, fins lucrativos, desde que devidamente comprovada a hipossuficiência de recursos para suportar as despesas do processo e o pagamento da verba honorária.” (PAULO e ALEXANDRINO, 2011, p.206)

 

Assim, tem-se por certo que o direito à justiça gratuita deve ser garantido a todos aqueles que não dispõem de recursos para o custeio de despesas processuais, o que compreende tanto a pessoa física quanto a pessoa jurídica.

No entanto, em nenhum momento a Constituição estabelece quais seriam os critérios para fins de verificação da hipossuficiência financeira do jurisdicionado, ficando isso a cargo da legislação infraconstitucional, o que se depreende da supracitada disposição do inciso LXXVII, que determina que os atos necessários ao exercício da cidadania são gratuitos, na forma da lei.

Dessa forma, cabe à legislação infraconstitucional estabelecer os critérios necessários para fins de identificação da hipossuficiência econômica e consequente concessão do benefício da gratuidade de justiça, sob pena de, não o fazendo, dificultar a efetivação dos direitos fundamentais previstos na Carta Republicana.

 

 

2. A GRATUIDADE DE JUSTIÇA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: AUSÊNCIA DE CRITÉRIOS OBJETIVOS.

Até a entrada em vigor do atual Código de Processo Civil, o instituto da gratuidade de justiça era regulado no direito brasileiro pela Lei 1.060/1950, cujo artigo 4º determinava que, para fazer jus à gratuidade, bastava que a parte declarasse, na própria petição inicial, que não possuía condições de arcar com as despesas do processo sem prejuízo de seu sustento e de sua família.

Desse modo, o único critério objetivo previsto na legislação era a apresentação de declaração de pobreza, cabendo a parte adversa o ônus de demonstrar a falsidade de seu conteúdo, o que, certamente, tinha por escopo a facilitação do acesso à justiça. No entanto, esta declaração não era aceita por todos os magistrados, que, independente de impugnação da outra parte do processo, estabeleciam seus próprios critérios para aferição da hipossuficiência, o que culminava, em diversas ocasiões, no indeferimento da gratuidade de justiça aos litigantes, ao arrepio da Lei 1.060/1950, os impossibilitando de prosseguir com a demanda.

Ou seja, o artigo 4º da Lei 1.060/1950 foi, por várias vezes, ignorado pelos magistrados, que, para deferirem o benefício da gratuidade de justiça, exigiam a apresentação de comprovante de rendimentos ou declaração de imposto de renda, o que, por si só, já demonstrava o desrespeito dos julgadores às prescrições legais que haviam sido positivadas justamente para salvaguardar os direitos fundamentais.

Com a entrada em vigor da Lei 13.105/2015, que instituiu o atual Código de Processo Civil, imaginou-se que este problema seria solucionado e que a nova legislação estabeleceria critérios objetivos para a concessão da gratuidade. Tais critérios, no entanto, não foram delimitados, de modo que a decisão sobre o deferimento ou não permanece a critério subjetivo do julgador.

Na atual legislação processual, a gratuidade está disciplinada no capítulo II, seção IV, entre os artigos 98 e 102, dispositivos que revogaram o artigo 4ª da Lei 1.060/1950, sem, no entanto, delimitar critérios objetivos para a concessão do benefício, de modo que persiste o perigoso cenário de ampla discricionariedade do magistrado.

O artigo 98 do atual CPC apresenta a seguinte redação: A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei”.

O referido dispositivo possui oito parágrafos, sendo que o primeiro deles, que estipula o que a gratuidade compreende, conta com nove incisos, estabelecendo que o benefício garante isenção das taxas ou custas judiciais; dos selos postais; das despesas com publicação na imprensa oficial; das despesas relativas à testemunha que perder dia de trabalho; das despesas com a realização de exames considerados essenciais, com destaque expresso para o de DNA; dos honorários do advogado e do perito, bem como do intérprete ou tradutor nomeado para apresentação de versão em português de documento redigido em outro idioma; do custo de elaboração de memória de cálculo, quando exigida para instauração da execução; dos depósitos necessários para os atos processuais, como recurso, distribuição de ação, entre outros; e dos emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial relacionado a processo no qual o benefício da gratuidade tenha sido deferido.

O parágrafo segundo, por seu turno, determina que, se o beneficiário da gratuidade perder a ação, ele ficará responsável pelas despesas processuais e pelos honorários advocatícios decorrentes de sua sucumbência, enquanto o parágrafo terceiro estabelece que essa obrigação ficará inexigível enquanto durar seu estado de hipossuficiência, cabendo ao credor, dentro do prazo decadencial de cinco anos a contar do trânsito em julgado da ação, o ônus de demonstrar que o beneficiário teve uma evolução patrimonial que afastou sua hipossuficiência.

