Resumo: Este trabalho trata-se da análise da voz da criança no processo penal, com ênfase em quais medidas é aplicável o novo método da escuta de crianças e adolescentes, denominado de depoimento especial, e sua aplicabilidade de forma a evitar a revitimização. Seus objetivos específicos consistiram em apresentar brevemente o que é o depoimento especial e seu contexto histórico; conhecer como era o depoimento da criança antes e após a lei 13.431/17; realizar uma análise da necessidade de antecipação do depoimento da criança a fim de evitar a revitimização, ou seja, causar menos danos e traumas à criança; verificar de que forma é possível atribuir valor a palavra da criança e uma breve avaliação sobre o entendimento da criança acerca do seu direito de auxílio da justiça. A metodologia utilizada foi uma pesquisa de natureza exploratória na qual se utilizou como procedimento o método bibliográfico e como fonte de coleta doutrinas, jurisprudência, leis, documentos e livros. Os resultados obtidos demonstram que a lei é benéfica para evitar a revitimização, bem como a antecipação do depoimento é crucial para evitar os danos à criança, verificou-se ainda o quão importante se faz aplicar o novo método evitando prejuízos à criança e ao adolescente. Ademais a técnica representa um novo olhar jurídico em relação à criança e a credibilidade de seu depoimento.
Palavras-chave: Depoimento Especial. Crianças e Adolescentes. Revitimização.
Sumário: Introdução. 1 O que é o depoimento especial? 1.1 Contexto historico. 1.2 Definição. 1.3 O depoimento antes e depois da lei 13.431/17. 2 O depoimento em sede de antecipação de prova. 2.1 Conceito de prova. 2.2. Antecipação de prova. 2.3 Antecipação para evitar a revitimização. 2.4. Quando quem prática o abuso é da família? Danos reais. 3 Valorização do depoimento da criança. 3.1 Credibilidade do depoimento da criança. 3.2 Possibilidade do uso do depoimento da criança ou adolescente (vítima) para condenação. 3.2 A criança sabe que pode ter auxilio da justiça? Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo desenvolver o tema “A voz da criança no processo penal de abuso sexual”, mais especificamente em como o uso do depoimento especial para a escuta de crianças e adolescentes vitimas de abuso sexual pode contribuir para a não revitimização.
Possui natureza exploratória, por levantar informações sobre o tema mencionado e assim tornar o assunto familiar ao leitor.
A relevância do assunto se mostra com a necessidade de detalhamento e divulgação do método de depoimento especial, bem como o quão importante é a sua utilização a fim de evitar maiores traumas e uma exposição “desnecessária” da criança perante o judiciário.
Deste modo, observa-se um novo olhar jurídico em relação às crianças e adolescentes e sua presença no processo, passando a trata-las como sujeitos de direito cuja palavra pode ter validade.
O depoimento especial ressalta ainda a necessidade de preparo dos profissionais, para que assim se obtenha uma atuação jurídica mais limpa e sem danos ou revitimização.
De inicio, o trabalho abordará a evolução histórica do depoimento especial, sua definição, o que motivou José Antônio Daltoé, a desenvolver o projeto que deu suporte a lei 13.413/17, demonstrando também como funcionava o depoimento tradicional de crianças e adolescentes antes da lei do depoimento especial e como o procedimento do mesmo é recomendado pela referida lei.
Em segundo momento será demonstrado de que forma o depoimento especial pode ser utilizado em sede de antecipação de provas, desta forma, o segundo capitulo irá desenvolver o conceito de prova e de que maneira a antecipação pode ser usada para evitar a revitimização sofrida pela criança vitima de abuso sexual, ver-se-á ainda breves comentários acerca dos danos reais sofridos quando quem pratica o abuso é da família da criança, revelando a dificuldade na denuncia de tal ato.
No terceiro capitulo deste trabalho, será apresentado de que forma pode ser comprovada a credibilidade nas palavras ditas por uma criança, expondo também alguns julgados dos tribunais nos quais foram utilizados os depoimentos de crianças para a condenação do réu e revelando assim a possibilidade do uso dos depoimentos das mesmas, e por fim, será abordado sobre o entendimento das crianças e adolescentes quanto à possibilidade de acesso a justiça pelas mesmas.
A metodologia adotada no presente trabalho se deu por meio de pesquisa bibliográfica através de doutrinas, jurisprudências, leis, documentos e livros, com natureza exploratória de forma aplicada e método indutivo – qualitativo, com o fim de expor de que forma o depoimento especial é necessário para que se evite que a criança ou adolescente vitima ou testemunha de abuso sexual obtenha danos ou passe pelo processo de revitimização por ter que prestar seu depoimento inúmeras vezes.
