The Non-Criminal Persecution Agreement: Negotiating Criminal Justice Instrument
RESUMO
Esta prospecção científica tem por objetivo tratar do novel instrumento de justiça penal negocial, introduzido no ordenamento jurídico brasileiro, precisamente no Código de Processo Penal, pela Lei 13.964/2019, a saber o Acordo de Não-Persecução Penal. É apresentado como um desdobramento, no âmbito processual, do direito penal da atualidade, destinado a imprimir simplificação e celeridade nos procedimentos da baixa criminalidade, a fim de que sobre estrutura judiciária suficiente, necessária para resolução das demandas da alta criminalidade. O Acordo de Não-Persecução Penal é percebido como um instituto de justiça penal negocial, de aspecto prévio à ação penal, a exemplo de outros que já existem na legislação processual esparsa, tais como composição civil dos danos, transação penal e suspensão condicional do processo. Em espaço de consenso penal, há a mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal, em que o Ministério Público, via o princípio da oportunidade regrada, negocia com o indiciado o cumprimento de pena alternativa, sem que ocorra a admissibilidade da culpa. Este fator é decisivamente o que lhe afasta dos similares plea bargaining e patteggiamento. Por resultar em atenuação das consequências penais do fato, em aplicação do princípio da retroatividade da lei penal benéfica, há de ser aplicada a todos os fatos ocorridos antes de sua vigência, ainda não julgados.
Palavras-chaves: Justiça Penal Negocial. Acordo Não-Persecução Penal. Norma híbrida. Retroatividade.
ABSTRACT
This scientific prospecting aims to deal with the novel instrument of negotiating criminal justice, introduced in the Brazilian legal system, precisely in the Penal Procedure Code, by Law 13.964/2019, namely the Non-Persecution Agreement. It is presented as an offshoot, in the procedural scope, of the current criminal law, intended to print simplification and speed in the procedures of low crime, so that on sufficient judicial structure, necessary to resolve the demands of high crime. It is presented as an offshoot, in the procedural scope, of the current criminal law, intended to print simplification and speed in the procedures of low crime, so that on sufficient judicial structure, necessary to resolve the demands of high crime. The Penal Non-Persecution Agreement is perceived as an institute of criminal penal negotiation, with an aspect prior to criminal action, like others that already exist in sparse procedural legislation, such as civil composition of damages, criminal transaction and conditional suspension of the process . In a space of criminal consensus, there is a mitigation of the principle of mandatory criminal action, in which the Public Ministry, through the principle of regulated opportunity, negotiates with the defendant the fulfillment of an alternative sentence, without the admissibility of guilt occurring. This factor is decisively what separates it from similar plea bargaining and patteggiamento. As it results in mitigation of the criminal consequences of the fact, in application of the principle of retroactivity of the beneficial criminal law, it must be applied to all the facts that occurred before its validity, not yet judged.
Keywords: Negotiating Criminal Justice. Non-Criminal Persecution Agreement. Hybrid standard. Retroactivity.
Sumário: INTRODUÇÃO. FUNDAMENTAÇÃO. 1. Direito penal na atualidade. 2. Direito processual. 3. Legalidade, oportunidade e consenso penal. 4. A justiça penal negocial. 5. Modelos de justiça penal negocial. 6. Institutos da justiça penal negocial no ordenamento jurídico brasileiro. 7. O acordo de não-persecução penal. 8. Questões de aplicabilidade – retroatividade. CONCLUSÃO. BIBLIOGRAFIA.
INTRODUÇÃO
Em 24 de dezembro de 2019, foi editada a Lei 13.964/2019, com vigência a partir de 23 de janeiro de 2020, denominada Pacote Anticrime, destinada a proceder modificações pontuais, principalmente, no Código Penal e no Código de Processo Penal, tendo introduzido, através do Art.28-A/CPP, o Acordo de Não-Persecução Penal – ANPP.
As questões que se apresentaram, de imediato, são pertinentes à sua natureza e origem, aos fins a que se prestam e à capacidade de atender expectativas criadas em torno destes fins, aos efeitos jurídicos na esfera de direito do destinatário, bem como aos problemas práticos e operacionais, em sua aplicação.
Respostas relacionadas à natureza e origem do instituto do Acordo de Não-Persecução Penal – ANPP, podem surgir da observação do fenômeno pelo qual elementos do modelo adversarial system, próprio da common law, foram ganhando espaço nos ordenamentos jurídicos que adotam o modelo inquisitorial system, este surgido por evolução do processo inquisitivo, mas que hoje é acusatório, próprio da civil law.
As preocupações em relação aos fins a que se destina, bem como à capacidade de rendimento em atender expectativas, podem prospectar resultados na análise do movimento no direito penal da atualidade, bem como no desenvolvimento do direito processual que se faz marginar ao direito penal.
As consequências jurídico-penais em relação aos delinquentes devem ser extraídas, para além das disposições legais, da concepção do instituto no âmbito da justiça criminal negocial perante os princípios penais que vigem em um Estado de direito, nomeadamente o da culpabilidade, em interação com o sistema de processo penal que é adotado, inquisitorial-acusatório.
Os problemas surgidos no momento da aplicação do instituto e em sua operacionalização, devem ser equacionados em sintonia com a legislação positiva, por expressão da política criminal adotada, e com as normas contidas nos princípios que regem o ordenamento jurídico, nomeadamente os dos direito penal, em compatibilidade com os princípios dos modelos de justiça e de procedimento em que se insere.
FUNDAMENTAÇÃO
1. DIREITO PENAL NA ATUALIDADE
Outrora afirmamos (2013, p.113) que a caracterização do Direito Penal está nos seus princípios, lentamente fundados, em função de dois elementos principais: a natureza aflitiva das sanções e o destinatário das sanções. Em síntese:
Em função do ser humano, em respeito à dignidade da pessoa humana e aos demais direitos fundamentais da pessoa humana, em razão da severidade das sanções criminais é que se edificou o sistema criminal dotado de princípios específicos de garantia que termina por impor limites à persecução estatal. Estes limites não se encontram tão somente no Direito Penal e normas afins, mas também em todo sistema repressivo.