Na sequência, em homenagem aos princípios da boa-fé e da lealdade processual, o parágrafo quarto destaca que a gratuidade de justiça não isenta o beneficiário do pagamento das multas processuais que lhe forem impostas. O parágrafo quinto, por sua vez, dispõe que a gratuidade poderá ser concedida de forma integral ou parcial, sendo certo que, na modalidade parcial, ela poderá se relacionar a apenas alguns atos processuais, bem como à redução percentual de despesas que o beneficiário tiver de adiantar no curso do processo.

O parágrafo sexto estabelece a possibilidade do juiz conceder o parcelamento das despesas processuais, enquanto o parágrafo sétimo dispõe que, em relação aos emolumentos mencionados no parágrafo primeiro, seu custeio deverá ser realizado com recursos da União, do Estado ou do DF, a depender da competência do processo, devendo o juiz, após o trânsito em julgado da ação, oficiar a fazenda pública do ente competente para que promova a execução contra a parte vencida, destacando que, se o vencido for o hipossuficiente, se operará a já mencionada suspensão da exigibilidade pelo prazo decadencial de cinco anos, período em que, havendo evolução patrimonial que afaste a hipossuficiência, a dívida poderá ser executada.

O parágrafo oitavo, por fim, também remete aos emolumentos, dispondo que, caso o notário ou registrador tenha dúvida quanto à hipossuficiência do jurisdicionado, poderá, após a prática do ato, requerer, ao juízo competente para decidir questões notariais ou registrais, a revogação total ou parcial do benefício, ou então a sua substituição pelo parcelamento previsto no supracitado parágrafo sexto, hipóteses em que o beneficiário será citado para, em 15 (quinze) dias, manifestar-se sobre a questão.

O artigo 99 dispõe sobre o momento em que a gratuidade deve ser pleitada, estabelecendo que ela poderá ser requerida na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro ou no recurso. Este artigo possui sete parágrafos de grande importância para a aplicação do instituto.

O parágrafo primeiro trata da hipótese em que a condição de hipossuficiência aparece em momento posterior ao da primeira manifestação da parte no processo, dispondo que, nesse caso, a gratuidade deve ser requerida por petição simples, nos autos do próprio feito. Embora o parágrafo não mencione, parece evidente que a petição deve vir instruída com provas que demonstrem a redução do poder financeiro do requerente. Este pedido, conforme disposto no mesmo parágrafo, não suspende o curso natural do processo.

O parágrafo segundo dispõe, in verbis, que “o juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos”. Percebe-se, portanto, menção expressão ao termo “pressupostos da gratuidade”, fazendo uma alusão a supostos critérios que o jurisdicionado teria que preencher para fazer jus ao benefício.

No parágrafo terceiro, consta previsão similar à do revogado artigo 4º da Lei 1.060/1950, determinando que a alegação de hipossuficiência formulada por pessoa natural presume-se verdadeira. Ou seja, dessa previsão pode se concluir que o ônus de provar a falsidade dessa afirmação seria da parte adversa, não podendo o magistrado, de ofício, ignorar essa presunção de veracidade.

O parágrafo quarto, por sua vez, dispõe que a gratuidade poderá ser concedida mesmo a quem seja assistido por advogado particular, enquanto o parágrafo quinto determina que, nessa hipótese de assistência por advogado particular, eventual recurso que versar exclusivamente sobre verba honorária deverá ser precedido de preparo, a não ser que o próprio advogado demonstre ser hipossuficiente e tenha a gratuidade concedida.

O parágrafo sexto dispõe sobre o caráter pessoal da gratuidade, que não se estende ao litisconsorte ou sucessor do beneficiário, devendo ser expressamente requerida por esses atores processuais para que seja concedida. O parágrafo sétimo, por fim, determina que, sendo a gratuidade requerida em recurso, o recorrente fica dispensado do preparo, sendo certo que, se o requerimento for indeferido, o relator deverá fixar prazo para o recolhimento.

No artigo 100, está prevista a possibilidade da parte adversa impugnar a gratuidade concedida a seu opositor processual, sendo cero que a impugnação pode ser oferecida na contestação (nos casos em que a gratuidade deferida tenha sido requerida na petição inicial); na réplica (para os casos em que tenha sido requerida na contestação); nas contrarrazões de recurso (nas hipóteses em que o pedido tenha sido deduzido em sede recursal); e através de petições simples, nos casos de pedido de gratuidade formulado de forma superveniente ou por terceiro que tenha ingressado no feito, hipóteses em que a impugnação deve ser ofertada no prazo de quinze dias, não havendo suspensão do processo.

