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Noções introdutórias sobre o Direito Penal do inimigo

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15/05/2006 às 00:00
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4. DIREITO PENAL DO INIMIGO: UMA TERCEIRA VELOCIDADE DO DIREITO PENAL?

A tendência do Direito penal moderno a um aspecto simbólico cada vez maior e necessidade de tornar-se mais efetivo frente às novas formas de criminalidade moderna, acarretaram uma administrativização do Direito, e o surgimento novas formas de pena, mais brandas que a pena de prisão, e em decorrência uma possível flexibilização das regras de imputação e princípios e garantias processuais, como já fora demonstrado anteriormente. Porém, contata-se, com a tese do Direito Penal do Inimigo, uma outra tendência - ou talvez seria melhor dizer previsão - do Direito Penal moderno, a total exclusão dos direitos e garantias processuais dos indivíduos classificados como inimigos, caracterizando uma nova velocidade do Direito Penal.

Dessa forma, o Direito Penal do Inimigo caracteriza, segundo Silva Sanchez, uma terceira velocidade do Direito Penal. Na qual o "Direito Penal da pena de prisão concorra com uma ampla relativização de garantias político-criminais, regras de imputação e critérios processuais" 50 .

Defende o mesmo autor que o Direito de terceira velocidade deve ser reduzido a um âmbito de pequena expressão, em casos de absoluta necessidade, subsidiariedade e eficácia. Porém, conclui que o mesmo é inevitável frente a determinados delitos como terrorismo, delinqüência sexual violenta e reiterada e criminalidade organizada 51. Além de considerá-lo um "mal menor" frente o contexto de emergência em que está inserido, profetizando seu crescimento e até sua estabilidade 52.

Silva Sanchez constata em sua obra o fenômeno social do retorno da teoria da neutralização seletiva, resultante da administrativização do Direito Penal, que vem de encontro com a teoria do Direito Penal do Inimigo. A teoria da neutralização seletiva consiste em que é possível identificar-se um número pequeno de delinqüentes que são responsáveis por um grande número de delitos e que tendem a continuar delinqüindo, partindo-se para tanto de critérios estatísticos. Dessa forma, neutralizando-se os delinqüentes – mantendo-os na prisão pelo máximo de tempo possível – ter-se-ia uma radical redução do número de delitos, importante benefício a baixo custo 53. A neutralização tem-se manifestado de várias formas, como por exemplo, na adoção de medidas de segurança tais como, privação da liberdade e liberdade vigida, que visam manter o individuo sob controle do Estado mesmo após cumprida a pena de acordo com a sua culpabilidade, além da adoção de medidas prévias à condenação em excesso 54.

Como o inimigo é uma não-pessoa, a qual o Estado visa combater e neutralizar, a ele não são previstos os direitos e garantias processuais a que os cidadãos têm direito. Dessa forma, o inimigo não pode ser tratado como sujeito processual 55, pois "com seus instintos e medos põem em perigo a tramitação ordenada do processo" 56 .

Assim, ao inimigo não são previstos, no curso do processo, vários direitos permitidos ao cidadão, como o acesso aos autos do inquérito policial, o direito de solicitar a prática de provas, de assistir aos interrogatórios, de se comunicar com seu advogado. Além de que, são admitidas contra ele provas obtidas por meios ilícitos, como as escutas telefônicas, agentes infiltrados, investigações secretas, além de ter-se um avanço da prisão preventiva como regra, que é exceção num processo ordenado. Portanto, o processo contra o inimigo não pode denominar-se "processo" e sim procedimento de guerra 57.

Manuel Câncio Meliá enumera as características do Direito Penal do Inimigo, quais sejam: em primeiro lugar constata-se um avanço da punibilidade, ou seja, o ponto de referencia do ordenamento é um fato futuro, ao contrário de como ocorre no Direito Penal do cidadão que é a que pune um fato já ocorrido. Em segundo lugar, as penas previstas são muito desproporcionais, e nem mesmo o adiantamento da punibilidade é considerado para sua redução. Em terceiro lugar, muitas garantias processuais são relativizadas ou até mesmo suprimidas 58.

Essas características vêm perfeitamente de acordo com a classificação do Direito Penal do Inimigo como um Direito de terceira velocidade elabora por Silva Sanchez, embora, utilizando-se de um marco cronológico, possa parecer que o Direito Penal evoluiu neste aspecto, em fase anterior às conquistas iluministas – processo inquisitório – pode-se perceber medidas semelhantes às defendidas pela doutrina do Direito Penal do Inimigo, porém os inimigos eram outros.


5. CRÍTICAS À TESE DO DIREITO PENAL DO INIMIGO

A tese do Direito Penal do Inimigo, apesar de bem amparada filosoficamente, tem recebido enumeras críticas por parte da doutrina, principalmente frente ao fato de o mesmo ser previsto em plena vigência de Estados Democráticos de Direito, e por, ao mesmo tempo, afrontar vários ditames dos mesmos. Algumas críticas são puramente emocionais, porém muitas fortemente embasadas, conforme se passa a analisar.