A severidade das sanções, por sua vez, está relacionada à graves ataques a valorosos bens da vida, entretanto, no sistema penal, as sanções, principalmente em sua aplicação, encontram-se mediadas por cautelas e garantias. A observância das cautelas e o cumprimento das garantias, impõe, ao sistema penal, lentidão e ausência de versatilidade, assim descrito por HASSEMER (2008, p.227):
O Direito penal, em seu formato de um estado de Direito liberal, é um instrumento flagrantemente inadequado para apoiar objetivos políticos, controlar situações problemáticas ou prover à ampla prevenção de situações perigosas. Ao contrário, seu instrumental é pesado, anacrônico e desigualmente fraturado em suas possibilidades de produzir efeitos. Sua estrutura pesada não lhe permite contribuir para o estabelecimento de objetivos e meios de solução de problemas que permitam versatilidade, abertura para o futuro e flexibilidade diante de perturbações inesperadas.
Perspectivas de soluções são testadas dentro do sistema repressivo, seja por elementos de direito material, sejam por elementos de direito instrumental e, às vezes, por combinação de elementos, materiais e processuais.
Uma das diretivas, seguidas por diversos ordenamentos, tem sido o Direito Penal de Velocidades, em que, ao lado do Direito Penal Clássico, repleto de garantias e destinado à sanções privativas de liberdades, haveria de admitir uma Direito Penal de “segunda velocidade”, em que houvesse a mitigação e flexibilização de cautelas e garantias, associadas a sanções meramente restritivas de direitos, inclusive pecuniárias.
Em outra oportunidade, tratei desse aspecto (2016, r.579.116), em perspectiva da expansão do direito penal, nestes termos:
De outra parte, alguns anunciam a “expansão do direito penal”, argumentando que existe uma dualidade na política e na dogmática penal, de forma que o direito penal com um núcleo duro (direito penal clássico) conviveria com uma periferia flexível (direito penal moderno), este direito penal periférico estaria dirigido aos novos riscos; seria um direito penal em duas velocidades, um clássico e primário, outro moderno e secundário.
Nesse contexto, surgiu no Brasil os institutos da transação penal[2], destinada aos crimes de menor potencial ofensivo, e o instituto da suspensão condicional do processo[3], direcionada aos crimes de médio potencial ofensivo. Ambos os institutos, componentes da justiça criminal negocial.
Todavia, RODRIGUES (2015, p.23) nos adverte que a tendência de esvaziamento do sistema punitivo, alavancado pelo movimento de “desinstitucionalização”, do final do século passado, de onde nasceram as penas alternativas, agora se inverte, havendo um expansão do sistema punitivo, inclusive que resulta em mais pena privativa de liberdade. Essa nova tendência teria surgido de um movimento de mera retribuição, mas associando-se a uma ideia de “nova penologia”[4] de origem americana. Então, sintetiza RODRIGUES (2015, p.25) como a falência da ressocialização cede lugar à neutralização:
À luz desta lógica securitária, promove-se a ideia de que ‘a prisão funciona’ e fomenta-se uma estratégia punitiva institucional. Se a prisão não pode fazer mais nada, pode retardar o reinício da atividade criminosa por parte dos indivíduos perigosos. Esses períodos de tempo produzem a redução do(s efeitos do) crime na sociedade, embora sem mudar nem o delinquente nem a sociedade.
Assim, a anunciada separação, de pena privativa de liberdade para a criminalidade mais grave, reservando as penas alternativas para a criminalidade menos grave, não se operaria desta maneira, uma vez que, a tendência do descumprimento destas últimas, acarretaria a implementação das primeiras[5], portanto, seria uma expansão do sistema punitivo que resulta em mais encarceramento.
2. DIREITO PROCESSUAL
Sem nos atermos tanto às críticas, mas vinculado à preocupação de constatações e descrições, há de se registrar que o processo se tornou a via capaz de realizar o direito penal moderno, sendo a forma negocial o elemento impulsionador das resoluções nos processos, em detrimento da formação da culpa em ambiente de ampla instrução probatória.
Esse movimento já havia sido detectado por HASSEMER (2008, p.259):
O Direito penal moderno reagiu prontamente à expansão da demanda do Direito material com a introdução do princípio da oportunidade e seu crescente aprimoramento. [...] Também a possibilidade, ainda limitada, de se admitir e formalizar acordos no processo penal se oferece como meio processual de realização do Direito penal moderno.
Neste contexto, há uma adaptação do direito processual às linhas do direito material, impulsionados pela mesma política criminal. A um direito penal de nova feição (moderno), se faz necessário um direito processual penal que tenha capacidade de realizar as finalidades daquele (HERNÁNDEZ, 2012)[6].
Em outra oportunidade HASSEMER (2005, p.235) relata a flexibilização do princípio da obrigatoriedade, em função das novas exigências da justiça penal:
O fato de que o princípio da oportunidade satisfaz em uma larga medida os desejos de uma justiça penal orientada pela eficiência e consciente dos custos, é fácil de perceber. Uma audiência principal mais cara e inclusive dispendiosa é evitada: as autoridades podem reagir de maneira flexível porque elas não estão vinculadas a um programa de decisão permanente; o acusado pode ser sensivelmente incriminado, mas sem ser punido; sua adesão proporciona ao resultado uma maior legitimação; a opinião pública é ignorada por todos: a proporção que vai da pequena criminalidade até a intermediária por ser executada de um modo relativamente rápido, barato e indolor.
Então, em busca de efetividade e economia, o princípio da stricta legalidade cedeu espaço à oportunidade e ao consenso dentro do processo, tendendo a um novo processo penal. E essa foi, precisamente, a justificativa presente no projeto Pacote Anticrime, na parte relativamente às modificações do Código de Processo Penal:
É evidente que o Código de Processo Penal de 1941 e a legislação que a ele se seguiu não estão atendendo às necessidades atuais. Assim, as reformas que ora se propõem visam dar maior agilidade às ações penais e efetividade no cumprimento das penas, quando impostas.
