Liberdade para quem?Os conceitos de homem, de cidadania e do direito do outro.

Breves considerações sobre o alcance da declaração dos direitos do homem e do cidadão no contexto pós-Revolução Francesa

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08/07/2020 às 19:54
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O presente trabalho propõe um breve e sintético estudo sobre o alcance sociológico e jurídico dos conceitos de Homem, de Cidadania e do Direito do Outro, na França, no contexto das três fases pós-Revolução Francesa.

INTRODUÇÃO

O assunto central deste trabalho está no capítulo 5, Primeira Parte, da obra “O Fim dos Direitos Humanos”, de Costas Douzinas, cujo cerne trata das diversas conotações, alcances e limitações que os termos “Homem” e “Cidadão”, presentes na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Constituição da França, de 1789) podem assumir na França e nas Cartas Constitucionais de todo o mundo, pontualmente no contexto Pós-Revolução Francesa de 1789. Tal evento, o qual encerrou o período do Antigo Regime, marcou a passagem de um Estado cujo fundamento estava em um Direito Divino, passando para o entendimento de que o homem e suas liberdades (Direitos de Liberdade) seriam o fundamento desse novo Estado, outrora chamado Absolutista. Em que pese o caráter universal com que inicialmente foi promulgada a Declaração, os referidos termos não se destinavam a todo e qualquer ser humano, havendo então restrições na aplicação completa de seu sentido, as quais estavam ligadas às divergências e às particularidades filosóficas internas inerentes por ocasião da formação do Estado-Nação francês.

Assim, na primeira parte, tem-se o contexto interno no qual eclodiu a Revolução Francesa, com a ruptura da ordem da Modernidade, representada pelo Rei Absolutista e os Três Estados (Clero, Nobreza e Burguesia/Povo), cuja característica principal estava no acúmulo de funções e de privilégios em mãos do Rei e do Primeiro (Clero) e Segundo Estados (Nobreza), em detrimento do Terceiro – Burguesia (grandes comerciantes) e Povo (pequenos comerciantes, camponeses, artesãos, classe média urbana). Tais funções e privilégios consistiam principalmente no acúmulo das funções de governar, de legislar, de administrar e de julgar (pelo Rei) e nas benesses de isenção de impostos, de acúmulo de bens e rendas e de exercício de cargos públicos (pelo Primeiro e Segundo Estados).

Na segunda parte, a partir da Revolução, discutir-se-á a abrangência de tais termos na França, os quais passaram a estar vinculados aos Direitos de Liberdade relacionados principalmente à propriedade e ao exercício do direito de voto, em rompimento aos valores do Antigo Regime. Essa segunda parte será didaticamente dividida conforme as Três Fases da Revolução, visto que a referida discussão sobre o alcance semântico dos termos "Homem" e "Cidadania" assumiu conotações diversas em cada um desses períodos, pois esteve relacionada às lutas internas dos Três Estados, os quais tentaram cada qual assumir o protagonismo da representação política e, consequentemente, do poder decisório. Assim, ora de caráter elitista, ora de caráter popular, as três fases (1ª, 2ª e 3ª) foram de 1789 a 1799 e consistiram, respectivamente na Assembleia Nacional Constituinte (1789-1792); na Convenção Nacional (1792-1795); e no Diretório (1795-1799), quando então tem início a Era Napoleônica (até 1815).

Assim, no primeiro momento da segunda parte, tratar-se-á da Primeira Fase, a da Assembleia Nacional Constituinte, a qual caracterizou-se pelo rompimento do Antigo Regime, mediante a introdução da Monarquia Constitucional (ou Monarquia Parlamentar), onde houve a limitação dos poderes do Rei pelo Parlamento, este escolhido através do voto censitário. As principais questões a serem desenvolvidas neste tópico estarão diretamente relacionadas aos Direitos de Liberdade oriundos da Declaração sendo: (a) em que consistia o voto censitário, (b) quem tinha o direito de exercê-lo, e (c) qual representação política era oriunda dele. A problemática daí advinda terá por consequência imediata a limitação dos conceitos de Homem e de Cidadão presentes na Declaração e o conflito entre os Três Estados, de forma a produzir uma revolução dentro da Revolução, na qual os populares tomaram o Poder.