Câncio Meliá destaca algumas críticas à teoria do Direito Penal do Inimigo. A começar pelo próprio nome utilizado por Jakobs para descrever a teoria em análise, Câncio argumenta que, "Direito penal do cidadão é pleonasmo, e Direito penal do inimigo uma contradição em seus termos" 59 .

Sobre o conceito de Direito Penal do Inimigo usado por Jakobs, o referido autor destaca que, o mesmo constitui tão só a reação do ordenamento jurídico contra indivíduos perigosos, e que para tanto a reação é desproporcional e não condiz com a realidade. Alega que, mesmo sem levar-se em conta os estudos de psicologia social em casos importantes para o Direito Penal do Inimigo, como tráfico de drogas, criminalidade de imigração, terrorismo, por exemplo, percebe-se na prática que as reações de combate dirigem-se mais para de inimigos em sentido pseudo-religioso do que na acepção tradicional- militar do termo 60. Nas palavras do autor:

Em efeito, a identificação de um infrator como inimigo, por parte do ordenamento penal, por muito que possa parecer, a primeira vista, uma qualificação como outro, não é, na realidade, uma identificação como fonte de perigo, não supõe declara-lo um fenômeno natural a neutralizar, mas, ao contrário, é um reconhecimento de função normativa do agente mediante a atribuição de perversidade, mediante sua demonização. Que outra coisa não é Lúcifer senão um anjo caído? Neste sentido, a carga genética do punitivismo (a idéia do incremento da pena como único instrumento de controle da criminalidade) se recombina coma do Direito penal simbólico (a tipificação penal como mecanismo de criação de identidade social) dando lugar ao código do Direito penal do inimigo 61.

Percebe-se um significado simbólico na denominação Direito Penal do Inimigo, pois não é somente determinado fato que pertence à tipificação penal, mas também outros elementos que permitam a classificação do autor como inimigo. "De modo correspondente, no plano técnico, o mandato de determinação derivado do principio da legalidade e suas "complexidades" já não são um ponto de referencia essencial para a tipificação penal" 62 .

Câncio Meliá não aceita a teoria do Direito Penal do Inimigo como inevitável, pois afirma ser a mesma inconstitucional, além de não ser efetiva na prevenção de crimes e na garantia da segurança social 63. E em resposta a indagação que se fez sobre o Direito Penal do Inimigo fazer parte conceitualmente do Direito Penal argumentou,

A resposta que aqui se oferece é: não. Por isso, propor-se-ão duas diferenças estruturais (intimamente relacionadas entre si) entre "Direito penal" do inimigo e Direito penal: a) o Direito penal do inimigo não estabiliza normas (prevenção geral positiva), mas denomina determinados grupos de infratores; b) em conseqüência, do Direito penal do inimigo não é um Direito penal do fato, mas do autor 64.

A argumentação de Jakobs de que deveriam existir dois Direito Penais, um voltado para o cidadão e outro voltado para o inimigo está destinada ao fracasso, conforme constata Prittwitz, pois, relata o autor que, o Direito Penal como um todo está infectado pelo Direito Penal do Inimigo, de forma que é impensável uma reforma que possibilitasse a referida divisão e que permitisse um Direito Penal realmente digno de um Estado de Direito 65. E lamenta o autor que, o mais grave, porém, é a possibilidade de o Direito Penal do Inimigo ser usado para legitimar ações de regimes autoritários e como instrumento de dominação social, a ponto de que o Direito como um todo perca influência na medida em que ameaça os direitos e liberdades dos cidadãos 66.

Segundo Luiz Flávio Gomes, no Direito Penal do Inimigo não se reprovaria a culpabilidade do agente, mas sua periculosidade. Com isso, pena e medida de segurança deixam de ser realidades distintas, que só destina a medida de segurança para agentes inimputáveis loucos, ou semi-imputáveis que necessitam de especial tratamento curativo 67.

Como o Direito Penal do Inimigo pune o autor pela sua periculosidade, não entra em jogo a questão da proporcionalidade das penas, que passam a ser demasiadamente desproporcionais. Além do que, trata-se de um Direito Penal prospectivo, em lugar do retrospectivo Direito Penal da culpabilidade, que historicamente encontra ressonância no positivismo criminológico de Lombroso, Ferri e Garófalo, que propugnavam, inclusive, pelo fim das penas e imposição massiva das medidas de segurança 68. Caracterizando, dessa forma, um Direito Penal do autor, mais preocupado em identificar os inimigos, em contraposição ao Direito Penal do fato consectário de um Estado de Direito, que busca a punição de um determinado fato 69.

Além disso, no procedimento contra o inimigo não se segue o processo democrático (devido processo legal), mas sim, um verdadeiro procedimento de guerra, que não se coaduna com o Estado de Direito, principalmente pela supressão das garantias penais e processuais 70.

