Prazer, Alice.

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Uma análise comparativa entre a a fiscalização preventiva que a Inteligência Artificial ALICE realizará e a fiscalização a posteriori padrão, ambas executadas pelo Tribunal de Contas em processos licitatórios realizados no âmbito do Estado de São Paulo.

Poderíamos começar esse artigo falando de inúmeras inovações que aconteceram no mundo ao longo dos anos e como estas, de forma positiva ou negativa, nos afetaram.

Poderíamos falar nos avanços na Administração e em como os procedimentos ficaram mais céleres. Mas, tudo isso não teria o mesmo êxito, se ao mesmo tempo não houvessem avanços na fiscalização.

Pra quem já teve algum contato com a Administração, mais precisamente nas prefeituras, sabe que durante o ano havia aquela semana fatídica. Que todos os procedimentos paravam para recebimento de um dos representantes do órgão de fiscalização externa. Normalmente este ficava em uma sala e trazia consigo uma lista contendo os processos sujeitos à fiscalização. Sim. Existia uma lista. Já que nem sempre o tempo era suficiente à análise de todos os processos. E, a partir daí, surgiam os apontamentos relativos às falhas encontradas nos processos. 

Como ocorreu com todo o restante, a fiscalização também se modernizou.

Os processos submetidos fisicamente passaram a ser enviados “via sistema” o que, por si só, já era muito promissor, tendo em vista que a fiscalização física agora só ocorreria se encontradas grandes divergências.

O sistema Audesp, como conhecido, muito embora tenha gerado temor em muitas prefeituras paulistas, trouxe também a percepção de que todos os procedimentos ali executados - principalmente os licitatórios passaram a estar sob o crivo, em tempo real, do órgão fiscalizador.

Mas todas essas iniciativas nos conduziram a este momento: em que uma inteligência artificial é formulada com a finalidade de identificar possíveis irregularidades logo após a publicação do edital. E porque isso é um marco para a democracia brasileira? É esse aspecto que iremos comentar agora. 

Como abordado acima, até o momento, havia um espaço de tempo considerável entre a realização de atos fiscalizatórios pelos órgãos de controle externo e a concretização do procedimento ou ato administrativo irregular ou viciado; Ou seja, depois que boa parte do procedimento administrativo estava concluído ou até mesmo após vários anos de vigência, havia um esforço em responsabilizar os gestores que engendraram tal ato. 

Ocorre que esse lapso (entre o ato e a fiscalização produzia dois efeitos negativos: o primeiro refere-se a dificuldade em punir que concorreu para irregularidade quando não mais inseridos na estrutura administrativa, afinal, a cada quatro anos geralmente os agente políticos são substituídos, juntamente à sua equipe; na medida em que o segundo, advindo do primeiro, ofertava uma falsa sensação de impunidade, pois era necessário apenas o decurso do tempo para livrar aqueles que desvirtuavam os recursos ou bens públicos em proveito próprio ou não.

Claro que esses efeitos foram notados pelos fiscalizadores e com o advento da tecnologia, mais e mais iniciativas foram desenvolvidas por eles, principalmente os Tribunais de Contas, a fim de encurtar o tempo para análise dos atos administrativos e concretizar a tão sonhada fiscalização em tempo real.

Um parênteses cabe neste ponto. A necessidade da tecnologia para tal intento revela que mesmo em estruturas mais abastadas financeiramente, como as do Ministério Público e Tribunal de Contas, há um déficit considerável de pessoal para abarcar o exame de todas as licitações realizadas pelos mais de 5.500 municípios, 27 estados e administração pública federal, com seus diversos ministérios, agências reguladoras, autarquias e afins. Estamos falando de contratações  que envolvem a compra de clips de papel até construção de estádios para a Copa do Mundo. 

Assim, vale voltar ao procedimento anterior, no qual o fiscalizador examinava uma lista de procedimentos licitatórios, conforme suas limitações físicas e espaciais (um fiscalizador designado para uma quantidade X de municípios, por exemplo). Todos os outros procedimentos que não constavam naquele rol “premiado” passavam ao largo do rigor fiscalizatório, devido ao que era humanamente possível fazer. 

Apesar de compreendermos as dificuldades operacionais, esse modus operandi deixou o gestor público viciado na frase mais temida pelos consultores jurídicos: “Mas em 2000 o Tribunal de Contas veio na Prefeitura e não achou nada de errado”, também conhecido como, “Mas antes podia”.