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O artigo 100 contém somente seu parágrafo único, que dispõe que, em caso de revogação da gratuidade, a parte deverá arcar com o pagamento de todas as despesas que deixou de adiantar, sendo certo que, se for comprovada má-fé no requerimento que ensejou a concessão do benefício, ela poderá ser sancionada com multa de até dez vezes o valor devido de despesas processuais, que será revertido em favor da fazenda pública estadual ou federal, a depender da competência do processo, podendo, ainda, ser inscrita em dívida ativa.

O artigo 101 indica como a decisão que indeferiu a gratuidade deve ser atacada, dispondo que, via de regra, ela deve ser questionada por agravo de instrumento, exceto nos casos em que a decisão de indeferimento for proferida somente na sentença, hipótese em que a questão será rediscutida em sede de apelação.

O artigo 101 contém dois parágrafos, dispondo o primeiro que o recurso que atacar decisão que indeferiu a gratuidade estará dispensado do preparo; e o segundo que, sendo confirmada a decisão que indeferiu ou revogou o benefício, o recorrente será intimado para recolher as custas no prazo de 5 (cinco) dias, sob pena de não conhecimento do recurso.

O último artigo sobre a gratuidade é o 102, que dispõe que, transitando em julgado a decisão que revogou a gratuidade inicialmente concedida, a parte deverá efetuar o pagamento de todas as despesas que deixou de adiantar, inclusive as relativas a eventuais recursos, no prazo que o juiz fixar, sem prejuízo das sanções previstas em lei.

Por fim, compete citar a previsão do parágrafo único do artigo 102, no sentido de que, não sendo recolhidas as custas no prazo fixado, ocorrerá a extinção do processo sem resolução de mérito, quando a decisão se referir ao autor; ou a proibição da prática de qualquer ato ou diligência processual até que ocorra o recolhimento, para os casos que em a decisão atingir o réu ou eventual terceiro que participar do feito.

São esses, portanto, os dispositivos legais que o Código de Processo Civil reservou para a regulamentação da gratuidade de justiça. Embora o termo “pressupostos da gratuidade” seja mencionado no parágrafo segundo do artigo 99, esses pressupostos não estão estabelecidos em lugar nenhum da lei, de modo que o único critério que deveria ser exigido é aquele previsto no parágrafo terceiro do artigo 99, que, ao dispor que a afirmação de insuficiência deduzida por pessoa natural tem presunção de veracidade, remete a antiga declaração de hipossuficiência prevista no revogado artigo 4º da Lei 1.060/1950.

Nesse sentido, esclarece Alexandre Câmara:

 

“Não obstante o texto constitucional afirme que a assistência jurídica integral e gratuita (que inclui, evidentemente, a gratuidade no acesso ao Judiciário, embora não a esgote) seja assegurada a quem comprovar insuficiência de recursos, as pessoas naturais a ela fazem jus independentemente de produção de qualquer prova. Assim já era ao tempo da vigência do art. 4º da Lei 1.060/1950 (agora expressamente revogado), e assim é por força do art. 99, § 3º, cujo texto estabelece que se presume “verdadeira a alegação de insuficiência [de recursos] deduzida exclusivamente por pessoa natural”. Trata-se, evidentemente, de uma presunção relativa, iuris tantun, que pode ser afastada por prova em contrário (mas é importante notar o seguinte: ao juiz não é dado determinar à pessoa natural que produza prova que confirme a presunção, determinação esta que contrariaria o disposto no art. 374, IV). Admite-se, apenas, que a parte contrária produza prova capaz de afastar a presunção relativa, o que dependerá do oferecimento de impugnação à gratuidade de justiça.” (CÂMARA, 2016, p. 76, grifos nossos)

 

Mencionado por Alexandre Câmara, o artigo 374, inciso IV, do CPC determina que não dependem de prova os fatos cujo a favor milita presunção legal de veracidade, como ocorre no caso da afirmação de hipossuficiência, por força do já citado parágrafo terceiro do artigo 99.

Ou seja, diante da ausência de demais critérios objetivos, tem-se que o único a ser seguido é a verificação da afirmação de insuficiência de recursos, não podendo o magistrado fazer qualquer outra exigência para conceder a gratuidade, a menos que seja provocado nesse sentido, através de petição de impugnação.

No entanto, lamentavelmente, não é o que ocorre na prática. Este subscritor, no exercício da advocacia, já se deparou com inúmeras situações em que partes que não possuíam quaisquer condições de arcar com despesas processuais tiveram a gratuidade indeferida em razão do julgador ter entendido não estar demonstrada a hipossuficiência econômica, sem sequer ter havido impugnação da parte adversa, o que acabou por obstar o prosseguimento do feito.

