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Da guerra justa

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20/05/2006 às 00:00
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Meios primários de resolução de conflitos internacionais

            A solução bélica é o último recurso a ser utilizado para a defesa dos Estados e seus interesses (e ainda para a proteção de outrem, como se dará na deposição de um tirano, na ofensiva para fazer-se respeitar os direitos humanos etc, uma vez que existe a legítima defesa de outrem, como vimos supra, e também em virtude do princípio da solidariedade internacional, fundamento da harmônica convivência entre os povos). Mesmo assim, só pode ser utilizada presentes os requisitos que a tornam moralmente admissível, entre os quais está o esgotamento de outros meios, pacíficos, ou a fundada e grave certeza de que são impraticáveis.

            Entretanto, o "princípio de que todos os meios pacíficos devem ser esgotados antes de se recorrer à guerra não deve ser entendido de modo a causar interminável paralisia. Isso significaria o mesmo que negar na prática o que se aceita em teoria, isto é, a legitimidade da guerra.

            Pode-se discutir ad infinitum se todos os meios pacíficos para evitar a guerra já foram esgotados, pois não há autoridade com o poder de tomar decisões infalíveis nesses assuntos. Tal autoridade não está estabelecida na lei natural, e também não existe por instituição divina. Daí, em princípio, competir às autoridades políticas responsáveis pela declaração de guerra o julgar, de acordo com a prudência e os meios ao seu alcance, se já foram esgotadas todas as soluções pacíficas e se o recurso à guerra está justificado." [16]

            Nenhuma autoridade internacional é apta para o julgamento infalível da licitude da guerra em concreto. Pode-se emitir opiniões, umas mais fundadas que outras, e mesmo o Estado ao promover a ação militar precisa de muita cautela. Na dúvida se estão reunidas as condições para a guerra justa, não pode desencadear ataque algum!

            A ONU, por outro lado, pode opinar, negociar, mas nunca impedir um Estado de guerrear quando este julga ser justa a conduta bélica, i.e., quando entende que as condições acima citadas estão presentes. O juízo pode até ser subjetivo, porém é baseado em informações objetivas, competindo só ao Estado proferi-lo. Admitir o contrário seria negar-lhe a soberania que lhe é intrínseca. Evidentemente, diante de uma clara violação da moral de guerra e dos direitos fundamentais, e da indiscutível falta de elementos caracterizadores da guerra justa, a comunidade internacional e outras autoridades reconhecidas (a ONU, a Santa Sé) podem impor severas críticas e sanções ao Estado ilegitimamente em conflito. A guerra injusta é, aliás, motivo para uma guerra justa, como se verá adiante.

            Entre os meios primários para resolver um conflito internacional sem a intervenção militar, exigidos para que esta, subseqüentemente, possa ser moral e juridicamente lícita, estão os pacíficos stricto sensu e os coercitivos. Todos eles são pacíficos lato sensu, e a guerra, ainda que coercitiva, coloca-se fora desse espectro, pois é meio secundário.

            Os meios a serem usados para solucionar os conflitos de uma maneira pacífica, em sentido estrito, dividem-se em dois grupos. Primeiramente há os meios diplomáticos: o entendimento direto entre os Estados em conflito, a mediação, a conciliação e o inquérito segundo o Direito Internacional. O outro grupo é o dos meios políticos: a arbitragem (escolha de um Chefe de Estado neutro ou personalidade insigne para julgar o litígio), e o ajuizamento de ação na Corte Internacional de Justiça.

            "Arbitragem ou arbitramento é o juízo constituido (sic) por uma ou mais pessoas – indivíduos ou govêrnos (sic) – escolhidos livremente pelas partes contendoras para decidirem o litígio ou controvérsia entre elas existente." [17]

            Meios primários coercitivos, por sua vez, são a retorção, a represália, o embargo comercial e econômico, o bloqueio de comunicações, o boicote, e a ruptura de relações diplomáticas.

            Evidentemente, a Moral e o Direito Natural, para a legitimidade da guerra, apenas pedem que antes de lançar mão da mesma se proceda ao uso de meios primários, mas não estabelece quais são. Pertence ao Direito Positivo enumerá-los ou criá-los, e isto foi feito, de modo que os temos no rol apresentado supra.

            Os tratados internacionais, desde que não tolham a soberania dos Estados – o que não deve ser pretexto para ações iníquas, totalitarismos, despotismos, e abuso desse direito –, são um excelente instrumento para a concretização da resolução dos conflitos sem o recurso à guerra. Esta, contudo, permanecerá sempre legítima se tais meios primários (pacíficos em sentido amplo, lato, o que engloba os pacíficos em sentido estrito e os coercitivos) não forem suficientes.

