RESUMO: O presente artigo tem por finalidade analisar as principais questões atinentes às transações realizadas com as criptomoedas Bitcoin. Dentre os aspectos analisados, discute-se a necessidade ou não de que o Poder Público regulamente as criptomoedas em epígrafe, bem como se devem ou não ser objeto de fiscalização. Para isso, busca-se examinar a atenção dos operadores jurídicos, bem como se de fato os projetos de lei em trâmite atendem às eventuais necessidades surgidas com as transações realizadas com criptoativos. Enfim, acredita-se que, na esfera consumerista, o maior dos fatores de impulso às demandas acima referidas é o Princípio da Vulnerabilidade dos destinatários finais.
PALAVRAS-CHAVES: PROTEÇÃO DOS CONSUMIDORES; BITCOIN; REGULAMENTAÇÃO.
ABSTRACT: This article analyses the main concerns about the transactions made with crypto currencies like Bitcoins. Within the analyzed aspects, there is a dilemma based on if the government needs to approve and supervise the use of the mentioned crypto currencies, or if it is unnecessary. Therefore, it is necessary to inspect legal system, its laws and its viability, when referring to the transactions of crypto currencies, if necessary. For that reason, it is safe to say that in the consumer law field, the factor which highlights the issue previously reported is the consumer’s vulnerability principle.
KEY WORDS: CONSUMER PROTECTION; BITCOIN; E-COMMERCE.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 AS CRIPTOMOEDAS BITCOIN: ASPECTOS CONCEITUAIS; 2.1 BREVE HISTÓRICO ACERCA DOS BITCOINS; 2.2 CONCEITOS E CARACTERÍSTICAS DAS CRIPTOMOEDAS; 2.3 PROBLEMAS E CONFLITOS GERADOS PELAS TRANSAÇÕES COM BITCOINS; 3 CONTRATOS POR ADESÃO ATINENTES AO USO DAS CRIPTOMOEDAS; 3.1 DISPOSIÇÕES ARBITRÁRIAS QUE VIOLAM O ART. 39, INCISO V, DO CDC; 3.2 CLÁUSULAS TRANSGRESSORAS DA BOA-FÉ OBJETIVA; 3.3 PREVISÕES CONTRATUAIS QUE CONFLITAM COM O EQUILÍBRIO CONTRATUAL; 4 ANÁLISE DO PL QUE VISA REGULAMENTAR AS CRIPTOMOEDAS; 4.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS; 4.2 PRINCÍPIOS E DIREITOS ASSEGURADOS; 4.3 A REGULAMENTAÇÃO E A FISCALIZAÇÃO DAS ATIVIDADES ENVOLVENDO BITCOINS; 5 A IMPORTÂNCIA DA ATUAÇÃO DO PODER PÚBLICO NA FISCALIZAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO DAS CRIPTOMOEDAS EM PROL DOS CONSUMIDORES; 5.1 A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR FRENTE AO BITCOIN: PRINCÍPIOS DO MICROSSISTEMA CONSUMERISTA; 5.1.1 Princípio da Vulnerabilidade; 5.1.2 Vetor do Equilíbrio Contratual; 5.1.3 A informação dos Consumidores; 5.2 A ATIVIDADE REGULATÓRIA COMO NECESSÁRIA À PROTEÇÃO DA PARTE MAIS FRÁGIL: O CONSUMIDOR; 6 CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
Diante do atual quadro – não só brasileiro, mas global – demarcado pelo fenômeno da globalização, permeado por inesgotáveis inovações tecnológicas, o presente trabalho busca direcionar e sensibilizar o olhar dos leitores para uma questão ainda pouco explorada pela doutrina jurídica. Inobstante não faltarem informações nos noticiários e em tantos outros meios de veiculação de conteúdo, seria leviano negar a premente necessidade de que se aborde a questão que será epigrafada nas linhas seguintes, e que se o faça sob o viés jurídico – linha sob a qual seguirão as ideias aqui expostas.
Para a realização desta discussão, o estudo em desenvolvimento põe em análise o comércio e as transações de criptomoedas. Perceba-se, de início, a decisão de se fazer um recorte temático no gigantesco universo das criptomoedas, analisando-se, especificamente, o Bitcoin, devido à sua notável popularidade dentre as moedas digitais. Destarte, a primeira indagação que se engendra a partir da própria natureza desse tipo de comercialização eletrônica é: como funcionarão as atividades regulamentar e fiscalizatória em relação às criptomoedas?