Tem-se, portanto, que o quadro fático existente é o de ausência de critérios objetivos na legislação para a concessão da gratuidade de justiça, e a única previsão que se assemelha a um pressuposto (a de que basta a afirmação de hipossuficiência) não é aceita pela maioria dos magistrados, o que configura perigosa violação à garantia constitucional do acesso à justiça, e deve ser debatida, urgentemente, por toda a comunidade jurídica brasileira, a fim de evitar situações inconstitucionais como as que serão abordadas no tópico seguinte.

 

 

3. A PERIGOSA DISCRICIONARIEDADE DO MAGISTRADO BRASILEIRO PARA A CONCESSÃO DA GRATUIDADE DE JUSTIÇA.

A expressão “insuficiência de recursos”, prevista no inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição e no artigo 98 do CPC, remete a alguém que não dispõe de verba suficiente para o custeio das despesas de um processo, sendo certo que essa insuficiência pode estar presente mesmo que o jurisdicionado perceba um salário acima do padrão da maioria, visto que suas despesas ordinárias também precisam ser levadas em conta.

Desse modo, é perfeitamente possível que alguém que receba cinco ou seis salários mínimos, o que é superior a renda de 80% dos brasileiros, segundo pesquisa Oxfam Brasil/Datafolha publicada em 2017 (vide referências), não possua recursos para custeio de uma ação judicial, em razão de suas despesas mensais com saúde, educação, moradia, mantimentos para o lar, entre outros.

Assim, diante da ausência de critérios objetivos previstos na legislação, não poderia o magistrado se recusar a aceitar a mera afirmação de insuficiência do jurisdicionado, uma vez que, se a afirmação for falsa e restar demonstrado que, mesmo com suas despesas mensais, haveria sobra financeira para o pagamento das despesas processuais, incidiria a penalidade de até 10 (dez) vezes o valor das custas, prevista no parágrafo único do artigo 100 do CPC. Desse modo, não haveria motivos para o requerente mentir, visto que, se a parte adversa impugnar e demonstrar a falsidade da afirmação, esta má-fé teria um preço muito alto.

O que se pretende afirmar é que cada pessoa sabe de suas possibilidades financeiras, motivo pelo qual o legislador estabeleceu como único critério objetivo para a concessão da gratuidade a “mera afirmação de insuficiência”, de modo que há flagrante ilegalidade nas decisões de juízes que exigem, sem provocação, qualquer outra prova dessa insuficiência, conforme lição de Alexandra Câmara, já consignada nesse texto.

No entanto, lamentavelmente essa ilegalidade dos magistrados é vista com normalidade pela comunidade jurídica, visto que é raro um advogado questionar um despacho que ignore a declaração de hipossuficiência e determine a juntada de comprovantes de renda e declaração de bens e rendimentos entregues à receita federal, exigência esta que, inclusive, viola o sigilo fiscal do jurisdicionado, uma vez que a informação fica pública no processo, para qualquer um que quiser acessar.

Esse conformismo dos advogados, que não questionam estes despachos ilegais, abre caminho para um cerceamento judicial ao acesso à justiça, visto que as partes do processo ficam reféns de uma análise subjetiva do julgador, que, de acordo com critérios próprios, vai decidir se defere ou não a gratuidade, sendo certo que, muitas vezes, o indeferimento impede o prosseguimento do processo, pois a parte, apesar de receber um bom salário, pode realmente não ter condições de custear as despesas processuais, em razão das despesas ordinárias que possuir.

Nesse cenário, o ideal seria que a legislação fosse cumprida e que a mera afirmação de insuficiência bastasse. No entanto, como a exigência de documentos pelos juízes já é prática enraizada nos tribunais de todo país, é preciso, com urgência, que sejam estabelecidos critérios objetivos para a concessão da gratuidade, a fim de limitar essa perigosa discricionariedade do magistrado, que, por muitas vezes, contribui tão somente para violar o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição.