            É o Sumo Pontífice, o Papa Pio XII quem ensina a necessidade de "estabelecer meios apropriados, honrosos para todos, e eficazes, para devolver à norma pacta sunt servanda a função vital e moral que lhe cabe nas relações jurídicas entre os Estados. (...) devem surgir instituições, as quais, conquistando o respeito geral, se dediquem à nobilíssima função, seja de garantir o sincero cumprimento dos tratados, seja de promover, segundo os princípios de Direito e de eqüidade, oportunas revisões ou correções." [18]


Guerra justa ofensiva?

            "De acordo com a lei natural, uma nação não precisa esperar um ataque injusto para exercer o seu direito de defesa; uma ameaça séria e bem comprovada é suficiente para que o país ameaçado se defenda do agressor potencial com um ataque antecipado." [19]

            A guerra, conforme se depreende do já estudado até aqui, é um modo de o Estado exercer a legítima defesa própria e de seus cidadãos. Portanto, deve ser proporcional, moderada, único recurso à disposição (o que equivale ao esgotamento dos meios pacíficos lato sensu), e resposta a uma injusta agressão.

            Uma olhada menos atenta sobre este último elemento nos poderia fornecer a falsa impressão de que só a guerra explicitamente defensiva seria justa. Ora, tal característica não está enumerada entre as condições de licitude moral que citamos anteriormente, tampouco é expressa pela lei natural ou pelo Direito posto.

            Por ser uma legítima defesa coletiva, em situações muito especiais e que envolvem uma série de fatores e circunstâncias na observação de sua moralidade ou legalidade, temos de atentar para o real significado das expressões quando falamos da ação militar. Com efeito, a legítima defesa não pode antecipar-se de maneira irrefletida a uma suposta ação de um imaginário e futuro agressor injusto. A guerra, forma de legítima defesa, também não.

            Ocorre que, na definição do instituto, segundo já vimos, está presente a reação necessária, moderada e proporcional a uma injusta agressão atual ou iminente. Não é preciso que o ataque ilegítimo se esteja produzindo no momento, bastando a iminência. "É iminente a agressão que está para acontecer. A possibilidade concreta de agressão autoriza os atos necessários de defesa. Agressão iminente é, pois, sinônimo de perigo concreto de agressão, a ser aferido dentro de um quadro de probabilidades reais, não apenas fantasmagóricas." [20]

            Pois bem, é também legítima, nesse diapasão, a guerra ofensiva, com vistas à repulsa de uma agressão iminente. Posto está que, por suas peculiaridades, a iminência da agressão injusta provocadora da guerra deve ser verificada em termos mais largos e amplos do que a necessária para uma legítima defesa individual.

            Tal guerra ofensiva, com base no exposto, o é, aliás, apenas na aparência. Ainda que antecipada, e para evitar agressão injusta iminente, não deixa de ser uma modalidade de guerra defensiva. "Guerra justa diz-se defensiva em dois sentidos: a) no sentido estrito. É defensiva quando a nação cujos direitos são atacados injustamente não inicia as hostilidades, isto é, não declara ou inicia a guerra; b) no sentido menos estrito, ela é defensiva quando a nação injustamente atacada declara guerra ou dá o primeiro golpe. Conseqüentemente, se a nação inocente sabia que o inimigo estava secretamente preparando a guerra contra a sua independência, estaria ela na defensiva, ainda que declarasse a guerra." [21] Trata-se, a guerra aparentemente ofensiva, ainda assim de legítima defesa, mas contra uma agressão injusta iminente, contra uma ameaça fundada de ataque.

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            "Um povo ameaçado de injusta agressão, ou já vítima dela, se deseja pensar e agir de modo cristão, não pode permanecer em indiferença passiva." [22]

            Avançando um pouco mais, temos que, no tópico das condições para considerarmos uma guerra justa e da presença dos elementos caracterizadores da legítima defesa, o motivo da deflagração do conflito armado deve ser razoável, certo, grave. É esse motivo para a guerra a materialização da agressão atual ou iminente do inimigo. Não há guerra justa sem as tradicionais condições explicitadas e sem uma agressão injusta atual (que autoriza a guerra explicitamente defensiva) ou iminente (que autoriza a guerra defensiva aparentemente ofensiva). Tal agressão é o próprio motivo da guerra, e pode ser expressa de diversos modos. Assim, a "História mostra que por vezes a guerra é o único meio de que um Estado dispõe para garantir sua própria segurança e sobrevivência contra ataques ou reivindicações injustas de outros Estados ou para fazer valer direitos fundamentais aos quais não pode renunciar sem grave prejuízo ou desonra. (...) As razões para a guerra ofensiva geralmente estão relacionadas a graves danos infligidos a Estados. Alguns dos exemplos citados pelos filósofos católicos: forçar rebeldes à submissão; recuperar províncias ou cidades do inimigo; punir uma grave ofensa ao chefe de Estado ou à nação; punir outra nação por colaborar com um inimigo injusto; ajudar um aliado; punir nações por violação de tratados; procurar reparação pela violação de direitos assegurados por lei internacional." [23] Esses motivos são exemplos de uma agressão iminente ou mesmo de uma atual. Contudo, o "desejo de estender os limites dos próprios Estados ou diminuir a potência de uma nação estrangeira" ou ter ganhos econômicos "não é motivo suficiente para uma guerra." [24]

            "A distinção entre guerra defensiva e ofensiva é totalmente secundária. O que importa é se a guerra é justa ou não.