O trabalho foi motivado em demonstrar como funciona o novo método, sua importância e exceções para sua aplicação antecipada, bem como citar alguns depoimentos de vitimas que passaram pelo sistema antigo de coleta de depoimentos.
Pretende-se demonstrar com o presente trabalho através das pesquisas realizadas qual seria o conceito do depoimento, como era aplicado no passado e como passa a ser com a nova lei, bem como demonstrar a necessidade da aplicação do novo método ao expor com relatos reais como foi para a vitima esse momento de sua vida, demonstrar que a palavra da criança tem validade e que em crimes onde apenas ela é a testemunha existe a possibilidade de se chegar a verdade com o novo método, ressaltar que a criança tem credibilidade expondo decisões de tribunais nos quais a palavra da criança foi tomada como prova para condenação e por fim demonstrar o quanto a criança entende das leis e se a mesma sabe que pode procurar a justiça.
1. O QUE É O DEPOIMENTO ESPECIAL?
1.1 CONTEXTO HISTORICO.
O Brasil foi um dos países que aderiram mais tardiamente o método de escuta de crianças buscando a diminuição do dano.
Hoje dois métodos (de escuta de crianças e adolescente) são os mais usados, o circuito fechado de televisão – Closed Circuit of Television (CCTV) 1 , decorrente do direito inglês e adotado por 64% dos países escuta, sendo exemplo o Brasil, e a Câmara de Gesell2, decorrente do direito americano e adotada por 36% dos países (Santos e Gonçalves, 2009).
No Brasil, a adoção do depoimento especial teve um histórico de dúvidas entre o apoio e rejeição por parte dos profissionais, como qualquer outra mudança enfrenta no país.
A sua adoção surgiu com a finalidade de reduzir um novo dano a violência já sofrida, a chamada revitimização da vítima.
O método surgiu no Brasil a partir do projeto "Depoimento sem dano" do Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, José Antônio Daltoé Cezar, devido às experiências vividas pelo desembargador no tribunal, conforme relato do mesmo ao Conselho Nacional de Justiça;
“Era uma enorme dificuldade ouvir os depoimentos das crianças. Me sentia péssimo ao fazer a criança contar tudo de novo e não me sentia confortável sequer para fazer a perguntas de uma forma mais compreensível para as crianças. A gota final veio do depoimento de uma criança de seis anos, vítima de estupro, que mexeu muito comigo. Na época, começavam a ser usadas as câmeras de segurança. Vi uma dessas na casa do meu cunhado, e pensei: 'Será que a gente consegue colocar som nessa imagem? ' Daí surgiu a ideia"
Desta forma, o projeto foi implantado em 2003, no juizado da infância e da juventude de Porto Alegre, logo em 2004, assumiu caráter institucional, desta forma, o tribunal buscou se equipar com equipamentos mais evoluídos, que proporcionaram a melhoria na qualidade do material gravado.
1.2 DEFINIÇÃO
Ao se falar sobre o conceito do que seria o depoimento especial alguns autores se posicionam de forma que sejam colhidas ideias e sugestões por aqueles que serão ouvidos (as vitimas ou testemunhas), sendo exemplos Santos, Gonçalves e Viana3, que entendem como o conceito de metodologias de depoimento especial todas as propostas feitas por crianças e adolescentes que tornam mais fácil e confortável a tarefa de testemunhar sobre a violência sofrida.
De uma forma mais abrangente Santos et al (2013), conceitua o depoimento especial como sendo:
Sob a designação “depoimento especial” estão sendo considerados os métodos, as técnicas e os procedimentos utilizados antes, durante e após a tomada de depoimento de crianças e adolescentes com o intuito de evitar ou reduzir o sofrimento e o estresse a que são submetidos enquanto vítimas ou testemunhas de crimes durante sua passagem pelo sistema de justiça. (...) Podemos afirmar que o depoimento especial é uma nova filosofia jurídica que eleva crianças e adolescentes à condição de sujeitos contratantes pelo direito à palavra. Dessa forma, expressa uma nova postura da autoridade judiciária, que busca a complementaridade de sua atuação na interdisciplinaridade. (SANTOS et. al., 2013 p. 23).
Além do conceito doutrinário e não menos importante a lei 13.431/17, traz a definição legal em seu artigo 8º “Depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária.” E a escuta especializada é conforme o artigo 7º da mesma lei “É o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade.”.
