Meios primários de resolução de conflitos internacionais
A solução bélica é o último recurso a ser utilizado para a defesa dos Estados e seus interesses (e ainda para a proteção de outrem, como se dará na deposição de um tirano, na ofensiva para fazer-se respeitar os direitos humanos etc, uma vez que existe a legítima defesa de outrem, como vimos supra, e também em virtude do princípio da solidariedade internacional, fundamento da harmônica convivência entre os povos). Mesmo assim, só pode ser utilizada presentes os requisitos que a tornam moralmente admissível, entre os quais está o esgotamento de outros meios, pacíficos, ou a fundada e grave certeza de que são impraticáveis.
Entretanto, o "princípio de que todos os meios pacíficos devem ser esgotados antes de se recorrer à guerra não deve ser entendido de modo a causar interminável paralisia. Isso significaria o mesmo que negar na prática o que se aceita em teoria, isto é, a legitimidade da guerra.
Pode-se discutir ad infinitum se todos os meios pacíficos para evitar a guerra já foram esgotados, pois não há autoridade com o poder de tomar decisões infalíveis nesses assuntos. Tal autoridade não está estabelecida na lei natural, e também não existe por instituição divina. Daí, em princípio, competir às autoridades políticas responsáveis pela declaração de guerra o julgar, de acordo com a prudência e os meios ao seu alcance, se já foram esgotadas todas as soluções pacíficas e se o recurso à guerra está justificado." [16]
Nenhuma autoridade internacional é apta para o julgamento infalível da licitude da guerra em concreto. Pode-se emitir opiniões, umas mais fundadas que outras, e mesmo o Estado ao promover a ação militar precisa de muita cautela. Na dúvida se estão reunidas as condições para a guerra justa, não pode desencadear ataque algum!
A ONU, por outro lado, pode opinar, negociar, mas nunca impedir um Estado de guerrear quando este julga ser justa a conduta bélica, i.e., quando entende que as condições acima citadas estão presentes. O juízo pode até ser subjetivo, porém é baseado em informações objetivas, competindo só ao Estado proferi-lo. Admitir o contrário seria negar-lhe a soberania que lhe é intrínseca. Evidentemente, diante de uma clara violação da moral de guerra e dos direitos fundamentais, e da indiscutível falta de elementos caracterizadores da guerra justa, a comunidade internacional e outras autoridades reconhecidas (a ONU, a Santa Sé) podem impor severas críticas e sanções ao Estado ilegitimamente em conflito. A guerra injusta é, aliás, motivo para uma guerra justa, como se verá adiante.
Entre os meios primários para resolver um conflito internacional sem a intervenção militar, exigidos para que esta, subseqüentemente, possa ser moral e juridicamente lícita, estão os pacíficos stricto sensu e os coercitivos. Todos eles são pacíficos lato sensu, e a guerra, ainda que coercitiva, coloca-se fora desse espectro, pois é meio secundário.
Os meios a serem usados para solucionar os conflitos de uma maneira pacífica, em sentido estrito, dividem-se em dois grupos. Primeiramente há os meios diplomáticos: o entendimento direto entre os Estados em conflito, a mediação, a conciliação e o inquérito segundo o Direito Internacional. O outro grupo é o dos meios políticos: a arbitragem (escolha de um Chefe de Estado neutro ou personalidade insigne para julgar o litígio), e o ajuizamento de ação na Corte Internacional de Justiça.
"Arbitragem ou arbitramento é o juízo constituido (sic) por uma ou mais pessoas – indivíduos ou govêrnos (sic) – escolhidos livremente pelas partes contendoras para decidirem o litígio ou controvérsia entre elas existente." [17]
Meios primários coercitivos, por sua vez, são a retorção, a represália, o embargo comercial e econômico, o bloqueio de comunicações, o boicote, e a ruptura de relações diplomáticas.
Evidentemente, a Moral e o Direito Natural, para a legitimidade da guerra, apenas pedem que antes de lançar mão da mesma se proceda ao uso de meios primários, mas não estabelece quais são. Pertence ao Direito Positivo enumerá-los ou criá-los, e isto foi feito, de modo que os temos no rol apresentado supra.
Os tratados internacionais, desde que não tolham a soberania dos Estados – o que não deve ser pretexto para ações iníquas, totalitarismos, despotismos, e abuso desse direito –, são um excelente instrumento para a concretização da resolução dos conflitos sem o recurso à guerra. Esta, contudo, permanecerá sempre legítima se tais meios primários (pacíficos em sentido amplo, lato, o que engloba os pacíficos em sentido estrito e os coercitivos) não forem suficientes.
