Vacina Russa contra o Covid-19 e a (Des)Obrigatoriedade de fornecimento pelo Estado

12/08/2020 às 11:56
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Faz-se uma reflexão sobre a viabilidade jurídica do pleito judicial visando obrigar o Estado a fornecer a vacina russa gratuitamente na rede pública de saúde, analisando casos hipotéticos no presente cenário de incerteza científica atual.

A pandemia causada pelo Covid-19 (Sars-Cov-2) tem mostrado sua força de disseminação ao longo do globo. No Brasil, os primeiros registros da doença apontam 14/Março como data inicial da propagação no País, vindo a ultrapassar o primeiro milhão de infectados em 19/Junho.[1]

Por ser transmitido pelas vias aéreas (gotículas de saliva, espirros, tosse...), possui um amplo alcance de contaminação e consequentemente exposição, por isso sua velocidade de contágio é explosiva e a marca de 2 milhões de infectados foi atingida com apenas 27 dias, em 16/Julho.[2]

Apesar dos esforços da quarentena, do distanciamento social, utilização de equipamentos de proteção, ainda assim a doença segue circulando e avançando ferozmente, tendo o País alcançado em 08/Agosto o patamar de 3 milhões de pessoas acometidas e mais de 100 mil mortos.[3]

Para ilustrar o tamanho do impacto, o Brasil é a segunda maior nação em número de casos totais e óbitos por Covid-19, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, com 5,2 milhões de casos confirmados e 165 mil mortes, segundo o levantamento da plataforma Worldometer.[4]

Enquanto não for formulada uma vacina eficaz para conter a propagação do vírus, o presente pesadelo nunca chegará ao fim.

Pensando nisso, a comunidade científica global se uniu para buscar uma solução para controle do patógeno, tendo a Rússia anunciado em 11/08 o desenvolvimento da então sonhada primeira vacina contra o coronavírus que provocaria uma ‘imunidade duradoura’.

Apelidada de Sputnik V[5], a vacina registrada pretende ser utilizada pelo governo russo já em outubro contra o Covid-19 e poderá ser distribuída a partir de Jan/2021 de acordo com o registro nacional de medicamentos do ministério da saúde russo.

Em resposta, a Organização Mundial de Saúde - OMS afirmou que não recomendará a vacina russa para o novo coronavírus sem os resultados dos ensaios clínicos das fases 1, 2 e 3, tendo em vista que ainda não foram recebidas informações técnicas sobre a vacina do governo russo.

No mesmo dia em que divulgado a primeira vacina registrada no mundo, o governo do Paraná confirmou que assinará convênio com a Rússia para produzir a imunização.[6]

Em sentido contrário, o Secretário de Saúde de Pernambuco anunciou que não seguirá os mesmo passos, aguardando sinalização do governo federal, evitando criar falsas expectativas e adotando uma postura de resguardo ao esperar avaliação da comunidade internacional sobre os ensaios clínicos.[7]

A problemática que se propõe a analisar é saber sobre a viabilidade jurídica de forçar judicialmente o Estado a conceder tal vacina já em Jan/2021 na rede pública, caso mantido o cenário científico atual.

Sem mais delongas fáticas, vamos direto a análise meritória da viabilidade jurídica do presente caso hipotético.

Pode-se utilizar como base jurisprudencial os requisitos elencados pelo Superior Tribunal de Justiça para distribuição de medicamentos na rede pública:

  1. Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
  2. incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;
  3. existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência. STJ. 1ª Seção. EDcl no REsp 1.657.156-RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 12/09/2018 (recurso repetitivo) (Info 633).

Como se sabe, não existe qualquer tratamento eficiente no combate ao Covid-19, sendo ineficazes todos os medicamentos existentes para o tratamento da moléstia, inclusive, há diversos estudos clínicos atestando a inutilidade do uso da hidroxicloroquina como estimulado pelo governo brasileiro.[8]

Apesar de ser possível preencher os requisitos I e II, como se vê, caso mantido o estado atual sem registro da vacina pelos órgãos sanitários brasileiros para permitir sua utilização, seria impossível o seu deferimento pela via judicial para cumprimento forçado.