O objetivo da lei é proteger a criança e o adolescente dos sentimentos que seriam trazidos ao relatar o ocorrido na presença de pessoas que lhes cause aflição, é por esse motivo que o método é realizado em sala acolhedora e com equipamentos de gravação de vídeo e áudio.
A lei revela assim o desejo de resguardar a vitima ou testemunha, não deixando que se tenha o contato com o suposto autor do abuso ou qualquer pessoa que lhe possa representar qualquer ameaça, coação, constrangimento e medo, tentando garantir que assim o depoimento da criança seja sincero, sem que por motivos de medo sejam escondidos fatos importantes e que trariam a verdade para o processo.
A lei do depoimento especial é um marco no sistema judiciário brasileiro, pois é a primeira vez em que tal ordenamento previu a escuta especializada e o depoimento especial, garantindo assim à criança e ao adolescente vitimas de violência o direito de serem ouvidos em local apropriado e que proporcione mais conforto e privacidade4 .
A referida lei se mostra ainda em total sintonia com a Convenção sobre os Direitos das Crianças que estabelece em seu artigo 19:
1. Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela.
2. Essas medidas de proteção deveriam incluir, conforme apropriado, procedimentos eficazes para a elaboração de programas sociais capazes de proporcionar uma assistência adequada à criança e às pessoas encarregadas de seu cuidado, bem como para outras formas de prevenção, para a identificação, notificação, transferência a uma instituição, investigação, tratamento e acompanhamento posterior dos casos acima mencionados de maus tratos à criança e, conforme o caso, para a intervenção judiciária.
Desta forma verifica-se como ambas possuem os mesmos objetivos, sendo o primordial a proteção da criança e as melhores formas de não causar danos devido a mesma estar em desenvolvimento de seu caráter, não apenas colhendo o depoimento da criança, mais também, acompanhando a criança depois de realizada a colheita.
1.3 O DEPOIMENTO ANTES E DEPOIS DA LEI 13.431/17
O depoimento da criança antes não tinha nenhuma particularidade com relação ao depoimento tradicional de um adulto, a criança tinha que dar o depoimento cerca de sete vezes em órgãos como delegacias de polícia, Conselho Tutelar, no Ministério Público, além da audiência na vara de Justiça, na qual pelo menos quatro pessoas estavam presentes. Ressalta-se ainda que na maioria das vezes exista um espaço de tempo enorme entre cada depoimento, podendo durar até anos o que causava um dano enorme no desenvolvimento da criança que ao ser inquirida era “obrigada” a lembrar de fatos marcantes e dolorosos, tinha que relembrar de todo o abuso que tentava esquecer. A vítima ainda ficava de frente com seu suposto abusador em inúmeras vezes, tendo que relatar tudo pelo que passou na presença de quem lhe causou mal e perante pessoas desconhecidas, as que iriam julgar seu caso, este contato causava danos na criança com relação ao medo e angustia. Ressalta-se ainda que as perguntas feitas para a vitima eram diretas e objetivas, sem se observar o que causariam na criança.
Atualmente, o depoimento da criança e do adolescente é colhido de forma diferente uma vez que a criança será resguardada de qualquer contato, ainda que visual, com o suposto autor ou acusado do delito, será realizado em local apropriado e acolhedor, com estrutura e espaço físico que garantam a privacidade da criança e do adolescente, já se vê na maioria dos estados brasileiros salas com ursos, almofadas coloridas e desenhos, por exemplo. O depoimento é prestado através de um circuito fechado de televisão (CCTV). Os dois ambientes ficam conectados, é feito o registro audiovisual da oitiva que acompanha o processo e contribui para que crianças e adolescentes não tenham que narrar os fatos mais de uma vez e assim evitar danos.
Desta forma, servidores da justiça são capacitados para conversar com crianças procurando ganhar a sua confiança e não interromper a sua narrativa, permitindo o chamado relato livre, de extrema importância, uma vez que a criança consegue contar os fatos no seu tempo sem pressão.
A conversa com a entrevistadora é gravada e assistida ao vivo na sala de audiência pelo juiz e demais partes do processo, importante10 ressaltar que a criança tem ciência de que está sendo gravada, informação que é transmitida de acordo com a sua capacidade de compreensão, conforme prevê a lei.