3. LEGALIDADE, OPORTUNIDADE E CONSENSO PENAL
O direito penal é, em uma certa visão e numa determinada realidade, uma limitação do direito estatal de punir. Assim, sendo, a efetivação do direito de punir é regulado pelas normas penais lato sensu, desde o âmbito constitucional até o âmbito jurisdicional, passando pelo do âmbito procedimental. Essa regulação é irradiada pelo princípio da legalidade, nos termos da premissa do nullum crimen, nulla poena sine lege. Vejamos um trecho esclarecedor em FIGUEIREDO DIAS (2007, p.177):
O Princípio do Estado de Direito conduz, como na exposição anterior já por várias vezes se revelou, a que a proteção dos direitos, liberdades e garantias seja levada a cabo não apenas através do direito penal, mas também perante o direito penal. Até porque uma eficaz prevenção do crime, que o direito penal visa em último termo atingir, só pode pretender êxito se à intervenção estadual forem levantados limites estritos – em nome da defesa dos direitos, liberdades e garantias das pessoas – perante a possibilidade de uma intervenção estadual arbitrária ou excessiva. A essa possibilidade de arbítrio ou de excesso se subtendendo a intervenção penal a um rigoroso princípio da legalidade, cujo conteúdo essencial se traduz em que não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege).
Em HASSEMER (2005, p.332), com mais evidência, o princípio da legalidade é descrito como núcleo do direito penal de limitação do direito estatal de punir:
Ele é expressão da autoconsciência burguesa, que surgiu com o Humanismo, face ao domínio estatal, em sua luz aparece a lei penal não só como uma Magna Charta Libertatum do delinquente, como compreende a época mais recente, mas em primeiro lugar como Magna Charta Libertatum do cidadão.
Nesse contexto haveria obrigatoriedade da ação penal, observada a justa causa, a fim de que as penas somente fossem aplicadas quando passassem pelo crivo da legalidade. O princípio da obrigatoriedade não se limita a impor o dever de demandar, mas também acarreta a proibição, ao Ministério Público, de desistir, de se retratar e de oferecer perdão ao acusado (VASCONCELLOS, 2015).
Todavia, a obrigatoriedade pode vir a ser mitigada em nichos de discricionariedade, onde se pode avaliar, via parâmetros legais, a oportunidade de demandar, assim, o princípio da obrigatoriedade coexiste com o princípio da oportunidade regrada, como relata VASCONCELLOS (2015, p.42):
Em resumo, o processo penal seria regido pela legalidade quando o órgão acusador fosse obrigado a oferecer a denúncia e, assim, iniciar a persecução penal judicial sempre que houvesse indícios suficientes de materialidade e autoria de um crime: por outro lado, a oportunidade vigoraria em um cenário em que, diante de tal situação, o representante do Ministério Público fosse autorizado a agir discricionariamente, decidindo por acusar ou não.
Como visto, o princípio da oportunidade regrada é instrumentalizado para a flexibilidade do princípio da obrigatoriedade, em um âmbito de legalidade, onde o princípio da estrita legalidade é conformado pelo consenso em matéria penal. Dessa forma, abre-se caminho para a justiça criminal negocial.
4. A JUSTIÇA CRIMINAL NEGOCIAL
A possibilidade de haver a resolução do processo penal de forma consensual, surge em espaços legais de negociação, intermediado pela discricionariedade em ambiente de oportunidade geralmente regulada na legislação, onde a obrigatoriedade da ação penal, fica condicionada a novos parâmetros, inclusive por elementos negociais.
Nesse ambiente em que se possibilita determinados espaços de discricionariedade e de negociação, subsiste o processo penal tradicional, mas oportuniza a ocorrência do processo penal consensual, em que a sua resolução é dada mais pelo consenso, e menos pelo imperativo judicial, dispensando a presença das caraterísticas da justiça tradicional, em busca da agilidade[7] na resolução do problema objeto do processo.
Esse novo tipo de justiça criminal é circunstanciado por VASCONCELLOS (2015, p.55), nesses termos:
Portanto, pensa-se que a justiça consensual (ou negocial) é o modelo que se pauta pela aceitação (consenso) de ambas as partes – acusação e defesa – a um acordo de colaboração processual com o afastamento do réu de sua posição de resistência, em regra impondo encerramento antecipado, abreviação, supressão integral ou de alguma fase do processo, fundamentalmente com o objetivo de facilitar a imposição de uma sansão penal com algum percentual de redução, o que caracteriza o benefício ao imputado em razão da renúncia ao devido transcorrer do processo penal com todas as garantias a ele inerentes.
Assim, a justiça penal negocial é um modelo de aplicação de sanções penais, em que instrumentos negociais, dentre estes a barganha[8], são ferramentas processuais que protagonizam o procedimento, em detrimento da verdade material ou da apreciação probatória para julgamento de culpa, resultando celeridade que pode impactar o modelo de justiça tradicional. Na medida em que, grande quantidade de casos sejam equacionado no modelo consensual, restarão recursos e estrutura judiciais suficientes, a serem carreados ao modelo tradicional.
O modelo de justiça penal negocial do Brasil não é, ainda, o da formação de culpa sem produção e apreciação da prova em juízo.
O modelo de justiça penal negocial no Brasil, basicamente era representado pela composição civil dos danos, pela transação penal e pela suspensão condicional do processo (1990), surgindo, posteriormente, a colaboração processual premiada (2013), entretanto, surge nesse ano de 2020, um instrumento com perspectiva de maior impacto na justiça criminal, o Acordo de Não-Persecução Penal, o qual se apresenta representativo do modelo justiça de consenso, no ordenamento jurídico brasileiro.
5. MODELOS DE JUSTIÇA CRIMINAL NEGOCIAL
Um dos modelos de justiça criminal negocial mais difundido, trata-se do modelo norte americano, conhecido por plea bargaining.
Este modelo é circunscrito por FERNANDES (2002, p.74), nos seguintes termos:
A mais comum é a barganha entre promotor e suspeito ou seu advogado, quando o promotor, em troca de declaração de culpa, pode fazer concessões ao suspeito, as quais podem consistir em: retirar algumas acusações, sendo conservadas outras; aceitar a admissão de culpa por crime menor (misdemeanor), não mantendo a acusação por crime mais grave (felony); comprometer-se a recomendar probation ou outra benevolência na sentença, em geral aceita pelo juiz. Trata-se do conhecido instituto da plea bargaining, de grande relevância no sistema americano.
A importante característica desse modelo é a ampla discricionariedade de atuação do órgão acusador, aliada à formação da culpa, sem que tenha havido produção judicial da prova.