O procedimento de testes e estudos clínicos para aprovação dos antígenos vacinais pela agência sanitária brasileira é auxiliado pelo Instituto Butantan, principal produtor de imunobiológicos no Brasil.[9]

O resultado positivo dos ensaios clínicos realizado pelo Instituto segue para aprovação da ANVISA com posterior inclusão no Programa Nacional de Imunização – PNI do Ministério da Saúde, que poderá usar as vacinas.

Suponha que pela forte propaganda midiática impulsionada pelo Registro Nacional de Medicamentos do Ministério da Saúde Russo tenha havido pedido de registro na ANVISA e a mesma, por uma questão de cautela, tenha ultrapassado o prazo legal de aprovação para feituras de maiores testes incorrendo em mora na apreciação, seria então possível sua concessão judicial?

No entender da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF, é possível a concessão de medicamento não registrado na ANVISA em caso de mora da agência para apreciar o pedido desde que preenchidos 3 requisitos cumulativos:

A ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.

É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:

  1. a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);
  2. a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e
  3. a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. STF. Plenário. RE 657718/MG, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgado em 22/5/2019 (repercussão geral) (Info 941).

Suponhamos que a mora tenha sido irrazoável, preenchendo assim os requisitos I pela existência de pedido de registro sob análise e o requisito III pela inexistência de substituto terapêutico, como já explicado anteriormente.

A mera aprovação da vacina pelo departamento sanitário russo não ilide a indispensabilidade do registro pela ANVISA, tendo em vista que a agência brasileira possui um padrão de qualidade mais alto com a adoção de critérios mais rígidos em comparação com outros órgãos, além de levar em conta os fatores fisiológicos específicos da população brasileira.

Sobre o II requisito, importantes são as considerações de Dizer o Direito:

O STF afirmou o seguinte: é até possível que o Poder Judiciário conceda o medicamento sem registro na ANVISA, mas esta droga já deve ter sido registrada em alguma renomada agência que faça regulação de medicamentos no exterior.

Como exemplos de renomadas agências de regulação podemos citar:

• Food and Drug Administration – FDA, nos EUA;

• European Medicine Agency – EMEA, responsável pela regulação dos medicamentos nos países da União Europeia.

• Japanese Ministry of Health & Welfare, do Japão

Trata-se de uma segurança para a saúde da população brasileira considerando que há uma garantia mínima de que aquele determinado medicamento já foi estudado e avaliado de forma séria e criteriosa por uma agência especializada.

É possível se inferir que além do presente estado de incerteza científica, a vacina russa foi contra indicada pela OMS por ausência de disponibilização dos dados oficiais sobre a eficácia dos testes clínicos, corroborando para uma interpretação de não enquadramento do órgão sanitário russo como uma agência renomada para fins de possibilidade de concessão pela via judicial.

Assim, sem qualquer outra agência de respaldo que apoie ou ateste a viabilidade da mesma, o putativo pedido estaria fadado ao indeferimento por não preenchimento dos requisitos.

Para um melhor entendimento do tema, abre-se um adendo para explanar sobre a sistemática de elaboração do processo de imunização.

O procedimento segue um alto padrão de qualidade e protocolos éticos em todas as suas fases: pesquisas iniciais, testes em animais e seres humanos até a avaliação final dos resultados pelas agências reguladoras. Nesse sentido[10]:

I – Identificação -> identificar o agente causador da doença, no presente caso, o coronavírus.

II – Fragmentação (fase exploratória ou laboratorial) -> a vacina usa o vírus inativo e fragmentado para produzir patógenos que irão estimular o corpo a produzir anticorpos contra a doença.

III – Testes (fase pré-clínica) -> os testes podem ser realizados em camundongos transgênicos que carregam o receptor ACE2 (encontrado nas células humanas capaz de fazer o vírus de conectar e transmitir a doença).

IV – Testes em humanos (fase clínica):

IV.I – Fase 1 -> pequeno grupo de voluntários sadios. Avalia a segurança e eficácia em gerar respostas do sistema imunitário.