O juiz pode ou não estar presente na sala de colheita do depoimento uma vez que a lei 13.431/17 prevê em seu artigo 12, paragrafo 1º que “a vitima ou testemunha de violência é garantido o direito de prestar depoimento diretamente ao juiz, se assim o entender.” Observase que este artigo mudou o que antes era regra, uma vez que, o que antes era regra agora passa a ser uma exceção, vinculada ao grau de maturidade e compreensão acerca das consequências de tal presença no depoimento, desta forma deve ser feita uma avaliação previa sobre a presença do juiz e caso se conclua que o mesmo pode realizar a entrevista ou depoimento deve ainda assim ser acompanhado do profissional capacitado e deve-se seguir todas as cautelas previstas para o devido depoimento, com extrema atenção para o teor das perguntas, evitando assim a criação de mais danos e constrangimentos à criança.
Conforme o artigo 7º da resolução N.º 10, de 15 de fevereiro de 2017, do Tribunal de Justiça do estado de Roraima, o depoimento especial seguirá as seguintes etapas;
a) Planejamento e Preparação: é a etapa na qual o entrevistador forense obtém, a partir dos autos ou outros estudos, de todas as informações prévias necessárias à coleta do depoimento de crianças e adolescentes, assim como a conferência do ambiente físico e dos equipamentos disponíveis para o procedimento. (artigo 7º, paragrafo 1º)
b) Acolhimento Inicial é a etapa em que o entrevistador forense recebe a criança ou adolescente e seu responsável na sala de entrevista, com os equipamentos de áudio e vídeo desligados, apresenta-se aos mesmos, buscando criar um clima de confiança, procurando conhecer o depoente, com perguntas abertas, neutras, não relacionadas ao objeto do depoimento, explica-lhes seu papel, o objetivo e o funcionamento da audiência, as regras da entrevista, bem como o engajando para o início do procedimento. (artigo 7º, paragrafo 2º). Nesta etapa intima-se a criança e seu representante legal que cheguem 30 minutos antes do inicio da audiência, evitando assim o encontro da criança com o réu. Essa medida tenta evitar este encontro, pois caso aconteça poderá causar abalo psíquico e assim prejudicar o depoimento, podendo inclusive torná-lo inconsistente 5 .
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c) Construção do Rapport6: é a etapa em que o entrevistador forense personaliza a entrevista, constrói um ambiente acolhedor, discute assuntos neutros, explica os objetivos da entrevista, transfere o controle para o entrevistado. Nesta ocasião, os equipamentos de áudio e vídeo deverão ser ligados pelo entrevistador, dando-se ciência ao depoente, permitindo a transmissão simultânea da entrevista à sala de audiência. (artigo 7º, paragrafo 3º)
d) Recriação do contexto original: é a ocasião do restabelecimento mental do contexto em que a situação ocorreu. (artigo 7º, paragrafo 4º) Diferente dos processos envolvendo adultos onde se lê a denuncia para só em seguida ser tomado o depoimento da vitima, conforme prevê a lei 13.431 em seu art. 12 inciso I, nos casos em que envolva crianças ou adolescentes e o depoimento for colhido mediante depoimento especial, não será realizada a leitura da denuncia e nem de outras peças processuais, o que visa evitar que a vítima ou testemunha seja influenciada a fornecer uma determinada resposta com base no que foi ouvido. Acontece que nos casos novos não existe processo instaurado já que a previsão é a realização do depoimento como produção antecipada de provas, entretanto nada impede que seja realizado o depoimento especial em um processo em curso, sendo assim é vedada a leitura da peça processual ou da denúncia.
e) Narrativa livre: é a etapa em que se obtém o relato livre da vítima/testemunha, sem interrupções. (artigo 7º, paragrafo 5º). Deixa-se a criança ou adolescente livre para contar todos os fatos de que se lembra e em seu tempo, podendo relatar como achar melhor, sendo importante ressaltar que a medida de duração de tempo para uma criança é diferente de como é para um adulto, ou seja, ela pode relatar coisas sem seguir a ordem cronológica dos fatos.
f) Questionamento: é o momento no qual as pessoas que estão na outra sala podem fazer perguntas à criança, levando-se em conta o nível de compreensão da vitima ou testemunha, sendo priorizado o uso de perguntas abertas para o detalhamento e esclarecimento do relado e de forma que possibilite a recuperação da conversa sem danos. Ressalta-se que essas perguntas são feitas por intermédio do entrevistador que pode mudar a pergunta para a linguagem de entendimento da criança.
g) Fechamento: Esta etapa é realizada após o desligamento do sistema de áudio e vídeo, o entrevistador realizará o fechamento da entrevista com uma breve conversa com o depoente onde será explicado os próximos procedimentos, incentivando-o a falar quais Especial de Crianças e Adolescentes. Será verificado ainda com a família como os mesmos vem lidando com o fato no ambiente familiar e por fim será avaliada a necessidade de encaminhamento á rede de proteção e de assistência á vitima e seus familiares.