Fato é que este sistema, nos EUA, é o responsável pela resolução da quase totalidade dos processos penais. Nesse é que ocorre a admissão da culpa, a renúncia ao modelo de processo tradicional, implicando na aplicação da pena em circunstâncias mais favorável ao acusado.
O ambiente de negociação se dá em audiência de acusação – arraignment – em que o acusado, após conhecer a imputação, é questionado acerca da sua inocência, assim, podendo se declarar culpado (guilty plea), declarar que não deseja discutir o processo, aceitando a sanção, porém sem reconhecer a culpa (nolo contendere) e, por fim, a terceira opção de se declarar inocente (not guilty), onde o processo se encaminha para a via tradicional do devido processo legal, caracterizado pelas cautelas e garantias.
SILVA (2018, p.103) nos adverte que, neste sistema é verificado pelo julgador, se existe base fática (materialidade e indícios de autoria) para a guilty plea, bem como se existe base legal para uma condenação (tipicidade, etc.), inclusive reservando o poder de não acatar o acordo. Estratificando:
Assegurada a liberdade de determinação do acusado, só então o juiz, aceitará ou não o que foi acordado, e ainda agora não apenas na base da confissão, participando agora o acusado como testemunha dos factos, mas tendo em consideração os elementos do processo que lhe permitam em juízo. Por isso que a decisão do juiz de anunciar que considera: (i) que existe uma base fática para a guilty plea do arguido relativamente a cada uma das acusações relevantes; (ii) que o arguido não se encontra no momento sob a influência de drogas ou álcool, nem sofre qualquer tipo de doença mental ou outra limitação; (iii) que o arguido compreende plenamente as acusações relativamente às quais está a assumir a culpa e que a plea é feito de forma consciente, voluntária e esclarecida, com pleno conhecimento das consequências de assumir a culpa, e (iiii) que o arguido compreende os direitos a que estar a renunciar e está consciente, voluntária e esclarecidamente a renunciar a esses direitos.
Outro modelo de justiça negocial de referência é o italiano, conhecido como patteggiamento – acordo judicial – o qual pode se dá acerca do rito ou em termos de sanção penal.
Em Il Giudizio abbreviato – o julgamento abreviado – há um julgamento sumário, com redução da pena de um terço, ou seja, um acordo acerca do rito. Outro acordo possível, já acerca da pena em si, se dá no instituto da applicazione della pena a richiesta di parte – aplicação da pena a pedido da parte.
Segue a descrição do modelo por FERNANDES (2002, p.83):
Não há a fase referente aos debates no giudizio abbreviato e na applicazione dela pena a richiesta de parte. No julgamento abreviado (arts. 438 a 443), é proferida uma decisão na audiência preliminar, a pedido do imputado e com a concordância do Ministério Público, e, em caso de condenação, a pena é reduzida em um terço, não podendo o Ministério Público modificar a imputação. Trata-se de um pattegiamento (acordo) sobre o rito, em contraposição ao pattegiamento sobre a pena, na applicazione della pena a richiesta di parte, que pode ser pedida pelo Ministério Público ou pelo imputado.
Há que adicionar, que o modelo de acordo penal norte americano é um desenvolvimento adequado do modelo adversarial system[9], provindo da Inglaterra e desenvolvido nos Estados Unidos da América, caracterizado no fato de que as partes, com iguais direitos, levam o caso e a prova ao magistrado, o qual não participa da decisão acerca da culpa, apenas dirige o julgamento e fixa a pena, em caso de condenação pelo júri. Nesse ambiente é natural que houvesse maior espaço para a aceitação de acordo entre partes. O plea bargaining. Instituto que tende a ser introduzido no modelo do inquisitorial system, próprio do continente europeu, e que tem como característica o fato do magistrado colher pessoalmente a prova, inclusive com a responsabilidade da busca pela verdade material, assim, podendo impulsionar, de ofício, o processo, sem espaço para direito de disposição pelas partes (SCHÜNEMANN, 2002).
Uma explicação para a influência do instituto norte americano, nos demais sistemas procedimentais, do tipo europeu continental, pode estar numa ideia utilitarista, conforme informa SCHÜNEMANN (2002, p.294):
Este juicio negativo puede ser sorprendente a primera vista, ya que los acuerdos parecen ser no sólo una necesidad de descargar a la justicia de la enorme cantidad de procedimientos y de la elevada duración de los mismos. Pareciera que, además, los acuerdos de partes servirían para una sustitución de la idea de retribución, en tanto sentido primario y fin de la pena, por un concepto racional de prevención, a través del cual se acentúa la necesidad y la legitimidad de formas de solución basadas en la economía procesal y orientadas al consenso.
Com efeito. A eficiência, em termos de resultados práticos, parece ser o fator legitimador de um sistema que subverte, em relação ao sistema tradicional europeu, e tende a prevalecer.
Relata SCHÜNEMANN (2002) que a enfrentar a crise do sistema processual europeu continental, revelada pela enorme quantidade de atos no procedimento, a grande quantidade de processos e a lentidão dos mesmos, frente à limitada capacidade de resolução, própria de um sistema judicial altamente formal, no qual a verdade está acima da efetividade e rapidez, o legislador alemão fez editar cerca de 82 leis, no espaço de 30 anos, assim, mesmo com a ampliação legislativa do princípio da oportunidade, além da implementação de outras medidas de aceleração do procedimento, não foi o suficiente para uma maior produtividade, exceto depois de serem implementados – na prática judicial e ao arrepio da lei, por juízes, promotores e advogados – determinados acordo informais, no processo penal, instrumentos esses que, quando adentraram no ordenamento jurídico da Espanha e da Itália, se fez pela via legislativa.
No Brasil, a inovação em termos de instrumentos de justiça penal negocial, tem-se efetivado, via de regra, pelo legislativo.
6. INSTITUTOS DE JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Relata MACCHI (2006, p.238) que as reformas processuais na américa latina para migração do antigo processo inquisitório ao processo misto, ocorreu a partir do ano de 1940, entretanto, as discussões em torno do projeto de código processual modelo para a iberoamérica, propulsionou novas reformas para um modelo de cariz mais acusatório.