O segundo momento da segunda parte tratará da Fase mais popular e radical da Revolução, a da Convenção Nacional, e caracterizar-se-á pelo direito de resistência exercido pelos indivíduos excluídos pelo conceito de Homem e de Cidadão imposto na anterior. Neste período, na tentativa de ampliar a semântica supra referida, algumas conquistas foram implementadas, a exemplo do sufrágio universal masculino (ampliação do direito de voto e, por consequência, da representação política no Parlamento) e a reforma agrária (direito de propriedade é relativizado mediante o confisco de bens do Clero e da Nobreza).

No terceiro momento da segunda parte, a do Diretório, há a retomada do poder político pela alta Burguesia através da deposição do Rei, em seu lugar, a França passa a ser governada por uma Comissão (Diretório), cujos interesses giravam em torno das ameaças exercidas tanto pelo Antigo Regime como pela República Democrática Jacobina. Para evitar o retorno às Fases anteriores, foi elaborada uma nova Constituição, que suprimiu os direitos anteriormente conquistados pelos populares. Contudo, a nova Carta não foi suficiente para apaziguar os ânimos internos e externos, como adiante demonstrar-se-á, pois persistiram as tensões entre o local e o universal, provocando uma espécie de paradoxo.

No quarto momento da segunda parte, tratar-se-á do Direito do Outro, dentro do contexto do paradoxo supracitado, gancho para a terceira parte, na qual será tratado do referido paradoxo, promovido pela Declaração entre os âmbitos local e universal, construindo uma falsa universalidade a partir da exclusão de indivíduos destinatários dos Direitos de Liberdade. Com a Era Napoleônica (1799-1815), houve a expansão dos ideais franceses pelo mundo, atingindo principalmente os Estados Unidos, a Inglaterra e o Brasil, com a recepção dos referidos Direitos nas Cartas americana, inglesa e brasileira, respectivamente.

No primeiro momento da terceira parte e, considerando a falsa universalidade advinda da exclusão de uma série de destinatários dos Direitos de Liberdade da Declaração, mostrar-se-á de que forma tais Direitos ingressaram na Constituição Americana, cuja premissa estava ligada à independência institucional da Grã-Bretanha e a direitos de liberdade de viés econômico, principalmente relacionados ao consumo e ao livre mercado, como fruto das relações oriundas da Revolução Industrial - "o sonho americano". Ainda nesse primeiro momento da terceira parte, tem-se a influência da Declaração Francesa na Inglaterra, caracterizada por ser meramente declaratória de direitos naturais preexistentes, assim como nos Estados Unidos, em especial advindos da Carta Magna, da Lei do Habeas Corpus e da Declaração de Direitos (Bill of Rights).

No segundo momento da terceira parte, será apresentada a influência da Constituição Francesa na Constituição do Império do Brasil de 1824, chamada de Constituição da Mandioca, e como ela atuou na formação dos conceitos de Homem e de Cidadão no Império brasileiro. Ao contrário das Cartas norte-americana e inglesa, as quais simplesmente recepcionaram os princípios da Declaração francesa como direitos naturais pré-existentes, a Constituição brasileira representou um rompimento institucional com Portugal, desconstituindo uma ordem anterior e inaugurando uma nova ordem, com a construção da identidade política do novo País. Nesse interim, a introdução do voto censitário consistiu em um dos instrumentos que ergueram a representação política do Brasil, de maneira a excluir os anseios populares do novo País, como tem sido até os dias atuais.

Por fim, serão apresentadas as considerações finais sem a intenção de esgotar o tema proposto, mas sim apenas o de apresentar um panorama geral sobre o assunto.