            Guerras ofensivas podem ser justas, e guerras defensivas podem ser injustas. Por vezes, a nação atacada é a causa real da guerra, não a nação que inicia o ataque. Quando isso ocorre, a nação atacada reage com uma guerra defensiva que é injusta nas suas causas, pois tal nação deveria ter evitado a provocação que gerou o ataque original.

            Portanto, a nação que iniciou o ataque é apenas um agressor material, e não formal. Ela não teria atacado, a não ser pelo fato de seus direitos terem sido injustamente violados. A nação que ataca não é responsável por uma guerra que se tornou necessária devido às ações de outra.

            Conseqüentemente, a distinção entre guerra justa e injusta não se confunde com a distinção entre guerra ofensiva e defensiva." [25]


Conclusão

            Nem o pacifismo cobarde nem a belicosidade desmedida, mas o bom senso deve guiar-nos nesse terreno tão delicado. Toda guerra, mesmo justa, traz conseqüências trágicas para as Nações e as pessoas. Seu início, por isso, deve ser muito bem pensado, pesado e refletido.

            Para que a guerra seja lícita, a lei natural exige certas condições, entre as quais o esgotamento de outros meios, ditos primários, antes de ser declarada. A lei positiva internacional, por outro lado, explicita quais desses meios devem ser usados. Se eles não forem utilizados – exceto com ineficácia ou impraticabilidade comprovadas –, não se cumpre um requisito essencial.

            Outrossim, o motivo que leva à guerra – e o motivo é o dano, requerido pela primeira condição, ou o perigo real de dano – deve também ser justo. Defensiva ou ofensiva, a ação bélica é um modo de legítima defesa, e só pode ser posta em ato, portanto, se os elementos que a autorizam existam de fato.


Notas

            01

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 13ª ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 63

            02

S. Th., II-II, q. 64, a.7

            03

Cat., 2264

            04

NORONHA, Magalhães. Direito Penal, vol. 1, 35ª edição atualizada, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 195

            05

Santo Tomás de Aquino. Op. cit.

            06

"Deve-se respeitar o princípio de subsidiariedade: uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua ação com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum." (Sua Santidade, o Papa João Paulo II. Encíclica Centesimus Annus, de 1º de maio de 1991, nº 48) "Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apóie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda." (Sua Santidade, o Papa Bento XVI. Encíclica Deus Caritas Est, de 25 de dezembro de 2005, nº 28)

            07

ROMMEN, Heinrich A. The State, in "Catholic Thought", St. Louis: B. Herder Book Co, 1947, pp. 254-255)

            08

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 14ª ed., São Paulo: Malheiros, 1997, p. 102

            09

MACKSEY, Pe. Charles, SJ. War, in "Catholic Encyclopedia", vol. X, New York: Encyclopedia Press, 1913, p. 547

            10

MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. De L’Esprit des Lois, liv X, cap. II, princípio

            11

ROMMEN, Heinrich A. op. cit., p. 255

            12

A guerra justa ante a ofensiva pacifista contra o direito de soberania, in "Catolicismo", nº 629, São Paulo: Padre Belchior de Pontes Ltda., maio de 2003, p. 14

            13

DEL GRECO, Fr. Teodoro da Torre, OFMCap. Teologia Moral, São Paulo: Paulinas, 1959, p. 239

            14

Cat., 2309

            15

BONFILS, Henry. Manuel de Droit International Public, 7ª ed., Paris: 1914, p. 718

            16

A guerra justa ante a ofensiva pacifista contra o direito de soberania, in op. cit., p. 16

            17

PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Princípios de Direito Internacional, vol. II, p. 8

            18

Sua Santidade, o Papa Pio XII. Radiomensagem de Natal em 1941

            19

A guerra justa ante a ofensiva pacifista contra o direito de soberania, in op. cit., p. 15

            20

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1986, p. 183

            21

McHUGH, John A; CALLAN, Charles. Moral Theology, vol. I, New York: Joseph R. Wagner, 1961, p. 558

            22

Sua Santidade, o Papa Pio XII. Radiomensagem de Natal em 1948

            23

A guerra justa ante a ofensiva pacifista contra o direito de soberania, in op. cit., p. 15

            24

DEL GRECO, Fr. Teodoro da Torre, OFMCap. Op. cit., p. 239

            25

A guerra justa ante a ofensiva pacifista contra o direito de soberania, in op. cit., pp. 15-16
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Sobre o autor
Rafael Vitola Brodbeck

Delegado de Polícia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRODBECK, Rafael Vitola. Da guerra justa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1053, 20 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8402. Acesso em: 24 abr. 2024.

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