Sendo o Código de Processo Penal brasileiro, do ano de 1941, natural que reclamasse modificações, estas ainda não implementadas, em razão do atraso na tramitação do PLS 156/2009. MELO (2016, p.390) defende que o princípio da obrigatoriedade da ação penal, não fora recepcionado pelo Constituição da República Federativa do Brasil de 1998, assim, abrindo espaço para momentos de consenso no processo penal.
Elementos de justiça penal negocial adentraram no ordenamento jurídico brasileiro, nessa ideia de um âmbito de direito penal despenalizador, então, uma velocidade mais débil em trato das contravenções penais e dos crimes de menor potencial ofensivo[10], assim, já na Constituição da República Federativa do Brasil[11], em 1998, foi previsto instrumento de consenso relativamente à sanção penal: a transação.
Com a regulamentação do dispositivo constitucional, através da Lei 9099/1995, fora implementado não somente a transação penal(1), mas também outras duas ferramentas de consenso, a composição civil dos danos[12](2), em âmbito penal, com força de impedimento da persecução penal, e, ainda, a suspensão condicional do processo(3), destinada aos crimes de médio potencial ofensivo[13].
Há de se observar que os espaços de consenso podem coexistir em um mesmo caso, assim, em não ocorrendo acordo entre agressor e vítima(a), sendo o delito do tipo de ação pública (condicionada ou não), abre-se oportunidade para uma nova negociação – entre Ministério Público e autor do fato – que, se também não possibilitar a resolução(b), resultando em denúncia criminal, com ela, o órgão acusador apresentará nova proposta de acordo, acerca da suspenção do processo(c), por período certo de tempo, para o qual serão assinaladas condições ao aceitante, estabelecendo suspensão processual condicionada ao cumprimento das referidas condições.
Apesar da “transação penal” se assemelhar ao plea bargaining, em razão da resolução consensual resultar em aplicação imediata de sanção penal, entretanto, outros fatores, tais como a limitação de oportunidades em realizar o acordo, o critério objetivo de não encontrar-se, o autor do fato, respondendo a outro processo criminal, além da possibilidade de critérios subjetivos poder impedir o acordo, indica que o instituto brasileiro estaria mais ligado a ideia de um direito penal de velocidade amena, em razão da espécie de delito e do tipo de infrator. Entretanto, o elemento diferenciador básico está na formação da culpa, pela condenação criminal.
A colaboração premiada[14] vem a ser outra ferramenta processual da justiça penal negocial brasileira, regulada pela Lei 12.850/2013[15], haja vista os elementos da barganha penal, caracterizada na confissão do investigado, na formação de culpa judicial e no benefício da redução de pena. Antes, o tema era tratado pela Lei 9034/1995[16], na qual constava o instituto denominado “colaboração espontânea”[17], entretanto, do mesmo, pouco se fez uso.
Porém, desde a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8072/1990), já se fez inserir a ferramenta da delação premiada[18], incentivando o integrante do bando ou quadrilha, hoje associação criminosa, a proceder a delação dos demais integrantes, a fim de obter uma considerável redução da pena. Fato que se repetiu na Lei 9613/1998[19], lei de combate à lavagem de capitais, com incentivo de significativa redução de pena e abrandamento do regime de cumprimento da pena, ao acusado que colaborasse decisivamente com a investigação.
Já na Lei 9807/1999, lei de proteção à testemunha, tratou-se também de premiar a colaboração efetiva dos investigados (artigos 13 e 14), ou seja, delação premiada[20].
Na Lei 11.343/2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - SISNAD, traz similar instituto com denominação “colaboração voluntária[21]”.
Enfim, com a regulamentação constante da nova lei (Lei 12.850/2013: artigos 4º a 7º), inclusive prevendo o instrumento de acordo, o instituto se coloca como negócio de colaboração do investigado para com o processo, portanto, se apresenta mais adequado o uso da terminologia “colaboração premiada”, ao invés de delação premiada. Não basta delatar, há também que colaborar com o processo. É nesse instrumento legislativo que se possibilita maior campo de discricionariedade para a atividade negocial. Inclusive VASCONCELLOS (2015, p.121) relata a possibilidade de ocorrência, em qualquer fase do processo:
Conforme tal regulamentação, o acordo pode se concretizar em qualquer momento da persecução penal, seja durante a investigação preliminar, o processo ou, inclusive, posteriormente na fase de execução, enquanto ocorre o cumprimento da pena.
Este maior espaço para a negociação, bem como a redução da participação do julgador somente ao controle da legalidade, torna o instrumento mais próximo, em termos de negociação, do modelo de barganha praticado no sistema da Common law. Ainda mais quando se regulou (§4º[22], Art.4º) a possibilidade do não oferecimento da denúncia, afastamento inequívoco do princípio da obrigatoriedade da ação penal.
Com a recente Lei 13.964/2019, oriunda da proposição governamental denominada “pacote anticrime”, houve o adicionamento de novel dispositivo, artigo 28-A, no Código de Processo Penal, introduzindo, no ordenamento jurídico brasileiro, mais um instituto de justiça penal consensual, o Acordo de Não-Persecução Penal[23], ao qual reservaremos um tópico específico.
7. O ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL
No projeto de reforma do Código Penal, Projeto de Lei do Senado 236/2012, o qual chegou a avançada tramitação no legislativo, já constava, em título específico, instrumentos processuais de justiça negocial, mais agressivos do que os já contidos na legislação processual esparsa (composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo). Assim, já previa a barganha[24] (ou acordo penal), juntamente com a colaboração premiada, no título sétimo, da parte geral (Título VII – Da Barganha e Colaboração com a Justiça), como descreve a relatoria com a seguinte redação:
Por fim, cabe destacar que o Projeto criou o instituto da barganha, próximo ao plea bargain do direito anglo-americano, por meio do qual o processo se encerra de forma célere com a confissão do acusado e a negociação da pena; e ampliou o instituto da colaboração com a Justiça, que inclui a delação premiada, com a possibilidade de perdão judicial ao réu colaborador.
Entretanto, com a aprovação do substitutivo do projeto, através do Parecer 1576/2013, houve a supressão no que se refere a barganha, sob o argumento de que o momento era inoportuno, reforçado pelo argumento de se tratar de matéria eminentemente procedimental. Enfim, o projeto ainda não chegou à sua fase de aprovação.