1. A FRANÇA PRÉ-REVOLUCIONÁRIA

Para introduzir o tema dos Direitos do Homem e do Cidadão na Declaração, faz-se necessária a análise do contexto histórico imediatamente anterior, cujo regime político vigente, desde o século XVI, era o Absolutismo. Baseado na teoria central de que o poder do Rei vinha de Deus tal Antigo Regime sustentou as monarquias europeias, sendo legitimado por teóricos como Nicolau Maquiavel (1), Thomas Hobbes (2), Jacques Bossuet (3) e Jean Bodin (4), dentre outros.

A ideia comum a tais Teóricos era a de que, no Absolutismo, o poder político estava centralizado (5) nas mãos do Rei, que detinha as funções de última instância, de administrar, de governar, de legislar e de julgar, confundindo sua figura com a do Estado. Por ocasião da França pré-revolucionária, de população em maioria rural, havia uma organização social chamada de Três Estados (6), na qual o Primeiro Estado era composto pela Igreja; o Segundo, pela Nobreza, pelos Militares e pelos Juízes; o Terceiro, pela Burguesia, pelos Trabalhadores Urbanos (Operários das Fábricas) e pelos Trabalhadores Rurais (Camponeses). Dos três grupos, somente os dois primeiros possuíam altos privilégios como propriedades e isenções fiscais, benefícios esses sustentados pelo Terceiro Estado, que vivia sobretaxado e na miséria.

A Família Real, o Primeiro e o Segundo Estados, na ocasião pré-revolucionária, viviam uma vida de luxo, com banquetes e festas custeados pelo dinheiro público, enquanto que o Terceiro Estado (Burgueses e Povo) vivia uma vida miserável, em meio à grave crise político-econômica que assolava a França, ocasionada por enormes gastos com guerras externas, bem como pela seca que atingiu o País em 1785, o que fez com que houvesse escassez e inflação de alimentos. Em 1789, viviam na França cerca de 28 milhões de habitantes (7), na maioria camponeses vivendo em situação de extrema miséria dados os privilégios da Família Real, do Primeiro e do Segundo Estados, de maneira que tais fatos levaram o País a um déficit das contas públicas.

À crise financeira somam-se a crise política, com um chefe de Estado que acumulava funções, como já dito; a crise social, com um País com grandes diversidades regionais oriundas da crise e que lutavam contra a centralização administrativa, principalmente no que concerne a taxas e aos impostos, retidos na sua maior parte pela Coroa - somente no norte da França, havia cerca de 300 costumes diferentes (8) no que se referia à tributação; e a crise ideológica, com os conflitos entre os Três Estados sendo alimentados pelas ideias Iluministas, as quais pregavam a Igualdade de Condições entre as Classes e o Culto à Razão, em contraponto à ideologia do Antigo Regime, a qual se caracterizava pela estratificação social promovida pelos Três Estados e o Catolicismo.

O Culto à Razão foi a base da Revolução Francesa e a base da ideia de Homem Abstrato que se seguiu, como adiante demonstrar-se-á, contrapondo-se à Religião Católica, mediante a negação do Culto ao Ser Supremo, que Tocqueville (9) chama de irreligiosidade:

No fim do antigo regime as coisas eram diferentes. Tínhamos perdido tão completamente a prática dos grandes negócios humanos e tanto ignorávamos a parte representada pela religião no governo dos impérios, que a incredulidade estabeleceu-se primeiro no espírito daqueles que tinham o interesse mais pessoal e mais premente em manter o Estado na ordem e o povo na obediência. Não se contentaram em acolhê-la: na sua cegueira foram espalhá-la à sua volta. Fizeram da impiedade uma espécie de passatempo de sua vida ociosa.

(...)