É o Sumo Pontífice, o Papa Pio XII quem ensina a necessidade de "estabelecer meios apropriados, honrosos para todos, e eficazes, para devolver à norma pacta sunt servanda a função vital e moral que lhe cabe nas relações jurídicas entre os Estados. (...) devem surgir instituições, as quais, conquistando o respeito geral, se dediquem à nobilíssima função, seja de garantir o sincero cumprimento dos tratados, seja de promover, segundo os princípios de Direito e de eqüidade, oportunas revisões ou correções." [18]
Guerra justa ofensiva?
"De acordo com a lei natural, uma nação não precisa esperar um ataque injusto para exercer o seu direito de defesa; uma ameaça séria e bem comprovada é suficiente para que o país ameaçado se defenda do agressor potencial com um ataque antecipado." [19]
A guerra, conforme se depreende do já estudado até aqui, é um modo de o Estado exercer a legítima defesa própria e de seus cidadãos. Portanto, deve ser proporcional, moderada, único recurso à disposição (o que equivale ao esgotamento dos meios pacíficos lato sensu), e resposta a uma injusta agressão.
Uma olhada menos atenta sobre este último elemento nos poderia fornecer a falsa impressão de que só a guerra explicitamente defensiva seria justa. Ora, tal característica não está enumerada entre as condições de licitude moral que citamos anteriormente, tampouco é expressa pela lei natural ou pelo Direito posto.
Por ser uma legítima defesa coletiva, em situações muito especiais e que envolvem uma série de fatores e circunstâncias na observação de sua moralidade ou legalidade, temos de atentar para o real significado das expressões quando falamos da ação militar. Com efeito, a legítima defesa não pode antecipar-se de maneira irrefletida a uma suposta ação de um imaginário e futuro agressor injusto. A guerra, forma de legítima defesa, também não.
Ocorre que, na definição do instituto, segundo já vimos, está presente a reação necessária, moderada e proporcional a uma injusta agressão atual ou iminente. Não é preciso que o ataque ilegítimo se esteja produzindo no momento, bastando a iminência. "É iminente a agressão que está para acontecer. A possibilidade concreta de agressão autoriza os atos necessários de defesa. Agressão iminente é, pois, sinônimo de perigo concreto de agressão, a ser aferido dentro de um quadro de probabilidades reais, não apenas fantasmagóricas." [20]
Pois bem, é também legítima, nesse diapasão, a guerra ofensiva, com vistas à repulsa de uma agressão iminente. Posto está que, por suas peculiaridades, a iminência da agressão injusta provocadora da guerra deve ser verificada em termos mais largos e amplos do que a necessária para uma legítima defesa individual.
Tal guerra ofensiva, com base no exposto, o é, aliás, apenas na aparência. Ainda que antecipada, e para evitar agressão injusta iminente, não deixa de ser uma modalidade de guerra defensiva. "Guerra justa diz-se defensiva em dois sentidos: a) no sentido estrito. É defensiva quando a nação cujos direitos são atacados injustamente não inicia as hostilidades, isto é, não declara ou inicia a guerra; b) no sentido menos estrito, ela é defensiva quando a nação injustamente atacada declara guerra ou dá o primeiro golpe. Conseqüentemente, se a nação inocente sabia que o inimigo estava secretamente preparando a guerra contra a sua independência, estaria ela na defensiva, ainda que declarasse a guerra." [21] Trata-se, a guerra aparentemente ofensiva, ainda assim de legítima defesa, mas contra uma agressão injusta iminente, contra uma ameaça fundada de ataque.
"Um povo ameaçado de injusta agressão, ou já vítima dela, se deseja pensar e agir de modo cristão, não pode permanecer em indiferença passiva." [22]
Avançando um pouco mais, temos que, no tópico das condições para considerarmos uma guerra justa e da presença dos elementos caracterizadores da legítima defesa, o motivo da deflagração do conflito armado deve ser razoável, certo, grave. É esse motivo para a guerra a materialização da agressão atual ou iminente do inimigo. Não há guerra justa sem as tradicionais condições explicitadas e sem uma agressão injusta atual (que autoriza a guerra explicitamente defensiva) ou iminente (que autoriza a guerra defensiva aparentemente ofensiva). Tal agressão é o próprio motivo da guerra, e pode ser expressa de diversos modos. Assim, a "História mostra que por vezes a guerra é o único meio de que um Estado dispõe para garantir sua própria segurança e sobrevivência contra ataques ou reivindicações injustas de outros Estados ou para fazer valer direitos fundamentais aos quais não pode renunciar sem grave prejuízo ou desonra. (...) As razões para a guerra ofensiva geralmente estão relacionadas a graves danos infligidos a Estados. Alguns dos exemplos citados pelos filósofos católicos: forçar rebeldes à submissão; recuperar províncias ou cidades do inimigo; punir uma grave ofensa ao chefe de Estado ou à nação; punir outra nação por colaborar com um inimigo injusto; ajudar um aliado; punir nações por violação de tratados; procurar reparação pela violação de direitos assegurados por lei internacional." [23] Esses motivos são exemplos de uma agressão iminente ou mesmo de uma atual. Contudo, o "desejo de estender os limites dos próprios Estados ou diminuir a potência de uma nação estrangeira" ou ter ganhos econômicos "não é motivo suficiente para uma guerra." [24]
"A distinção entre guerra defensiva e ofensiva é totalmente secundária. O que importa é se a guerra é justa ou não.