Atentos a essa perigosa discricionariedade, a quarta turma do Tribunal Regional Federal da quarta região proferiu, no ano de 2008, acórdão no sentido de que a gratuidade deveria ser concedida a todos aqueles que receberem valores inferiores a dez vezes o salário-mínimo nacional, e aos que, recebendo mais que isso, demonstrarem que, mesmo assim, não lhe sobram recursos para o pagamento das despesas processuais, como se verifica na decisão abaixo destacada:

 

IMPUGNAÇÃO AO BENEFÍCIO DA JUSTIÇA GRATUITA. RENDA MENSAL LÍQUIDA INFERIOR A 10 (DEZ) SALÁRIOS MÍNIMOS. PRECEDENTES. O benefício da justiça gratuita, previsto na Lei n.º 1.060/50, é devido àqueles que percebem valores inferiores à quantidade de dez vezes a remuneração básica do trabalhador brasileiro, e àqueles que percebem valores superiores a este parâmetro, desde que comprovem ser insuficiente para arcar com o pagamento das despesas processuais. (TRF-4 - AC: 43322 RS 2007.71.00.043322- 5, Relator: EDGARD ANTÔNIO LIPPMANN JÚNIOR, Data de Julgamento: 03/12/2008, QUARTA TURMA, Data de Publicação: D.E. 19/12/2008)

 

Embora tenha sido proferida sob a égide da Lei 1.060/1950, esta decisão também guarda compatibilidade com o regulamento atual da gratuidade de justiça, visto que o parágrafo terceiro do artigo 99 do CPC tem a mesma essência que o revogado artigo 4ª da antiga legislação.

Esse precedente, no entanto, não foi seguido pela maioria dos juízes, que permaneceram adotando critérios próprios para a análise dos pedidos de gratuidade, criando um cenário de absoluta insegurança jurídica. Esse subscritor, por exemplo, já assistiu clientes que tiveram a gratuidade deferida em um processo e indeferida em outro, sem que houvesse qualquer diferença na documentação apresentada aos respectivos juízes, o que mostra como é perigosa essa discricionariedade. Nesse caso específico, compete esclarecer, o jurisdicionado percebia três salários mínimos de renda mensal, o que foi suficiente para um juiz lhe deferir o benefício, mas foi insuficiente para outro, que entendeu que, com esse salário, seria possível arcar com as custas do processo, esquecendo que todo cidadão possui despesas fixas que precisam ser honradas para que sejam preservadas suas condições de ter uma vida digna.

Dessa forma, considerando as necessidades que todos possuem para a manutenção de sua dignidade, bem como todos os recursos financeiros que devem ser despendidos para essa finalidade, conclui-se que a solução adotada pelo TRF4 parece adequada, visto que, com uma renda mensal de 10 (dez) salários-mínimos, é possível, via de regra, que o cidadão arque com todos as despesas necessárias para a efetivação de seus direitos fundamentais e ainda lhe sobre recursos para custear as despesas de uma ação judicial.

No entanto, em razão da ausência de força vinculante deste precedente, se faz necessária uma atuação do legislador, de modo a estabelecer critérios objetivos a serem observados pelo magistrado na ocasião de decidir sobre a concessão da gratuidade de justiça, com o escopo de preservar o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição.

Compete destacar que, no estado do Amapá, vigorava a Lei Estadual nº. 933/2005, isentando do pagamento da taxa judiciária pessoas que tivessem renda de até dez salários-mínimos, o que ia ao encontro do espírito do supracitado precedente. Esse diploma, no entanto, foi alvo da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 3629, julgada procedente em março de 2020, sob o fundamento de que, após a EC 45/2004, a iniciativa de lei sobre custas judiciais foi reservada ao poder judiciário, que, na forma do artigo 99, parágrafo 1º, da Constituição, deve elaborar suas propostas orçamentárias conjuntamente com os demais poderes, dentro da Lei de Diretrizes Orçamentárias.

Assim, a referida legislação foi afastada do mundo jurídico por vício de iniciativa, sem, no entanto, ter seu mérito enfrentado. Ou seja, o STF não se pronunciou sobre a estipulação de critérios para fins de concessão da gratuidade de justiça, o que precisa ser feito o quanto antes, a fim de sanar o obscuro cenário de insegurança jurídica existente sobre o referido instituto.

O ideal seria que o Congresso Nacional alterasse o Código de Processo Civil, para que fossem indicados quais seriam os pressupostos da gratuidade mencionados no parágrafo segundo do artigo 99. No entanto, como o Supremo, na ADIN supracitada, já manifestou entendimento no sentido de que o poder judiciário deve participar da iniciativa de projeto de lei que se relacione às suas fontes de arrecadação, não parece que a alteração legislativa seja o caminho mais célere para estabelecer esses pressupostos, visto que isso diminuiria a discricionariedade dos magistrados, algo que talvez não seja bem-visto pelos órgãos de cúpula dos tribunais.

Nesse sentido, caberia ao Supremo Tribunal Federal, que não é composto somente de juízes de carreira, a missão de estabelecer um precedente vinculante a ser observado pelos tribunais do país, retirando da mão dos juízes de piso a ampla discricionariedade que eles possuem para deferir ou indeferir a gratuidade de justiça aos jurisdicionados.