O descrédito universal no qual caíram todas as crenças religiosas, no fim do século passado, exerceu sem dúvida uma grande influência sobre toda nossa Revolução: marcou seu caráter. Nada contribuiu mais poderosamente a dar a sua fisionomia esta terrível expressão que nela se viu. Quando procuro distinguir os diferentes efeitos produzidos então pela irreligiosidade na França, vejo que foi muito mais ao degradar os espíritos que ao degradar os corações, ou mesmo ao corromper os costumes, que dispôs os homens daquela época a chegar a extremos tão singulares.

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O Culto à Razão vai além do mero culto ao Homem, tal como foi no Renascimento: cultua mártires de carne e osso e nega a devoção a Deus, sendo por isso considerada a primeira religião política da Era Moderna. Joseph Fouché foi um dos principais divulgadores dessa nova religião pois, na Primeira Fase da Revolução, liderou uma campanha em que várias Igrejas e Sinagogas da França foram despojadas de suas imagens e símbolos religiosos, com o intuito de consolidar a centralização de todas as reverências e homenagens na figura do Homem – Culto do Homem Abstrato.

Dessa forma, objetivando solucionar a crise geral instalada, bem como salvar a Monarquia, o Rei Luís XVI propõe algumas medidas paliativas, porém sem sucesso. Em um primeiro momento, por meio de seu Ministro das Finanças, Jacques Necker, o Rei propõe a tributação sobre o Primeiro e Segundo Estados, projeto o qual é rejeitado, ao que, então, convoca a Assembleia dos Estados Gerais para a propositura de outras medidas (10). Na Assembleia, a cada Estado cabia um voto por matéria discutida, restando o Terceiro Estado em desvantagem perante o Clero e a Nobreza, que se uniram contra as medidas propostas pois votavam sempre juntos contra elas. Dessa forma, dada a falta de representatividade política necessária para combater o Primeiro e Segundo Estados, em 09 de julho de 1789, o Terceiro Estado se autoproclama Assembleia Geral Nacional, dando início à 1ª Fase da Revolução Francesa.


2. GENEALOGIA E TRIUNFO DOS DIREITOS HUMANOS NA REVOLUÇÃO FRANCESA E NA OBRA DE COSTAS DOUZINAS

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, resultado da Assembleia Nacional Constituinte promovida pelo Terceiro Estado, objetivava inicialmente romper com o Antigo Regime Absolutista. Para tal, a primeira medida consistiu na limitação dos Poderes do Estado (do Rei) na liberdade do Homem, principalmente em relação aos Direitos de Propriedade e de Sufrágio, marcando assim a passagem de um Estado Patrimonialista para um Estado Racionalista. Dessa forma, uma nova Ordem é constituída na França, com a Declaração (11) como um documento de reconstrução das relações entre o Estado e a Sociedade, cuja base estava nos Direitos de Liberdade, compostos principalmente pelos Direitos de Propriedade e de Sufrágio - Voto).

Segundo Costas Douzinas, tal reconstrução, no que se refere à propriedade, foi possível com a implementação do novo paradigma de que os Direitos de Liberdade representados pelos bens materiais pertenciam ao “Homem” e ao “Cidadão” (12), e não mais ao Estado, como era anteriormente; no que se refere ao Sufrágio, tais Direitos consistem na possibilidade desse mesmo “Homem” participar das decisões políticas, dentre as quais está o Direito de escolha de seus representantes no Parlamento francês.

Contudo, na França do período revolucionário, a aplicação dos termos "Homem" e "Cidadão" era restrita a um grupo determinado de destinatários, e não a qualquer pessoa indistintamente. Teoricamente, em que pese o art. 1º, I, da Declaração afirmar que “todos os homens nasciam iguais em direitos e em dignidade”, na prática, o termo "Homem" e seu alcance eram considerados uma referência abstrata (13), cuja concretização, contornos, alcance e limitações dependiam da efetiva implementação em cada Estado-Nação, consoante os respectivos valores constitucionais de cada um. Por consequência, ao termo "Cidadão" era aplicado o mesmo entendimento: uma vez que o "Homem" dependia das implementações internas de cada Estado-Nação, sendo limitado a determinados indivíduos, homens livres ricos, o "Cidadão" acabava por ser o indivíduo concreto a quem eram, na prática, destinados os Direitos preconizados na Declaração, o homem livre rico francês.