IV.II – Fase 2 -> Centenas de voluntários escolhidos de forma aleatória, incluindo alguns pertencentes a grupos de risco. Testa a eficácia da vacina.

IV.III – Fase 3 -> Milhares de testes. Para avaliar a eficácia em condições naturais de presença da doença.

É natural que em todas as etapas de ensaios clínicos em humanos haja um grupo de controle que receba placebo. Por isso as pesquisas podem demorar vários anos para serem concluídas.

O risco na antecipação de alguma dessas etapas para acelerar a elaboração poderia gerar respostas imunológicas agressivas no organismo, podendo transformar um indivíduo com um quadro leve da doença em um paciente em estado grave, inclusive, com a possibilidade de o levar a óbito.

Em caso de sucesso nos testes, a vacina é submetida às autoridades regulatórias.

V – Fabricação -> Produção em larga escala, controle da qualidade e acompanhamento para detectar possíveis efeitos adversos.

Ainda que a fórmula seja aprovada pelos órgãos competentes, a fabricação de uma vacina não é um processo simples e rápido. Segundo o Instituto Butantan[11], o planejamento da produção de vacinas contra o vírus influenza começa 18 meses antes da distribuição das doses, sendo que apenas a fabricação pode demandar nove meses.

Esmiuçado o procedimento de elaboração para o melhor deslinde da questão, fica mais fácil a tarefa de compreender a cautela da OMS no protótipo russo pela ausência dos ensaios clínicos das fases 1, 2 e 3.

Em acompanhamento feito pela OMS sobre as dezenas de vacinas atualmente em desenvolvimento, aparecem resultados apenas para a fase 1 do produto russo, o que impede a análise de sua real eficácia e segurança por não haver comprovação científica, sendo classificado apenas como um medicamento experimental.

Interessante mencionar que no presente momento, a OMS elenca que apenas 6 vacinas em potencial atingiram a fase 3 de testes: i) Sinovac (China); ii) Instituto Biológico de Wuhan/Sinopharm (China); iii) Instituto Biológico de Pequim/Sinopharm (China); iv) Oxford/AstraZeneca (Reino Unido); v) Moderna/NIAID (EUA); e vi) BioNTech/Fosun Pharma/Pfizer (Alemanha/EUA).[12]

 Seria possível a concessão judicial que pleiteasse a obrigatoriedade de fornecimento de medicamentos experimentais pelo Estado?

Segundo o STF, em nenhuma hipótese o Poder Público pode ser obrigado a fornecer medicamento experimental. (STF, RE 657718/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, Dj 22/05/2019. Info 941).

Ademais, a lei nº 8.080/90 proíbe expressamente o fornecimento de medicamentos experimentais no âmbito do SUS:

Art. 19-T.  São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS:

I - o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA;        

II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.” 

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Apesar da saúde ser competência comum dos entes federados, nos termos do art. 23, II, da CF, ou seja, cada um possui parcela de autonomia para assegurar a efetividade e plenitude da saúde pública, mantido o cenário hipotético atual, sem a aprovação da ANVISA, autarquia federal de regulação sanitária, o convênio anunciado pelo Governo Paraná com a Rússia não terá aplicação prática no plano concreto por expressa disposição legal da lei do SUS na vedação de distribuição de medicamentos experimentais na rede pública em qualquer das esferas.

Para esclarecer ainda mais a questão, são pertinentes os comentários do Professor Márcio André Lopes Cavalcante:

Nesse caso, a administração da substância representa riscos graves, diretos e imediatos à saúde dos pacientes. Não apenas porque, ao final dos testes, pode-se concluir que a substância é tóxica e produz graves efeitos colaterais, mas também porque se pode verificar que o tratamento com o fármaco é ineficaz, o que pode representar a piora do quadro do paciente e possivelmente a diminuição das possibilidades de cura e melhoria da doença.