Já no projeto de reforma do Código de Processo Penal, Projeto de Lei do Senado 156/2009, o qual já teve encerramento de sua fase de tramitação na primeira casa legislativa (com a aprovação do Parecer 1636/2010), consta um instituto negocial[25] com estruturação muito próxima do giudizio abbreviato e da applicazione dela pena a richiesta de parte, haja vista que nos crimes em que a pena máxima, cominada em abstrato, não excedesse a 8 anos, caberia, a requerimento da parte, a abreviação do rito, do ordinário para o sumário, com a aplicação imediata da pena, no patamar mínimo previsto em abstrato, podendo, ainda, caber redução de um terço, substituição de sanção privativa de liberdade por outra alternativa ou a suspensão da execução da sanção privativa de liberdade.
Eis que, por mera resolução[26], em normativa editada para regular o exercício da investigação criminal, a ser executada diretamente por membro do Ministério Público, o Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP, fez incluir a possibilidade de que o Ministério Público pudesse transacionar com o investigado, não propondo a ação penal, em contra prestação de cumprimento de penas alternativas e de reparação do dano. Nesta, se nominou “acordo de não-persecução penal” – ANPP, ou seja, negócio obstativo da persecução. Após críticas, houve refluxo momentâneo na normativa, já que fora retirada pelo próprio CNMP, todavia, renovada com a edição da Resolução 183/2018[27], desta feita limitando aos crimes cuja pena mínima, cominada em abstrato, fosse inferior a 4 anos.
Com o envio da proposta governamental de inovação legislativa, denominada Pacote Anticrime, Projeto de Lei do Senado 1864/2019[28], foi incluída a proposição de alteração do Código de Processo Penal para admitir o negócio penal nos termos regrados pela resolução do CNMP. Vejamos os argumentos constantes da justificativa do projeto:
O art. 28-A. estende a possibilidade de acordo quando o acusado confessa o crime de pena máxima inferior a quatro anos, praticado sem violência ou grave ameaça. A tendência ao acordo, seja lá qual nome receba, é inevitável. O antigo sistema da obrigatoriedade da ação penal não corresponde aos anseios de um país com mais de 200 milhões de habitantes e complexos casos criminais. Desde 1995, a Lei nº 9.099 permite transação nos crimes de menor potencial ofensivo e suspensão do processo nos apenados com o mínimo de 1 ano de prisão. Na esfera ambiental, o Termo de Ajustamento de Conduta vige desde a Lei nº 7.347, de 1995. Os acordos entraram na pauta, inclusive, do poder público, que hoje pode submeter-se à mediação (Lei nº 13,140, de 2015). O acordo descongestiona os serviços judiciários, deixando ao Juízo tempo para os crimes mais graves.
Assim, resultou na edição da Lei 13.964/2019, que imprimiu a inclusão do artigo 28-A[29] no Código de Processo Penal, fazendo-o de forma a registrar definitivamente e de forma irrefutável, uma ferramenta de negócio penal a ser utilizada, pelas partes, prévio à ação penal, o Acordo de Não-Persecução Penal – ANPP.
É fato que, na mesma proposição de lei, fez-se constar proposta[30] para um espaço de consenso, no bojo da própria ação penal, nos moldes do instituto italiano da applicazione dela pena a richiesta de parte, contudo, fora decotado durante a tramitação legislativa. Nesse tipo de acordo, ocorre condenação criminal, ou seja, formação da culpa sem que ocorra instrução criminal em juízo.
O Acordo de Não-Persecução Penal – ANPP, é um negócio penal que, a saber se se aproxima mais do modelo americano da plea bargaining ou dos modelos que já se instalaram nos ordenamentos do tipo europeu continental, deve-se analisar em relação à amplitude do espaço para a negociação entre partes, bem como da possibilidade de interferência do julgador na negociação propriamente dita, sem olvidar que o processo penal brasileiro se estabelece no modelo inquisitorial system[31].
A regulação mais estreita das hipóteses de cabimento torna o instituto mais próximo dos similares que foram admitidos pela legislação do modelo europeu continental, entretanto, a sanção sem que tenha havido o julgamento da culpa, o faz próximo do nolo contendere americano.
Com implementação ainda muito recente, é natural que algumas questões surjam, acerca da aplicação do Acordo de Não-Persecução Penal, notadamente em relação a tópicos não tratados expressamente no texto legal.
8. QUESTÕES DE APLICABILIDADE – RETROATIVIDADE
Questionamentos de primeira mão, diz respeito à retroatividade da norma procedimental, que impõe reflexos diretos na esfera de liberdade dos indivíduos. Sim, porque tanto a lei material, quanto a lei procedimental que possua efeitos diretos na sanção penal, quando benéficas ao indivíduo, há a expectativa de retroação para benefício do indivíduo em persecução. Mas a questão, precisamente é: a lei que possibilita o acordo penal (lei processual benéfica), retroage para reger todos os delitos praticados antes de sua vigência, mas até que momento processual?
Os ordenamentos jurídicos preveem, em geral, como marco temporal, à aplicação do princípio da retroatividade da lei penal benéfica (lex mellior), à formação da coisa julgada.
JAKOBS (1997) estratifica a modificação da lei penal material em dois níveis: se se o motivo da modificação estiver relacionado à inadequação do regramento antigo para todas as hipóteses(a), assim, em caso de a nova lei contemplar atenuação, então, por ocasião do julgamento de casos ocorridos na vigência da lei antiga, se evidenciará inadequação entre a lei e o fato, portanto, a lei retroagirá para evitar penas desnecessárias(1); já em caso de a lei nova impuser agravamento, então, por ocasião do julgamento de casos ocorridos na vigência da lei antiga, se evidenciará a ausência de identidade de lei, relativamente ao tempo do fato e ao tempo do julgamento, portanto, aqui se dá aplicação direta do princípio da não-retroatividade da lei penal(2), pois decorre do princípio da legalidade, o qual determina que há de existir uma lei, ao tempo do fato, e esta lei se refere não só à determinação de comportamento, mas também à determinação do quantum de sanção. Agora, se o motivo da modificação legislativa estiver relacionado à inadequação do regramento antigo, em referência à novas hipóteses(b), assim, o regramento novo que agrava a situação do indivíduo, não terá validade, no momento do julgamento de casos antigos, claramente por aplicação direta do princípio de não-retroatividade da lei penal(1)[32], porém, já o regramento novo que atenua a situação do indivíduo, se revela inadequado(2), no momento do julgamento de casos antigos, por essa razão, a lei que determina a retroatividade da lei benéfica para hipóteses antigas, excetuando que a retroação possa valer em relação a lei temporária.
