INTRODUÇÃO
A presente exposição objetiva apresentar um panorama geral (sem a pretensão de esgotar o tema) acerca da Participação “Stricto Sensu” como modalidade de responsabilidade individual dos crimes julgados pelo Tribunal Penal Internacional, doravante denominado TPI, com base no Estatuto de Roma. Tal apresentação ocorrerá em quatro planos principais e terá como ponto de partida as modalidades de responsabilidade penal individual “lato sensu” no ordenamento brasileiro (art. 29. do Código Penal), bem como as modalidades de responsabilidade penal individual em sentido amplo apresentadas pelo art. 25. 3 (a)-(f) do Estatuto de Roma.
A concretização das referidas formas de responsabilização individual no âmbito do Tribunal Penal Internacional, como autoria (coautoria ou autoria mediata) ou participação (“stricto sensu”), será objeto de explanação no segundo plano. Com destaque para a participação em sentido estrito, tema central deste trabalho, foi a partir do Conceito Restritivo do Concurso de de Pessoas e de suas duas principais vertentes que foram definidos os pressupostos desta forma de responsabilidade individual: (a) a Objetivo-Formal, adotada por Albin Eser (dentre outros), teoria (ou critério) a qual por muito tempo foi a predominante na jurisprudência do TPI; e (b) a do Domínio do Fato, adotada por Claus Roxin e Kai Ambos, dentre outros, a qual foi o fundamento do caso Katanga.
O terceiro plano da apresentação traz o caso Katanga, importante na jurisprudência do TPI: em que pese esta decisão tenha destacado o reconhecimento da autoria mediata nos aparatos organizados de poder como forma de responsabilização no cenário penal internacional, a importância teórica do referido julgado neste trabalho encontra outro importante desdobramento, pois ele caracteriza a hipótese trazida pelo art. 25. 3 (b), a saber, o ordenamento, o induzimento e a instigação, considerada hipótese de participação “stricto sensu”, antes dos primeiros julgados, como caso de autoria mediata pela jurisprudência do TPI: o critério Objetivo-Formal perde força e cede lugar para o critério do Domínio do Fato, de Claus Roxin, dentro da Teoria Diferenciadora (não mais Restritiva ou Objetivo-Formal) no concurso de pessoas.
No quarto plano, serão mostradas as demais hipóteses de participação “stricto sensu”, a partir do entendimento de Kai Ambos, que adota o critério do Domínio do Fato, e de Albin Eser, que adota a ótica Objetivo-Formal para a delimitação da responsabilização do partícipe.
Por fim, serão apresentadas as considerações finais sem pretensões de esgotar o tema proposto, apenas o de apresentar um panorama geral sobre o assunto.
1. O CONCEITO DE PARTICIPAÇÃO EM SENTIDO AMPLO NO ART. 29. DO ORDENAMENTO PÁTRIO E NO ART. 25. DO ESTATUTO DE ROMA
Para efeito de melhor compreensão, cabe nesse primeiro plano estabelecer um paralelo entre as duas vertentes do ordenamento pátrio e as do Estatuto de Roma, no que se refere à participação no concurso de pessoas. Nesse contexto, no que toca ao ordenamento pátrio, o Código Penal brasileiro de 1940 (Projeto Alcântara Machado, assinado pelo Ministro Francisco Campos em pleno Estado Novo, ou seja, em um contexto de fechamento político) não fazia distinções quanto às diversas formas de participação em sentido amplo trazidas pelo texto do então art. 25. 1 da parte geral, de maneira que todas as pessoas eram consideradas coautoras, sem distinções entre o indivíduo que praticava a conduta principal (exemplo do que atira) do que praticava as condutas secundárias também chamadas acessórias (exemplo do que alcança a arma para o outro atirar).
Em 1984, em uma época de retorno à democracia e às liberdades individuais, a Lei Nº 7.209 modificou o Código Penal de 1940, introduzindo uma nova parte geral, ao substituir o termo “coautoria” do art. 25. 2 pelo termo “concurso de pessoas” no novel art. 29. 3. Essa alteração trouxe significativas consequências, uma vez que introduziu o Conceito Restritivo, cuja base está na distinção entre (co) autores (aqueles que praticam o verbo do tipo penal) e partícipes (aqueles que não praticam o núcleo do tipo, mas auxiliam para que a produção do resultado). Assim, embora o art. 29. do CP brasileiro tenha adotado um sistema unitário de participação “lato sensu”, possibilitou que fosse utilizado um conceito restritivo de autor. E, desse modo, evidenciou o legislador brasileiro ter tomado um outro rumo, ao adotar, portanto, um sistema unitário funcional.