Um das formas possíveis de provocar o STF a se manifestar sobre a questão seria através do ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), na forma do artigo 103, parágrafo 2º, da Constituição, alegando que o parágrafo 3º do artigo 99 do CPC, ao não indicar quais seriam os pressupostos da gratuidade, recai em omissão que o torna inconstitucional, visto que permite aos magistrados cercearem o jurisdicionado em sua garantia constitucional de acesso à justiça.

No entanto, no caso da ADO, a decisão tomada só teria o condão de declarar a inércia do legislativo, sem poder compeli-lo a editar as normas necessárias, visto que isso violaria a separação dos poderes. Desse modo, a outra alternativa seria uma decisão proferida em um caso concreto, que pode decorrer de um Mandado de Injunção, previsto no artigo 5º, inciso LXXI, da Constituição, hipótese em que, embora haja discussão se os efeitos gerados seriam erga omnes ou apenas inter partes, é certo que a decisão configuraria um precedente mais robusto do que o já existente no TRF4, visto que emanado da principal corte do país.

A diferença do Mandado de Injunção para a ADO é que esta tem rol de legitimados expresso no artigo 103 da Constituição, enquanto aquela se constitui em direito subjetivo, que pode ser invocado mediante ação proposta por qualquer pessoa que tenha um direito constitucional violado em razão da ausência de regulamentação da matéria. A hipótese, portanto, se amolda perfeitamente ao instituto da gratuidade de justiça, visto que a ausência de critérios objetivos gera ampla discricionariedade para os magistrados indeferirem o benefício, prejudicando o direito constitucional de acesso à prestação jurisdicional.

O Mandado de Injunção, dessa forma, se mostra uma ferramenta mais efetiva do que a ADO, pois permite a prolação de decisão que concretize o direito atingido pela omissão. Em outras palavras, se provocado, via Mandado de Injunção, a se manifestar sobre a ausência de critérios objetivos para a concessão da gratuidade de justiça, o STF poderia, além de declarar a inércia do legislativo, estabelecer um parâmetro a ser observado até que o Congresso legisle sobre a matéria, como ocorreu no caso do direito de greve dos servidores públicos, em que a Corte, nos autos dos Mandados de Injunção 670, 708 e 712, além de declarar a omissão do Congresso em legislar sobre a matéria, determinou a aplicação da regulamentação vigente para as greves do setor privado até que cesse a omissão legislativa.

Não obstante, além da possibilidade do precedente ser firmado via Mandado de Injunção, ele também pode decorrer de decisão proferida em qualquer caso concreto em que a parte, inconformada com o indeferimento da gratuidade, galgar todas as instâncias recursais até chegar ao STF

Ou seja, independente do meio utilizado, é necessário que o Supremo Tribunal Federal se manifeste sobre o assunto, de modo a estabelecer quais seriam os pressupostos da gratuidade mencionados no parágrafo terceiro do artigo 99 do CPC, visto que o cenário atual, além de causar enorme insegurança jurídica, prejudica demasiadamente diversos direitos fundamentais dos jurisdicionados.

Como exemplo do perigo que essa ampla discricionariedade do magistrado representa, cumpre citar o Provimento nº 80 de 2011 da Corregedoria Geral de Justiça do Rio de Janeiro, que, em seu artigo 2º, parágrafo 2º, dispõe o seguinte: Não dispensa o pagamento das custas e taxa, nem autoriza a restituição daquelas já pagas, a desistência recursal e o recurso declarado deserto, seja por intempestividade ou por irregularidade no preparo, falta de preparo ou preparo insuficiente”.

O provimento acima mencionado disciplina o recolhimento de custas no âmbito dos Juizados Especiais, que, embora dispensadas no primeiro grau, são cobradas em caso de recurso, na forma do artigo 54, parágrafo único, da Lei 9099/95, que determina o seguinte:

 

Art. 54. O acesso ao Juizado Especial independerá, em primeiro grau de jurisdição, do pagamento de custas, taxas ou despesas.

Parágrafo único. O preparo do recurso, na forma do § 1º do art. 42 desta Lei, compreenderá todas as despesas processuais, inclusive aquelas dispensadas em primeiro grau de jurisdição, ressalvada a hipótese de assistência judiciária gratuita.

 

Ou seja, embora o acesso ao Juizado seja gratuito para todos no primeiro grau, deverá a parte, em caso de recurso, recolher as custas processuais, salvo no caso de ser beneficiária da justiça gratuita.

No entanto, como a legislação não estabelece critérios objetivos para a concessão da gratuidade de justiça, e como, em sede de Juizados Especiais, a apreciação do requerimento do benefício só ocorre no momento de interposição do recurso, o quadro fático que se apresenta é o de que, diversas vezes, a parte tem a gratuidade indeferida na ocasião em que interpõe o recurso, o que a leva a desistir de atacar a sentença, por não possuir condições de arcar com as custas, e, mesmo assim, fica obrigada ao pagamento das despesas processuais, por força da previsão contida no supracitado provimento da CGJ/RJ.