Segundo JAKOBS (1997, p.113) todos os casos de atenuação, na inovação da lei penal, advém do fato de que as hipóteses antigas estariam inadequadamente reguladas, daí a explicação lógica de que a lei ordinária termina por ordenar a sua retroatividade.
Como o motivo da existência do princípio da irretroatividade da lei penal, é o benefício ao autor do fato, assim, se no momento do julgamento, estiver em vigência lei penal mais favorável, esta retroagirá para beneficiar o acusado (JESCHECK/WEIGEND, p.149), conforme registrado na CFRB, Art.5º, inciso XL[33]. Entretanto, o princípio da irretroatividade, em regra, não se aplica ao processo penal[34], que pode entrar em vigência de imediato, assim, de certo afetará uma parte dos fatos ocorridos antes de sua vigência e que, ainda, não estejam naquele ponto de tramitação processual em que houve a inovação. Isto porque o momento processual é, necessariamente, posterior ao momento do fato criminoso.
FIGUEIREDO DIAS (2007, p.199) ao se referir à positivação do princípio retroatividade da lex mellior na Constituição Portuguesa que, ao contrário da Constituição Brasileira, foi expressa (não implícita) no sentido da obrigatoriedade de se aplicar, retroativamente, o regime mais favorável ao réu, afirma que este fato o tornou um princípio autônomo, decorrente do princípio da necessidade, não uma mera exceção ao princípio da irretroatividade da lei penal.
Assim, se a lei penal agravante é, por princípio, irretroativa, a lei penal atenuante é retroativa por reconhecimento normativo de que há uma inadequação de regulação. Já a lei procedimental é, a princípio, retroativa, já que, embora não se admitindo a aplicação do princípio da irretroatividade, possua aplicação imediata após sua vigência, todavia, por ter aplicação posterior a ocorrência do fato, termina por tratar, necessariamente, daqueles delitos ocorridos anterior a sua vigência.
Então, do que se trata a retroatividade de lei processual, já que as questões seriam resolvidas pelo princípio processual de que a lei vigente é apta a reger os atos processuais (lex tempus regit actum)?[35] Trata-se, exatamente, de permitir que a lei processual se aplique a todos os delitos ocorridos antes de sua vigência, inclusive naqueles que estejam sendo tratados em momento processual posterior, na sequência da marcha processual, ao ponto em que se inovou. Se a lei processual inova a fase de judicialização, a sua aplicação imediata diz respeito a delitos ainda não judicializados, mas que podem ter ocorridos em data anterior à sua vigência (até exaurir), enquanto a sua retroatividade diz respeito à aplicação da mesma, obrigatoriamente, a todos os delitos ocorridos antes de sua vigência, mesmo que os estes já estejam em fase de julgamento.
Com efeito. Existem leis procedimentais que repercutem na cominação de penas, por ocasião da aplicação da sanção penal. E o questionamento da retroatividade, diz respeitos a estas.
ROXIN (1997) se refere a institutos processuais que se encontram na fronteira com o direito material, havendo quem, ora os classifique como de direito material, ora como de direito procedimental e, outros, classificam como instituições mistas (hibridas), a exemplo da prescrição, pelo que o mesmo indica a averiguação, in concreto, do cumprimento da regra constitucional da não-retroatividade da lei penal. Proibição de retroatividade maléfica.
Ou seja, sempre que a análise da lei procedimental, indicar que sua aplicabilidade imediata resulta em afronta ao princípio da irretroatividade da lei penal, restringir-se-á a aplicação desta norma processual, somente aos fatos ocorridos posterior à sua vigência.
Pois, bem! Mas se essa nova lei procedimental, mista, favorecer (lex mellior) o autor do fato? Que é a situação do Acordo de Não-Persecução Penal.
FIGUEIREDO DIAS (2007, p.201) relata solução, ainda para aplicação da lei penal material (e não a processual), constante da lei portuguesa que transformou as “contravenções” penais em “infrações de mera ordenação social”, assim, a lei intertemporal assegurou que o procedimento antigo fosse aplicado às demandas já ajuizadas, as quais seguiam a tramitação normal, desde que a sanção aplicada fosse a do novo regime (a coifa). Nisso resultou que os institutos procedimentais da lei nova, por força do dispositivo de regulação intertemporal, foram aplicados aos fatos ocorridos antes de sua vigência, somente relativamente àqueles que ainda estavam na seara administrativa, e não aplicados aos fatos já judicializados.
Ou seja, o dispositivo de lei intertemporal, fixou o marco da retroação da lei processual mais benéfica, como sendo a fase do ajuizamento da demanda. Mitigou o princípio de que a lei processual rege todos os atos processuais a serem praticados depois da sua vigência, porém, assegurou que a sanção penal a ser aplicada já fosse a sanção prevista na nova legislação.
Em relação a lei ordinária e a alegação de sua inconstitucionalidade, na parte que determinou que as atenuações das consequências do crime retroagissem, somente, até a coisa julgada, pondera FIGUEIREDO DIAS (2007, p.202):
Não só ou não tanto porque também a lei fundamental tem, na sua interpretação, de ser submetida a uma cláusula de razoabilidade – e, no entendimento do legislador ordinário, não seria razoável, por muito dificilmente exequível, que a totalidade das condenações penais cuja execução ou cujos efeitos se mantêm tivesse de ser reformada todas as vezes que uma lei nova viesse atenuar uma qualquer consequência jurídico-penal ligada ao fato.[...] Não se pode dizer-se que a restrição da retroatividade in bonam partem às sentenças ainda não transitadas diminua o ‘conteúdo essencial’ do preceito constitucional constante na última parte do art. 29º-4 da CRP.
Parece que estaria a cargo do legislador indicar, se a regra do Acordo de Não-Persecução Penal incidiria sobre todos os fatos ocorridos antes da vigência da lei que o instituiu (Pacote Anticrime), ou somente sobre aqueles fatos ainda não judicializados.