Segundo essa vertente da doutrina, aqui representada por Fernando Capez 4, dentre outros autores, o concurso de pessoas ocorreria quando duas ou mais pessoas, em conjunto e identidade de desígnios entre elas, praticam um só crime, objetivando um só resultado final de regra. Em uma breve classificação desta vertente, o concurso de pessoas pode ser Monossubjetivo, também chamado de concurso eventual, o qual pode ou não ser cometido por uma ou mais pessoas em concurso, caso da maioria dos crimes do Código Penal e da Legislação Especial; ou pode ser Plurissubjetivo (de concurso necessário) 5, em que a condição para tal é a de ser praticado por duas ou mais pessoas, em conjunto e com identidade de desígnios, para produzir um só resultado.
Assim, a natureza jurídica da participação, conforme essa primeira vertente (objetivo-formal) 6 é a de uma conduta acessória, em comparação à autoria, que é a conduta principal, pois leva em conta tão somente o tipo penal, a descrição do texto da lei desconsiderando o resultado e os seus efeitos. Nesse contexto, como já mencionado, autor é quem realiza a conduta principal, descrita no verbo do tipo, ou seja, no texto da lei, enquanto que o partícipe 7 é aquele que sem realizar a conduta principal, concorre para o crime. Nesse contexto, as formas de participação na doutrina brasileira podem ser material, moral (psicológica), em cadeia e colateral. A participação material, 8 também chamada de cumplicidade, consiste no auxílio material, na prestação de apoio ao autor para a prática do fato, ou na instigação para a prática desse fato 9.
A participação moral 10, também chamada de intelectual ou de psicológica, divide-se nas modalidades de induzimento ou de instigação. O induzimento consiste no partícipe reforçar no autor uma idéia preexistente para que esse cometa o delito; a instigação, fazer surgir no autor a idéia. A participação em cadeia 11, também denominada participação de participação, ocorre quando um indivíduo A, por exemplo, instiga outro indivíduo B a instigar o indivíduo C a cometer o crime. Nesse contexto, A e B seriam partícipes e o C, autor.
A participação sucessiva 12, ainda denominada “colateral”, é aquela que ocorre quando dois ou mais partícipes, sem combinação prévia, ou seja, sem desígnio de vontades ou comunhão de esforços, instigam ou induzem o autor a praticar o delito. Exemplo dos partícipes A e B que, sem combinação prévia, instigam o autor C a praticar o crime. Nesse interim, a acessoriedade do partícipe divide-se em mínima, limitada, extremada e hiperacessoriedade.
A mínima, segundo Capez, Greco 13, e outros, é aquela em que a figura do partícipe é a de quem concorre para a prática de um fato típico, independente desse fato ser antijurídico. Exemplo de quem está se defendendo de um ato injusto e o partícipe atua ajudando essa pessoa, não resultando justo que esse partícipe seja punido; a limitada 14, por sua vez, é a teoria da acessoriedade em que o partícipe responde pelo fato se esse além de típico é antijurídico, entretanto, o indivíduo já não responderá na qualidade de partícipe, mas sim, de autor, salvo se fato for culpável; a extremada (máxima) 15, se fato for típico, antijurídico e culpável; por fim, a hiperacessoriedade 16, é a divisão da teoria da acessoriedade em que se acumulam tipicidade, antijuridicidade, culpabilidade, punibilidade e agravantes.
Entretanto, há outra vertente teórica, a do domínio do fato, representada por Alflen, Welsen e Roxin, dentre outros autores, e criado a partir da Teoria Diferenciadora, cuja premissa parte não mais da prática da conduta do núcleo do tipo, mas sim considera o domínio do resultado final, o fato, para fins de distinção entre autoria e participação. Assim, nesse contexto 17, autor é quem detém o controle (domínio) do fato, e partícipe é quem não detém o controle, mas concorre para o resultado final, seja auxiliando, instigando, colaborando ou induzindo.
A conduta principal característica da autoria mediata passa a ser a de quem detém o domínio de todo o iter criminis (hintermann: homem de trás) 18, desde a fase preparatória até a fase pós-executória, mesmo que não pratique os atos executórios, enquanto que o autor imediato pratica os atos executórios em uma ou mais dessas fases (vortermann: homem da frente) 19, porém sem ter conhecimento ou o controle de todo o conjunto factual. O partícipe 20, por sua vez, é aquele indivíduo que auxilia, instiga, colabora ou induz com relação às condutas dos autores mediatos ou imediatos.