Tal abstração resultava, portanto, na exclusão de uma série de indivíduos do rol de destinatários dos Direitos Humanos da Declaração, a exemplo da mulher, do escravo, do homem livre pobre e do estrangeiro, dentre outros. A esse respeito, Edmund Burke (14), afirmou que o termo “Homem” seria uma abstração metafísica, pois havia o direito, considerado de monta natural, mas não os instrumentos para concretizá-lo, pois esses dependiam de ações internas de cada País para que pudessem ser implementados; assim, para Burke, os Direitos Humanos emanariam de cada Estado-Nação, embora fossem oriundos da Declaração francesa. Zygmunt Bauman (15), com base em Giorgio Agamben, sustenta que não está claro se os termos "Homem" e "Cidadão" deveriam identificar duas realidades distintas ou se o termo "Homem" já significaria estar contido no termo "Cidadão" ou, ainda, se o portador dos direitos era o "Homem" que também fosse um "Cidadão".

Essa situação é considerada um paradoxo, pois a Declaração foi promulgada por uma Assembleia Constituinte Francesa, mas seus efeitos seriam observados no mundo inteiro. A esse respeito, Norberto Bobbio entende que os Direitos Humanos não seriam inerentes à natureza humana em si, como poderia se supor, mas sim, resultado de um processo histórico de emancipação do homem, com a Lei como fonte, ao invés do direito divino, como foi outrora. Logo, Bobbio entende que os Direitos Humanos são suscetíveis de sofrerem alterações, ou seja, caracterizam-se pela eficácia limitada, que demanda implementação interna para atingirem seus destinatários. Nesse contexto, o mesmo Autor entende, ainda, que a ideia de Homem Abstrato estaria relacionada com a dos Direitos de Liberdade negativa, cuja premissa seria a igualdade formal entre os homens, em contraponto ao Antigo Regime, em que inexistia tal premissa:

As duas definições divergem: enquanto a primeira define a liberdade de um indivíduo em relação aos outros indivíduos, a segunda define a liberdade dos indivíduos em relação ao poder do Estado. A primeira é limitada pelo direito dos outros a não serem prejudicados, refletindo o clássico “principium iuris” do “neminem laedere”; a segunda tem em vista, exclusivamente, o possível excesso de poder por parte do Estado. Na realidade, a primeira — mais do que uma definição da liberdade — é uma definição da violação do direito; a segunda é uma definição da liberdade, mas somente da liberdade negativa A liberdade positiva ou a liberdade como autonomia, é definida implicitamente no art. 62, onde se diz que, sendo a lei expressão da vontade geral, “todos os cidadãos têm o direito de concorrer pessoalmente ou através de seus representantes, para a formação da lei”. (16)

2.1 - A Primeira Fase (1789-1792): A Assembleia Nacional Constituinte

No caso da França, nessa primeira Fase da Revolução, os valores implementados baseavam-se nos Direitos de Liberdade com ênfase na propriedade (17), refletindo ideias que eram da elite burguesa (18). A Constituição de 1791, resultado da Assembleia Nacional Constituinte, incorporou a Declaração de 1789 e instituiu junto com a Monarquia Constitucional (19) o voto censitário uma vez que, segundo Bobbio (20), a Constituição francesa teria sido feita para o homem burguês.