Esquecem-se que dos cem procedimentos licitatórios realizados naquele ano, o fiscalizador conseguiu inspecionar ínfima parcela desses.

Esse cenário foi alterado substancialmente com a criação e operacionalização do Sistema AUDESP pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, o qual criou a obrigação dos órgãos públicos enviarem as informações de todos os procedimentos de contratação (seja por licitação ou dispensa/inexigibilidade) inseridos em uma determinada faixa de valor, correspondendo à um salto estupendo que na prática traduziu a realização de licitações em abril e, em junho, com 1 mês de execução contratual, os agentes de fiscalização do TCESP baterem às portas do órgão público, somente porque o Sistema Audesp apontou uma inconsistência no procedimento.

Ótimo para a democracia e diligência no emprego das verbas públicas, porém ainda significava uma operação corretiva, ou seja, o fato acontece, há a fiscalização, para então ele ser corrigido e, caso fosse necessário, incorrer na responsabilização ou não do agente que o praticou. 

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A mudança de paradigma que a ALICE traz nesse contexto é que a fiscalização começa a ser realizada de forma preventiva. Ou seja, logo que o procedimento de contratação atinge sua fase externa, qual seja, o edital é publicado, o órgão licitante tem a obrigação de enviá-lo para ALICE no prazo de 48 horas, a qual foi desenhada para cruzar dados e palavras chave com o intuito de buscar possíveis irregularidades, impedindo que um procedimento eventualmente viciado chegue ao ponto de formar um vínculo jurídico obrigacional ou que haja o efetivo dispêndio de verbas públicas que muito provavelmente serão glosadas (rejeitadas) em análise posterior. 

E essa tarefa se alinha exatamente à expectativa que a sociedade possui na funcionalidade de uma inteligência artificial: realizar tarefas repetitivas, que envolvam uma enorme quantidade de dados a serem analisados, mas que ao mesmo tempo requerem evolução e aprendizado. Ou seja, o machine learn que a ALICE irá aplicar na sua tarefa de scanner é fundamental para o sucesso dessa empreitada fiscalizatória, pois a diferença entre automação e inteligência artificial é que essa última tem a capacidade de incrementar sua programação conforme é exposta a sua tarefa, performando cada vez mais a cada execução. 

Edital por edital, a ALICE continuará a aprender o comportamento e linguagem da irregularidade, tornando-se cada vez mais especialista em identificar padrões e associá-los nas normas editalícias analisadas. E nós achando que carros voadores seriam a maior invenção que a tecnologia poderia produzir. Fica com essa, De volta para o futuro!

Claro, se por um lado essa iniciativa força pela “dor” o gestor público a se especializar e atingir um alto nível técnico na elaboração de editais (até porque grande parte das irregularidades não advém de imoralidade e sim da complexidade da legislação combinada às modestas iniciativas de atualização contínua do corpo técnico envolvido), por outro pode significar um incremento ao fenômeno do “apagão das canetas”. 

Afinal, ficou claro que o processo licitatório é um dos principais veículos para garantia e concretização de direitos fundamentais, mas é também um dos principais meios pelo qual os agentes políticos moldam os rumos da Administração Pública, cuja demora e insucesso pode significar para eles, inclusive, sua não perpetuação no poder.

Aguardamos ansiosos a vinda de ALICE para os Municípios do Estado de São Paulo, considerando que a tecnologia foi criada em 2017 em uma parceria da CGU e Tribunal de Contas da União, com a esperança de que realmente seja uma ferramenta educativa e evolutiva para a prática administrativa e não mais um dos intermináveis empecilhos burocráticos que o gestor público precisa enfrentar diariamente. 

Se 2020 nos deixar, quem viver, verá. 

Sobre as autoras
Bruna Caroline Santos

Advogada e Consultora Jurídica do Grupo Confiatta, atuante nas áreas de Direito Administrativo e Saneamento Básico. Graduada em Direito, pela Faculdade de Direito de Itu. Pós-graduada em Direito Municipal pela Escola Paulista de Direito. Graduanda em Administração Pública pela Universidade Federal de São João Del-Rei. Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB Sorocaba.

Marina Isabel Queiroz Pereira

Advogada pós-graduanda em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Presidente da Comissão de Direito Administrativo da OAB Sorocaba/SP. Atuou como Diretora de Administração na Prefeitura de Mairinque/SP e como consultora jurídica em escritórios especializados em Direito Público na região de Sorocaba. Possui sólida experiência em Licitações e Contratos, Terceiro Setor e Direito Administrativo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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