Assim, o conceito de partícipe diverge tanto no âmbito interno quanto no internacional, pois sua definição depende pontualmente do critério que é adotado se é o Objetivo-Formal ou se é o do Domínio do Fato. Tal divergência interna desemboca complementariamente no cenário internacional, mediante as formas de responsabilização penal individual, contidas no art. 25. 3 (a)-(f) 21, do Estatuto de Roma, sendo que o foco deste trabalho são as outras modalidades de participação que não a Autoria (art. 25. 3 (a)) 22, Esta, chamada participação lato sensu, embora seja mencionada em diversas passagens deste trabalho (autorias mediata, imediata e coautoria) para mero efeito de compreensão e de diferenciação, diferencia-se do que Kai Ambos 23 chama de “outras modalidades”, que seriam a participação stricto sensu, trazida pela redação das alíneas (b) - (f) 24 do mesmo dispositivo do Estatuto, de cujo embasamento teórico será apresentado a seguir.
É importante salientar que a jurisdição do Tribunal Penal Internacional é complementar à dos Estados signatários, somente atuando em caso de omissão desses, na forma do art. 10º do Preâmbulo 25 e do 1º do Corpo 26 , ambos do Estatuto de Roma, de maneira a atenuar as soberanias.
2. OS DESDOBRAMENTOS DO CONCEITO RESTRITIVO DO CONCURSO DE PESSOAS COMO EMBASAMENTO TEÓRICO DA DELIMITAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO “STRICTO SENSU” NO ÂMBITO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
O conceito de participação em sentido estrito, alíneas (b) - (f) do Estatuto de Roma, aplicado nos julgados do TPI tem por base teórica ora a Teoria Diferenciadora, mediante a aplicação com o critério do Domínio do Fato, em alguns votos, ora a Teoria (Conceito) Restritiva, com o Objetivo-Formal, aplicada em outros. Contudo, durante muitos anos, a vertente Objetivo-Formal do Conceito Restritivo foi a mais aplicada nos julgados internacionais, sob a alegação inicial que seria a que melhor observa o princípio da reserva legal 27.
Segundo esse Princípio 28, o autor seria o indivíduo que realiza o verbo do tipo, conforme o que está na redação da lei penal, e o partícipe seria quem concorre para a conduta do autor sem realizar o verbo (ou núcleo) do tipo. Assim, por exemplo, o mandante de um crime de homicídio, mesmo sendo a pessoa que contrata o matador, não é considerado autor, mas tão somente o partícipe, pelo simples fato de que não praticou o verbo do tipo. A mesma ideia ocorre com o chamado autor intelectual que, apesar da nomenclatura, é tido como partícipe para a vertente Objetiva-Formal, pois não pratica o verbo do tipo.
Dadas tais discrepâncias, socialmente não aceitas, essa Teoria sofreu duras críticas, em virtude do fato de que as figuras do mandante e do autor intelectual fossem somente consideradas partícipes, embora respondessem pelo mesmo crime que os ditos autores. Até então, a distinção entre o autor e o partícipe baseava-se na atitude interna da pessoa 29, do agente, em detrimento de uma leitura mais sistemática dessa conduta dentro do fato. Além dessa inadequação social no papel de cada um no concurso de pessoas, o excessivo formalismo 30 na identificação das condutas de cada indivíduo era incapaz de definir de que maneira os casos de coautoria e de autoria mediata 31 se encaixavam na descrição do fato típico.
Assim, a partir dos anos 60 do século passado, teve início um processo de mudança teleológica jurisprudencial nas máximas instâncias nacionais, de maneira a resultar em uma gradativa adoção do critério do Domínio do Fato em detrimento do critério Objetivo-Formal, de forma a atenuar as garantias processuais do réu em favor de uma maior rede de proteção aos destinatários Direitos Humanos, além de conferir maior racionalidade ao sistema penal 32.
Nas décadas seguintes, esta nova orientação se tornaria prevalente na doutrina penal internacional; em 1994, o Tribunal Supremo Federal Alemão 33 condenou em segunda instância no caso Mauerschützen, como autoria por homicídio doloso: (a) os soldados da fronteira da antiga Alemanha Oriental (RDA) que mataram centenas de pessoas que tentaram atravessar o muro de Berlin para a antiga Alemanha Ocidental - RFA - como autores imediatos, e (b) os superiores hierárquicos ordenadores do referido ato, como autores mediatos, com base na Teoria do Domínio do Fato 34. Em 1996, o Tribunal Constitucional Alemão declarou a constitucionalidade da decisão de retroatividade da condenação.
Tal mudança de paradigma parece ter relação com o Princípio da Complementariedade 35, uma vez que o ordenamento interno alemão pareceu ser insuficiente à época dos fatos (1961: Guerra Fria), ou seja, os valores internos do Estado Federal Alemão eram voltados ao bem de um grupo em detrimento do bem comum.