Essa exclusão de um rol de pessoas dos direitos preconizados pela Declaração foi considerada um paradoxo (21), tanto na França quanto no Mundo, pois a Declaração era denominada Universal, mas fora promulgada pela Assembleia Constituinte francesa, de forma que coube a cada Estado-Nação estabelecer o alcance dos termos "Homem" e "Cidadão" conforme sua vontade política, separando a figura do Homem, como espécie humana, da figura do Cidadão (a qual contemplava apenas alguns indivíduos). Segundo Douzinas (22), a intenção da Constituinte francesa era a de estabelecer o direito universal como fundamento do Estado Moderno da França, e não a de legislar para o mundo todo; a primeira intenção é uma visão histórica da Declaração, em contraponto à segunda, que é uma visão Filosófica (23).

Dessa forma, paradoxalmente, a Declaração desceu para as soberanias locais, principalmente no âmbito da França, não mais como um direito universal, mas sim, restrito e limitado a determinados indivíduos, conforme os valores sob os quais se fundou cada Estado Nação Moderno; o “Homem” mencionado na Declaração seria um “Homem Abstrato”, entidade "desencarregada"(24) e despojada de suas características, cabendo a cada Estado concretizá-lo em suas Cartas. No âmbito do Estado-Nação francês, a consequência do paradoxo levantado por Douzinas(25) foi a da criação de categorias de indivíduos: os cidadãos (nacionais ricos), os não-cidadãos (nacionais pobres) e os estrangeiros.

Esta primeira fase terminou com uma revolução dentro da Revolução, incitada pelos Jacobinos, dada a segregação praticada pela Constituição de 1791 em face dos não-cidadãos, que restaram por ela excluídos dos Direitos de Liberdade, o que deu origem à segunda Fase: a da Convenção Nacional. Essa radicalização do movimento pode ser considerada como um direito de resistência às políticas implementadas em favor dos considerados cidadãos.

2.2 - A Segunda Fase (1792-1795): A Convenção Nacional

Nesse período, o País foi governado pela Assembleia (Convenção Nacional Francesa), sendo o Executivo exercido por uma Comissão: o Comité de Salut Publique(26). Até então, o Parlamento francês era composto, dentre outros, por dois grandes partidos, os Girondinos e os Jacobinos: os Girondinos (os Moderados) representavam a alta burguesia detentora do Poder político através dos Direitos de Propriedade e do Voto Censitário; e os Jacobinos (os Radicais), as camadas mais populares.

Essa fase é considerada a mais popular da Revolução, pois teve por contribuição principal o sufrágio universal masculino, algo inédito até então, estendendo a mais indivíduos os conceitos de "Homem" e de "Cidadão". Assim, o voto deixa de ser direito atrelado à propriedade, conforme a nova Constituição desse período - 1793. Ainda, nesse mesmo ano, a Família Real é executada em praça pública pelos Jacobinos e pelos Sans-Culottes (populares que se aliaram aos Jacobinos, pequena e média burguesia), que, após, instalaram a Primeira República Jacobina. Os países vizinhos, temendo que o mesmo ocorresse em seus territórios, formaram uma aliança contra a França, de maneira a possibilitar que, internamente, os Girondinos (alta burguesia francesa), com o apoio do Exército, retomassem o poder político, através da Convenção Termidoriana, movimento que anulou várias conquistas da República Jacobina.

Para Eric Hobsbawn (27), esta Convenção, também chamada de Golpe do 9 do Termidor, representou o fim da fase mais heroica da Revolução Francesa, período este considerado por ele de cunho democrático, pois o povo embora sentisse fome e medo, levantou-se contra a elite da época, conquistando vários direitos.

2.3 - A Terceira Fase (1795-1799): O Diretório

O sufrágio universal masculino, na Segunda Fase, dentre outras conquistas dos Jacobinos, provocou uma reação na alta burguesia Girondina, que retomou o Poder, instalando a Fase do Diretório. Esta nova forma de Governo francês consistia no exercício do Poder Executivo por uma Comissão (O Diretório) composta por cinco diretores, e do Poder Legislativo por duas câmaras, a dos Anciãos e a dos Quinhentos, com o voto universal masculino restrito aos alfabetizados.

O novo Governo não foi suficiente para apaziguar os ânimos das Fases anteriores, o que levou ao General Napoleão Bonaparte a instalar o Consulado em 1799.