Guerras ofensivas podem ser justas, e guerras defensivas podem ser injustas. Por vezes, a nação atacada é a causa real da guerra, não a nação que inicia o ataque. Quando isso ocorre, a nação atacada reage com uma guerra defensiva que é injusta nas suas causas, pois tal nação deveria ter evitado a provocação que gerou o ataque original.
Portanto, a nação que iniciou o ataque é apenas um agressor material, e não formal. Ela não teria atacado, a não ser pelo fato de seus direitos terem sido injustamente violados. A nação que ataca não é responsável por uma guerra que se tornou necessária devido às ações de outra.
Conseqüentemente, a distinção entre guerra justa e injusta não se confunde com a distinção entre guerra ofensiva e defensiva." [25]
Conclusão
Nem o pacifismo cobarde nem a belicosidade desmedida, mas o bom senso deve guiar-nos nesse terreno tão delicado. Toda guerra, mesmo justa, traz conseqüências trágicas para as Nações e as pessoas. Seu início, por isso, deve ser muito bem pensado, pesado e refletido.
Para que a guerra seja lícita, a lei natural exige certas condições, entre as quais o esgotamento de outros meios, ditos primários, antes de ser declarada. A lei positiva internacional, por outro lado, explicita quais desses meios devem ser usados. Se eles não forem utilizados – exceto com ineficácia ou impraticabilidade comprovadas –, não se cumpre um requisito essencial.
Outrossim, o motivo que leva à guerra – e o motivo é o dano, requerido pela primeira condição, ou o perigo real de dano – deve também ser justo. Defensiva ou ofensiva, a ação bélica é um modo de legítima defesa, e só pode ser posta em ato, portanto, se os elementos que a autorizam existam de fato.
Notas
01
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 13ª ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 6302
S. Th., II-II, q. 64, a.703
Cat., 226404
NORONHA, Magalhães. Direito Penal, vol. 1, 35ª edição atualizada, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 19505
Santo Tomás de Aquino. Op. cit.06
"Deve-se respeitar o princípio de subsidiariedade: uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua ação com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum." (Sua Santidade, o Papa João Paulo II. Encíclica Centesimus Annus, de 1º de maio de 1991, nº 48) "Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apóie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda." (Sua Santidade, o Papa Bento XVI. Encíclica Deus Caritas Est, de 25 de dezembro de 2005, nº 28)07
ROMMEN, Heinrich A. The State, in "Catholic Thought", St. Louis: B. Herder Book Co, 1947, pp. 254-255)08
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 14ª ed., São Paulo: Malheiros, 1997, p. 10209
MACKSEY, Pe. Charles, SJ. War, in "Catholic Encyclopedia", vol. X, New York: Encyclopedia Press, 1913, p. 54710
MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. De L’Esprit des Lois, liv X, cap. II, princípio11
ROMMEN, Heinrich A. op. cit., p. 25512
A guerra justa ante a ofensiva pacifista contra o direito de soberania, in "Catolicismo", nº 629, São Paulo: Padre Belchior de Pontes Ltda., maio de 2003, p. 1413
DEL GRECO, Fr. Teodoro da Torre, OFMCap. Teologia Moral, São Paulo: Paulinas, 1959, p. 23914
Cat., 230915
BONFILS, Henry. Manuel de Droit International Public, 7ª ed., Paris: 1914, p. 71816
A guerra justa ante a ofensiva pacifista contra o direito de soberania, in op. cit., p. 1617
PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Princípios de Direito Internacional, vol. II, p. 818
Sua Santidade, o Papa Pio XII. Radiomensagem de Natal em 194119
A guerra justa ante a ofensiva pacifista contra o direito de soberania, in op. cit., p. 1520
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1986, p. 18321
McHUGH, John A; CALLAN, Charles. Moral Theology, vol. I, New York: Joseph R. Wagner, 1961, p. 55822
Sua Santidade, o Papa Pio XII. Radiomensagem de Natal em 194823
A guerra justa ante a ofensiva pacifista contra o direito de soberania, in op. cit., p. 1524
DEL GRECO, Fr. Teodoro da Torre, OFMCap. Op. cit., p. 23925
A guerra justa ante a ofensiva pacifista contra o direito de soberania, in op. cit., pp. 15-16