3. AS FORMAS DE PARTICIPAÇÃO
Para Albin Eser, a concepção de participação “stricto sensu” inclui as figuras da Solicitação, Induzimento ou Instigação 36- art. 25. 3. (b) 37 -, da Cumplicidade - conforme a redação do art. 25. 3. (c) 38 -, da Cumplicidade em Crimes Coletivos - art. 25. 3. (d) 39 -, e da Incitação ao Genocídio - art. 25. 3 (e) 40.
Para o referido autor, as hipóteses do Art. 25. 3. (b) são consideradas de caráter moral ou psicológico. Nesse contexto, solicitar consiste em conduta de fazer o pedido ao sujeito para que este cometa o ato; induzir, a de fazer nascer a ideia na pessoa, o sujeito não tinha a ideia de cometer o ato e o partícipe faz surgir a ideia; instigar, a de reforçar no autor a ideia já existente. A conduta descrita na alínea (b) é considerada autoria mediata 41 por Kai Ambos 42 e por Claus Roxin 43, ao invés de participação.
As hipóteses do Art. 25. 3. (c), por sua vez, são denominadas Cumplicidade 44, e consistem em auxílio ou colaboração material (Aiding e Abetting) 45 para a facilitação da prática de um crime, mediante uma conduta acessória à principal para que esta ocorra. Para Kai Ambos, esta seria a verdadeira participação em sentido estrito.
O rol do Art. 25. 3. (d) consiste em hipóteses de Cumplicidade em Crimes Coletivos, ou Conspiração 46, cuja conduta principal é a um grupo de pessoas contribuírem de qualquer forma para a prática de um crime que tenha objetivo comum. Albin Eser entende que a conspiração é semelhante à figura da instigação - alínea (b). Por fim, o Art. 25. 3 (e) é a Incitação ao Genocídio 47. Esta forma de participação não requer que o crime seja consumado, admitindo-se a modalidade de tentativa.
Albin Eser acrescenta, ainda, a cumplicidade após a prática do crime como forma de participação em sentido estrito, embora não esteja expressamente prevista no Estatuto 48, pois o TPI aceita tal possibilidade de responsabilização individual, desde que o partícipe tenha apoiado a prática do crime antes, durante ou após a sua execução.
4. O CASO KATANGA E AS CONTRIBUIÇÕES DE CLAUS ROXIN E DE KAI AMBOS NA ENUMERAÇÃO DAS “OUTRAS MODALIDADES DE RESPONSABILIDADE INDIVIDUAL” ALÉM DA AUTORIA, A PARTIR DO DOMÍNIO DO FATO
O caso Katanga 49 foi o segundo julgado pelo Tribunal Penal Internacional, cujos fatos ocorreram no final dos anos 90 na República Democrática do Congo, pelos quais o comandante Germain Katanga foi condenado por autoria mediata e não por participação por instigação, ordenamento ou induzimento, a quatro crimes de guerra e um crime contra a humanidade contra a etnia Hema, na cidade de Bogoro.
Katanga não era indutor ou cúmplice, como outrora seria considerado se fosse aplicada o critério objetivo-formal, mas sim, autor mediato, pois os crimes ocorreram em virtude de ordens dadas por ele dentro de um aparato organizado 50, e não por uma resolução conjunta entre todos (comandante e subordinados). Também não se poderia denominar de coautoria, pois ela é recíproca entre as pessoas, o que não se observou no caso, o que se constatou ao cabo foi, uma estrutura vertical, de ordem entre as pessoas, dada a hierarquia desse aparato organizado de poder.
Havia nessa estrutura o sujeito de quem partiam as ordens (Katanga) e o executor (os subordinados), ao invés de uma execução conjunta, de forma que, quem deu a ordem, não poderia ser considerado autor direto ou coautor. Também não pode ser chamado indutor (cúmplice, para Kai Ambos), pois não havia uma divisão do trabalho entre essas pessoas, o sujeito que tem poder não suja as mãos (Katanga) e não é cúmplice, pois não pratica os atos executórios.
Se fosse um mero indutor, Katanga não estaria no centro da divisão 51, assim, é possível afirmar que se trata do autor mediato. Katanga, como autor mediato, não deixa os atos na mão do induzido (do miliciano), que não tem o domínio do ato, apenas o executa, inclusive sendo substituível por outro (fungibilidade) se ocorrer desse soldado não conseguir cumprir o ato ou de recusar-se a cumprir esse mesmo ato. Como o sujeito de trás, Katanga tinha um poder de fato muito maior e um domínio que o sujeito da frente não tinha e que desconhece por completo as relações de domínio e a organização inteira. Assim, não pode ser confundida a autoria mediata nos aparatos organizados com a indução (não no contexto do tribunal penal internacional, que julga crimes de guerra), sendo consideradas figuras distintas, pois uma é hipótese de autoria e a outra de participação stricto sensu.