A indicar que a decisão estaria mais afeta a uma opção do legislador, do que a interpretação da lei ordinária frente a princípios constitucionais, está a dificuldade consistente em que o dispositivo constitucional (XL, Art.5º, CRFB), não seja expresso no sentido da imperatividade de retroação da lei penal benéfica, além da dificuldade de se determinar que uma lei processual possua caráter híbrido. Assim, fonte de intermináveis polêmicas.
O legislador, na Lei 9099/95 (Art.90)[36], limitou, no tempo, o marco para aplicação dos institutos que regem os crimes de menor potencial ofensivo, limitando a sua aplicação, imediata, à fase da instrução. Entretanto, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin 1719-9), fora determinada interpretação do dispositivo (Art.90) ordinário, conforme (e sem redução de texto) aos preceitos constitucionais, no sentido de excluir a incidência do dispositivo, acerca das normas de direito material, contida na Lei 9099/95, sempre que aquelas fossem favoráveis aos imputados, portanto, acatando como imperativo e de incidência imediata, a retroatividade penal mais benéfica (pena) e a retroatividade da lei híbrida mais benéfica (rito com reflexos na pena).
Assim, a questão se remete a saber, até que ponto, o Acordo de Não-Persecução Penal é norma de caráter híbrido(1), e benéfica ao autor do fato(2), por determinar a aplicação de uma pena negociada, sempre com exclusão da pena privativa de liberdade.
A responder a questão, segue anotação de FIGUEIREDO DIAS (2007, p.201):
O mesmo que de expôs para as hipóteses de descriminalização deve defender-se para o caso em que a nova lei atenua as consequências jurídicas que ao facto se ligam, nomeadamente a pena, a medida de segurança ou aos efeitos penais do facto. Também neste caso a lex millior deve ser retroativamente aplicada, todavia, de acordo com o disposto no art. 2º-4, com ressalva dos casos julgados.
Ademais, e é o que é determinante, aceito o acordo, haverá aplicação de sanção penal (leve – prestação de serviço e pecuniária – e reduzida – 1 a 2/3), por mera homologação do acordo, sem julgamento para formação de culpa, portanto, sem induzir a reincidência.
Portanto, o Acordo de Não-Persecução Penal é um instituto processual que impõe atenuação da consequência jurídica do fato, podendo o aplicador fazer interpretação que o legislador não positivou, no sentido de imprimir retroatividade da lei para além do princípio lex tempus regit actum, de forma a atingir todos os fatos ocorridos antes da vigência da norma inovadora, desde que ainda não tenham sido julgados. Também razoável entendimento no sentido de limitar a retroatividade ao marco do final da instrução, haja vista que pós-instrução, há elementos para sentença com base em formação de culpa.
CONCLUSÃO
O Acordo de Não-Persecução Penal – ANPP, é um instituto próprio da justiça penal negocial, a exemplo de outros que, recentemente foram inseridos no ordenamento jurídico brasileiro, tais como a composição civil dos danos, a transação penal, a suspenção condicional do processo e a colaboração premiada.
O mesmo, assim como outros institutos similares e presentes em diversos ordenamentos jurídicos, tais como Itália, Espanha, Alemanha e Portugal – que possuem como modelo de processo penal o do tipo europeu continental –, tem inspiração em institutos do modelo de processo penal adotado no direito anglo-saxão, tal como o plea bargaining do direito norte-americano, entretanto, se difere deste, principalmente por não interferir no juízo de culpabilidade do indivíduo, em relação a fato objeto de acordo.
Ocorre uma mitigação do princípio da obrigatoriedade, através do princípio da oportunidade regrada, em que o indivíduo, em sua autonomia de vontade e face a justa causa para a ação penal, aceita cumprir uma sanção negociada, a ser judicialmente homologada, sem produção de prova em juízo, porém, sem formação de culpa.
Em termos práticos, um fato criminoso provado, e aceito – de forma circunstanciada – por um indivíduo suspeito, acarretará a exclusão da ação penal que, de corrente, resultaria em produção de prova em juízo, julgamento com formação de culpa e aplicação de sanção penal, assim, exclusão da ação, com homologação judicial de acordo para cumprimento de medida alternativa e minorada que, se cumprida impõe a extinção da punibilidade.
Nestes parâmetros, há de classificar o instituto como sendo de direito procedimental, todavia, por impor consequências penais diretas, do tipo atenuante (exclusão de formação de culpa, exclusão de pena privativa de liberdade e redução de pena), então, reclassificar como de direito híbrido, assim, admitir-se-á a sua aplicação retroativamente a todos os fatos ocorridos antes da vigência da lei que o instituiu, independentemente da fase processual em que esteja a apreciação do fato, até o limite da fase do julgamento.
Os motivos e fins declarados para a adoção deste tipo de mecanismo, seria a retirada de apreciação no âmbito do procedimento comum (ordinário ou sumário), da maioria dos fatos relativos a crimes de baixo e médio potencial ofensivo, acelerando a resolução de tais fatos, pela forma negociada, de forma tal, a reservar maior tempo e melhor estrutura judicial para a apreciação dos mesmos tipos de delitos, agora praticados pela média e alta criminalidade, bem como aos fatos relativos aos crimes de alto potencial ofensivo.
A capacidade de render resultados em relação a aliviar a pressão do gargalo provocado pela expansão do direito penal moderno, em canalização com o aumento da criminalidade na interação social atual, própria de um mundo globalizado, está afeta a situações prática e operacionais em interação com a cultura jurídica que, premida pela necessidade de soluções, haverá de dar respostas.
Efeitos de esvaziamento do sistema carcerário e de minoração da capacidade de recrutamento das organizações criminosas próprias do mundo do encarceramento, provavelmente não se observarão de forma salutar, haja vista a ausência de política social tendente à modificação da sociedade e do indivíduo, que importe impacto na criminalidade, de forma que aparecerão mais efeitos de “reciclagem de indivíduos.”
Enfim, a análise de institutos similares, inclusive do histórico de como se estabeleceu na Alemanha e Itália, além da mesma análise a ser feita em relação ao instituto que lhe serviu de inspiração, e mais ainda, de observação como se comportou a aplicação do instituto da transação penal no âmbito dos Juizados Especiais, indicarão o caminho.
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