Vale esclarecer que esse entendimento, por óbvio, não proíbe o fornecimento desses medicamentos no âmbito de programas de testes clínicos, acesso expandido ou de uso compassivo, sempre nos termos da regulamentação aplicável. Em outras palavras, os testes com medicamentos experimentais, respeitada a legislação vigente, podem continuar sendo realizados. O que o STF afirmou é que os doentes não podem exigir judicialmente do Estado o fornecimento de medicamentos experimentais.

Dessa forma, pode-se concluir que caso perdure o clima de desconfiança sobre a segurança e validade do agente imunizante russo com a manutenção da classificação de protótipo pela comunidade científica internacional, sem outras agências de renome que respaldem sua eficácia ou sem a validação pela ANVISA, não haverá respaldo jurídico para concessão do pleito judicial de fornecimento da vacina russa desenvolvida, uma vez que será considerada um medicamento meramente experimental.

Em que pese o ‘banho de água fria’ nas expectativas, causada pela presente conclusão jurídica de inviabilidade judicial no cumprimento forçado para o fornecimento de antígenos experimentais pelo Poder Público como solução para pandemia, a boa notícia é que a agência brasileira sanitária já autorizou um estudo clínico de potencial vacina contra o Covid-19, desenvolvida pela Universidade de Oxford, em fases de testes muito promissores desde Jun/2020.[13]


[1] https://www.poder360.com.br/coronavirus/brasil-ultrapassa-1-milhao-de-infectados-pelo-coronavirus/

[2] https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/geral/brasil-ultrapassa-2-milh%C3%B5es-de-infectados-e-76-mil-mortes-pela-covid-19-1.451364

[3] https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/08/08/brasil-ultrapassa-3-milhoes-de-infectados-por-covid-19

[4] https://www.worldometers.info/coronavirus/

[5] Em homenagem ao primeiro satélite a orbitar a Terra, o Sputnik, lançado em 1957 durante a corrida espacial entre a União Soviética e os Estados Unidos.

[6] https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2020/08/11/governo-do-parana-e-russia-vao-assinar-acordo-para-fabricacao-de-vacina-contra-coronavirus.ghtml

[7] https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/vidaurbana/2020/08/pernambuco-nao-aposta-em-vacina-russa-e-espera-sinalizacao-do-governo.html

[8] https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/06/05/covid-19-britanicos-encerram-testes-e-apontam-hidroxicloroquina-como-inutil

[9] http://www.butantan.gov.br/institucional/o-instituto

[10] https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,entenda-como-funciona-o-processo-de-desenvolvimento-de-uma-vacina,70003263247

[11] https://summitsaude.estadao.com.br/vacinas-quais-sao-as-etapas-para-elas-chegarem-ao-mercado/

[12] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/08/12/sp-vai-receber-15-milhoes-de-doses-da-vacina-chinesa-contra-covid-19-ja-no-fim-de-2020-diz-diretor-do-butantan.ghtml

[13] http://portal.anvisa.gov.br/resultado-de-busca?p_p_id=101&p_p_lifecycle=0&p_p_state=maximized&p_p_mode=view&p_p_col_id=column-1&p_p_col_count=1&_101_struts_action=%2Fasset_publisher%2Fview_content&_101_assetEntryId=5902385&_101_type=content&_101_groupId=219201&_101_urlTitle=autorizado-estudo-clinico-de-potencial-vacina-contra-covid-19&redirect=http%3A%2F%2Fportal.anvisa.gov.br%2Fresultado-de-busca%3Fp_p_id%3D3%26p_p_lifecycle%3D0%26p_p_state%3Dnormal%26p_p_mode%3Dview%26p_p_col_id%3Dcolumn-1%26p_p_col_count%3D1%26_3_groupId%3D0%26_3_keywords%3Dvacina%26_3_cur%3D1%26_3_struts_action%3D%252Fsearch%252Fsearch%26_3_format%3D%26_3_formDate%3D1441824476958&inheritRedirect=true

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Sobre o autor
Filipe Reis Caldas

Advogado Tributarista. Bacharel em Direito pela Faculdade Marista. Pós-graduado em Direito Público pela Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF. Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Membro da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/PE.

Informações sobre o texto

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