Uma crítica pode ser feita quanto à afirmação de Jakobs de que o inimigo é uma não pessoa. Desse conceito decorre uma indagação, se o conceito de Direito Penal do Inimigo parte do pressuposto de que existiriam não-pessoas, resta saber se este conceito de não-pessoas é prévio ao Direito Penal do Inimigo ou se é uma criação do mesmo. Dito de outro modo, ou os inimigos estariam identificados antes da incidência do Direito Penal do Inimigo ou somente seriam classificados como tais após a incidência do mesmo. Resta que a resposta afirmativa deva ser dada segunda opção, conforme afirma Jakobs, pois do contrário, estaria-se supondo que o Direito Penal do Inimigo pudesse ser aplicado também aos cidadãos, pois como saberia-se se tratar realmente de um inimigo? 71.

Ocorre que, num Estado de Direito, e garantidor da dignidade do ser humano, o status de pessoa não pode ser ou deixar de ser atribuído a alguém, ou seja, ninguém pode ser classificado como não-pessoa 72. Assim, em não podendo existir não-pessoas, também, não poderá existir Direito Penal do Inimigo.

Seguindo na análise do conceito de inimigo, o qual seria um indivíduo que abandonou de forma permanente e duradoura o Direito, e partindo da a afirmação de que o Direito em questão é o dos cidadãos, e que este Direito somente possa ser infringindo por quem seja destinatário de suas normas, e, conforme afirma o Direito Penal do Inimigo este só pode ser uma pessoa, por certo se chega à conclusão de que o inimigo também é uma pessoa, pois infringe reiteradamente as normas de Direito dos cidadãos. E para que se comprove que este indivíduo em questão tenha infringido realmente o Direito dos cidadãos ele terá que ser submetido necessariamente a um processo penal que por certo deverá ser o dos cidadãos, pois ele entra no processo como cidadão e protegido pelas garantias desse Direito 73.

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Conseqüentemente, se ao fim do processo ficar comprovado que o indivíduo cometeu o ato ilícito deverá sofrer as conseqüências jurídicas do Direito Penal dos cidadãos, pois foi este Direito que o mesmo infringiu e pelo qual foi julgado. E, mesmo que seja com o processo que o indivíduo perca sua condição de pessoa e passe a ser um inimigo, não resta dúvida de que o mesmo deverá transcorrer coberto das garantias processuais próprias dos cidadãos, resultando logicamente que o indivíduo ao ser condenado permanece na condição de pessoa 74. Desse raciocínio conclui Luis Garcia Martín que,

en principio, al Derecho penal del enemigo sólo le es posible partir de la existencia previa de personas, y que si esto es así, entonces los contenidos y las reglas materiales de ese Derecho no podrán ser otras distintas a las del Derecho penal del ciudadano. La argumentación desarrollada, sin embargo, y como he dicho al principio, no tiene más valor que el dialéctico, y por consiguiente no puede ser acogida como decisiva en contra del Derecho penal del enemigo 75.

Outrossim, pode-se alegar que o Direito Penal do Inimigo é uma reação do sistema jurídico, frente aos problemas sociais como os riscos do mundo pós-modernos, internamente disfuncional 76. Pois, "os fenômenos, frente aos quais reage o Direito penal do inimigo, não tem esta periculosidade terminal pra a sociedade como se apregoa deles" 77 . A importância dada a estes fenômenos está em que tratam-se de comportamentos delitivos que afetam elementos essenciais e vulneráveis da identidade das sociedades, principalmente num plano simbólico 78. Assim, uma resposta juridicamente-funcional deveria estar na afirmação do Direito Penal da normalidade, e não na afirmação de um Direito Penal para o inimigo. Portanto, "a resposta idônea no plano simbólico, ao questionamento de uma norma essencial, deve estar na manifestação de normalidade, na negação da excepcionalidade" 79 .

Ao afirmar-se o sistema jurídico-penal normal se nega ao infrator a capacidade de questionar o sistema, e principalmente seus elementos essências ameaçados. Se pelo contrário, se entender possível e legítimo um Direito Penal do Inimigo, ter-se-á que reconhecer, também, a capacidade do infrator de questionar a norma, pois este Direito excepcional prescinde de uma demonização de certos grupos de autores, implícita em sua tipificação da reprovação de seus atos 80, porém baseada em critérios de periculosidade, configurando um Direito Penal do autor, desprovido das garantias e prerrogativas processuais de um Estado de Direito.

Para concluir, é bom frisar a lição de Prittwitz, que reconhece o sucesso incrível do Estado de Direito nos últimos dois séculos, ainda que considerando muitos retrocessos, como o nazismo, por exemplo, e as variadas velocidades desse processo em diversas partes do mundo. O autor reafirma este sucesso mesmo frente às políticas dos EUA que defendem a liberdade por meio da violação do direito à liberdade. Este sucesso, afirma o autor, deve ser observado na busca por uma reposta aos riscos da sociedade atual, não devendo dar espaço para outro que não seja o Direito compatível com um Estado Democrático de Direito 81.

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Sobre a autora
Luciana Tramontin Bonho

advogada em Porto Alegre (RS), especialista em Direito e Processo Penal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BONHO, Luciana Tramontin. Noções introdutórias sobre o Direito Penal do inimigo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1048, 15 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8439. Acesso em: 5 nov. 2024.

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