A situação é, de toda sorte, absurda. Ora, se a parte não recolheu as custas do recurso, quer dizer que ele sequer chegou a ser distribuído para a Turma Recursal, não saindo do primeiro grau de jurisdição, motivo pelo qual não deveria incidir a cobrança das despesas, sendo certo que, caso essas despesas não sejam pagas, será emitida certidão de débitos judiciais para inscrição em dívida ativa e protesto nos cartórios de de títulos, gerando enormes transtornos para o jurisdicionado, que, além de não ter garantido seu acesso à justiça de forma plena, ainda será alvo de uma execução fiscal e ficará com o acesso ao crédito comprometido.

Ou seja, a discricionariedade que o magistrado possui para deferir ou não a gratuidade coloca o jurisdicionado em uma situação de absoluta insegurança jurídica, pois, em sede de Juizados Especiais, a parte fica sem saber se poderá recorrer da sentença que julgou improcedente algum de seus pedidos, pois, caso a gratuidade seja indeferida, incidirá a cobrança de custas mesmo se houver desistência do recurso, o que é extremamente desproporcional e evidencia os perigos da ausência de critérios objetivos para a concessão da justiça gratuita.

Em sede de justiça comum, a discricionariedade do magistrado para a concessão da gratuidade de justiça também se mostra extremamente perigosa para o jurisdicionado, o que decorre de dois motivos: (i) o indeferimento injusto da gratuidade impede o cidadão de ter acesso à justiça, violando uma garantia constitucional e (ii) em algumas comarcas, a sentença que cancela a distribuição da ação por ausência do pagamento de custas também condena a parte ao recolhimento dessas custas, mesmo que o processo sequer tenha se estabelecido.

A primeira hipótese já foi abordada ao longo do estudo, motivo pelo qual não é necessário relembrar o quão afrontoso à Constituição é um injusto indeferimento da gratuidade de justiça. A segunda hipótese, no entanto, é ainda mais grave, pois, além de cercear o acesso do cidadão à justiça, alguns magistrados determinam o pagamento de custas mesmo em caso de distribuição cancelada por ausência de recolhimento.

Alguns tribunais, é verdade, tem reformado sentenças que cancelam a distribuição e mesmo assim condenam a parte ao pagamento das custas, conforme decisão abaixo destacada, do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais:

 

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - EXTINÇÃO DO PROCESSO - AUSÊNCIA DE RECOLHIMENTO DE CUSTAS INICIAIS - CONDENAÇÃO AO PAGAMENTO DE CUSTAS E DESPESAS PROCESSUAIS - IMPOSSIBILIDADE. - Conforme dispõe o art. 290 do NCPC, a ausência de recolhimento das custas iniciais enseja o cancelamento da distribuição, tratando-se de decisão de caráter meramente administrativo, porquanto exarada em fase pré-jurisdicional, pelo que se a ação sequer foi processada, não é razoável se falar em condenação ao pagamento de custas processuais na sentença extintiva. Ao contrário, incorrer-se-ia em inevitável paradoxo, uma vez que, se as custas fossem pagas, a consequência seria a distribuição da ação e não a sua extinção. (TJ-MG - AC: 10000181409061002 MG, Relator: Maurício Soares, Data de Julgamento: 23/04/2020, Data de Publicação: 28/04/2020)

 

Percebe-se que, no caso concreto acima, a parte teve que recorrer à segunda instância para se livrar do ônus da pagar custas por um processo cuja distribuição foi cancelada justamente pela impossibilidade financeira de pagar as custas.

No exemplo acima, o segundo grau reestabeleceu a ordem constitucional e disse o que é óbvio: sendo cancelada a distribuição, não pode haver a incidência de custas, visto que o processo não se consolidou. Esse óbvio, no entanto, não vem sendo observado pelos juízes de piso, evidenciando, novamente, como a ausência de critérios objetivos para a concessão da gratuidade de justiça é perigosa para a efetivação dos direitos fundamentais.