2.4 - O Direito do Outro

As lutas pelo poder, que se sucederam na França pós-Revolução, consistem em um direito de resistência exercido pelos indivíduos que não detém o poder em dado momento e local e, consequentemente, o direito à representação política. Tais lutas são o Direito do Outro, segundo Costas Douzinas (28), podendo ser entendidos como outro desdobramento do já supracitado paradoxo

As magníficas declarações do século XVIII pronunciaram os direitos naturais inalienáveis porque eles eram independentes de governos, fatores temporais e locais, e expressavam, em termos legais, os direitos eternos dos homens. Ainda assim, a tradição de humanismo que eventualmente levou à cultura contemporânea dos direitos humanos repete o gesto clássico. A Declaração francesa é bem categórica quanto à fonte verdadeira dos direitos universais. Os direitos são declarados em nome do ‘homem’ universal, mas é o ato de enunciação que os cria e aquele de um novo tipo de associação política, a nação e o seu Estado, para tornar-se o legislador soberano e, em segundo lugar, de um ‘homem’ particular, o cidadão nacional, para vir a ser o beneficiário dos direitos.

Nas três fases que se seguiram à tomada da Bastilha, pode-se observar que o grupo afastado do poder exerceu um direito de resistência o qual muitas vezes galgou-se na violência e em atos extremos, pois houve a exclusão de indivíduos(29) os quais não aceitaram tal afastamento. Assim, ao invés de haver a acolhida de um maior número de pessoas no rol de destinatários dos Direitos Humanos, o que se observou foi uma espécie de alternância de pessoas no poder e na representação política, na França, resultando no bem de alguns e no mal de outros:

A nação-estado passa a existir através da exclusão de outras pessoas e nações. Os indivíduos modernos alcançam a sua humanidade através da aquisição de direitos políticos de cidadania, os quais garantem a admissão deles à natureza humana universal ao excluir outros deste status. O estrangeiro enquanto um não-cidadão é o bárbaro. Ele não tem direitos porque não é parte do Estado e, é um humano inferior porque não é um cidadão. Alguém é considerado um homem em maior ou menor grau porque é um cidadão em maior ou menor grau. O estrangeiro é o hiato entre o homem e o cidadão. No mundo globalizado, não possuir cidadania ou ser um refugiado é o pior destino. Os direitos humanos não existem: levando-se em conta a humanidade e não o status de membro de algum grupo intermediário, então, os refugiados, ou aqueles em Guantánamo, são relegados às prisões de segurança máxima. Eles não possuem nada, não possuem vida, homines sacri da nova ordem mundial.

Assim, para o Autor (30), o conceito “humanidade” tem sido constantemente usado para separar, distribuir e classificar as pessoas em governantes, governados e excluídos. “Humanidade” atua como uma fonte normativa à política e ao direito, contra um pano de fundo de desumanidade variável. Nesse contexto, o Direito do Outro vai além de um mero direito de resistência, mas sim é um direito anterior ao Estado-Nação considerado, deixando para trás a concepção de Homem abstrato, de maneira que o Outro (31) deve ser encarado a partir da perspectiva do “humanismo da outra pessoa”. Não é apenas o traço do Outro que determina meu próprio direito; na medida em que o direito é definido, regulado e restrito pela lei positiva, a lei é lançada em mim, ou, mais precisamente, é a presença regulatória da lei ou a sua ausência constitutiva que moldam meu direito e minha identidade. Nesse contexto, o conceito de humanidade possui um patamar mínimo, que permite ao homem reivindicar autonomia e subjetividade jurídica (32).

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Sobre a autora
Márcia Regina Zok da Silva

Mestra e Especialista em Direito do Estado, pela UFRGS, Bacharel em Direito, pela UFRGS, Cursando MBA em Administração Pública e Gestão de Cidades Inteligentes, pela UNINTER.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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