O jurisdicionado, quando se socorre do judiciário, é porque se viu violado em algum dos seus direitos, dentre os quais muitos podem ser considerados fundamentais. Em uma ação possessória, por exemplo, estão em jogo direitos decorrentes do direito à propriedade, que é direito fundamental previsto no caput do artigo 5º da Constituição. Desse modo, quando uma Ação Possessória não avança em razão do injusto indeferimento da gratuidade, não é só princípio da inafastabilidade da jurisdição que está sendo violado, mas também o próprio direito à propriedade. O mesmo vale, por óbvio, a todos os outros direitos fundamentais. Quando um magistrado indefere de forma indevida a gratuidade de justiça, ele está violando a garantia do acesso à justiça, mas também o direito que aquele jurisdicionado pretendia que fosse protegido. Ou seja, a ausência de critérios objetivos para a concessão da gratuidade permite que princípios constitucionais sejam seguidamente violados, algo que não deveria ser admitido em um Estado Democrático de Direito.

 

 

CONCLUSÃO

Realizadas essas breves considerações acerca da gratuidade de justiça no ordenamento jurídico brasileiro, a conclusão que se alcança é de que a legislação infraconstitucional é omissa, e essa omissão gera severos prejuízos à efetivação dos direitos fundamentais.

Esses prejuízos, é verdade, não decorrem simplesmente da omissão do legislador, pois, embora o artigo 99 do CPC não delimite quais são os pressupostos da gratuidade, ele prevê que a afirmação de insuficiência deduzida por pessoa física tem presunção de veracidade. Desse modo, quem mais prejudica os direitos dos cidadãos são os juízes de piso que criam seus próprios critérios, e, com base neles, indeferem a gratuidade e violam a garantia constitucional do acesso à justiça.

Assim, considerando que o quadro fático é de conformismo dos advogados em relação a essa atuação dos magistrados, a única alternativa capaz de assegurar de forma efetiva o princípio da inafastabilidade da jurisdição seria a delimitação de critérios objetivos para a concessão da gratuidade de justiça.

Esses critérios, que podem advir de alteração legislativa realizada pelo Congresso ou de fixação de precedente vinculante pelo STF, não podem ser pautados exclusivamente na renda percebida pelo jurisdicionado, devendo considerar, também, as despesas que cada cidadão precisa ter para desfrutar de uma vida digna. Assim, o ideal seria estabelecer um valor de renda líquida para fins de concessão do benefício, desconsiderando os gastos despendidos para a efetivação dos direitos de moradia, saúde, educação e até mesmo de lazer, dentro de um critério de razoabilidade, uma vez que também se trata de direito social fundamental, garantido pelo artigo 6º da Constituição. Dessa forma, uma solução seria exigir que o litigante, ao requerer a gratuidade, apresentasse seu comprovante de rendimentos, bem como uma planilha dos valores gastos por mês para a efetivação de cada um desses direitos, a fim de delimitar qual seria a “sobra” que poderia ser gasta com o pagamento das custas. Se essa sobra fosse superior ao parâmetro objetivo estipulado pela legislação ou pelo precedente vinculante, a gratuidade seria indeferida. Se fosse igual ou inferior, seria deferida, sendo garantida à parte adversa o direito de impugnar os documentos apresentados.

A solução acima, é claro, é somente uma sugestão. Outras devem ser apresentadas. O assunto precisa ser discutido. A OAB, como órgão de classe dos advogados, deve incentivar esse debate. O mesmo vale para o Ministério Público, que, como fiscal da lei, deveria cobrar a efetivação dos direitos fundamentais e questionar a conduta de magistrados que atuam de modo a cercear o acesso à justiça. O direito comparado, que não foi abordado nesse artigo, pode servir de exemplo para o Brasil. É preciso pesquisar experiências que deram certo em outros países e trazer para cá. Em suma, é preciso debater e solucionar a questão. E com urgência, pois, a cada gratuidade injustamente indeferida, menos efetivo se torna o nosso sistema constitucional de direitos fundamentais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988, Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

BRASIL, Lei nº. 1.060, de 05 de fevereiro de 1950, Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1060.htm

BRASIL, Lei nº. 13.105, de 16 de março de 2015, Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm

BRASIL, Lei nº. 9.099, de 26 de setembro de 1995, Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm

CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Código de Processo Civil Brasileiro. 3ª Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2016.

PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional descomplicado. 7º Edição: São Paulo: Método, 2011.

80% DOS BRASILEIROS têm renda per capita inferior a R$ 1,4 mil. Observatório do terceiro setor, 07 de dezembro de 2017. Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/noticias/80-dos-brasileiros-tem-renda-per-capita-inferior-r-14-mil/, Acesso em: 20 de jun. de 2020

 

Sobre o autor
Davi de Lima Pereira da Silva

Procurador-Geral do Município de Areal/RJ; Especialista em Direito Administrativo; Fundador e sócio licenciado do Escritório "Lima, Pacheco & Arruda Advogados Associados"; Pós-Graduando em Direito Constitucional, Direito Tributário, Direito Ambiental, Gestão Pública e Direitos Humanos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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