Questiona-se, ademais, qual o papel do Poder Público frente à erupção dessa vultosa mudança paradigmática no setor econômico. Assim, vislumbram-se sensíveis alterações no modo como a sociedade e o dinheiro irão interagir. Em verdade, tais mudanças já podem ser perceptíveis, ainda que estejam em sua fase inicial, eis que se depara, hodiernamente, com o nascedouro de uma possível revolução do status quo econômico-financeiro e uma de suas principais formas de representação: a moeda.
Nessa senda, aborda-se como objeto central desta pesquisa a regulamentação e a fiscalização pelo Poder Público em prol dos consumidores, à luz do inesquecível Princípio da Vulnerabilidade. Conforme será estudado nos tópicos seguintes – e certamente haverá exaustiva reiteração do conceito –, a precípua característica das criptomoedas é a sua capacidade de funcionamento descentralizado, favorecendo, portanto, maior autonomia entre os sujeitos, e muito menor dependência em relação ao Estado. Todavia, a natureza dessas transações pode desencobrir os consumidores da tutela estatal, deixando-os propícios a eventuais abusos e outras práticas ilícitas que venham a advir dessas relações marcadas pelo afastamento da regulação estatal.
Ademais, a escolha do tema em voga deu-se pela inequívoca aplicabilidade prática e ampla, já que está intrinsecamente relacionado a outras áreas de estudo e da vida cotidiana, como a economia, a política e o comércio. Portanto, a discussão em tela alcança um número inestimável de pessoas, como também propicia um fértil diálogo entre o Direito Consumerista vigente e novas perspectivas e propostas legislativas, conforme se discorrerá adiante.
No que tange à metodologia, escolheu-se a revisão bibliográfica, a consulta ao texto constitucional e infraconstitucional e pesquisa à plataforma atrelada ao Bitcoin, incluindo, com isso, a análise de eventuais contratos por adesão que sejam firmados entre consumidores o referido sistema. Por meio disso, objetiva-se analisar, dentre outros, se existem cláusulas abusivas em desfavor dos consumidores usuários da criptomoeda em epígrafe.
O engendramento do trabalho em causa fundamenta-se na metodologia de pesquisa exploratória, que, de acordo com as lições de Appolinário[1], “tem por objetivo aumentar a compreensão de um fenômeno ainda pouco conhecido, ou de um problema de pesquisa ainda não perfeitamente delineado”. Nesse trilhar, o procedimento técnico[2] empregado foi essencialmente a pesquisa bibliográfica, isto é, o estudo do tema a partir de materiais já publicados.
Além disso, ilustram Miracy Gustin e Maria Tereza Dias[3] que "a vertente jurídico-teórica [...] acentua os aspectos conceituais, ideológicos e doutrinários de determinado campo que se deseja investigar". Por isso mesmo, e em razão do caráter geral, teórico e propedêutico a que lança a proposta do trabalho em epígrafe, optou-se pela adoção metodológica da vertente jurídico-teórica, sem prejuízo do manejo concomitante das vertentes positiva e prospectiva, com vistas à apresentação de soluções realmente efetivas para a(s) problemática(s) que venham a ser expostas nas linhas abaixo.
Ainda com base nas autoras suprarreferidas, é de notar que o raciocínio indutivo sobressalta-se justamente por se tratar de "um processo mental que parte de dados particularizados e localizados e se dirige a constatações gerais"[4]. Em decorrência disto, a tendência é que se parta do problema para as considerações gerais (método em comunhão com o pensamento tópico e problemático já citado) – levando-se, portanto, à adoção do raciocínio de natureza hipotético-dedutiva.
Conforme exposto nas linhas iniciais, a tese afirmada no presente escrito versa sobre a necessidade de regulamentação e a fiscalização, ainda que mínimas, pelo Poder Público. Isto porque, como é cediço, a vulnerabilidade do grupo consumerista reclama uma tutela efetiva dos direitos e interesses, principalmente em face de recursos ainda tão pouco conhecidos pela coletividade como os Bitcoins.
Enfim, tenciona-se, prioritariamente, observar a presença ou não de irregularidades nos contratos firmados entre a plataforma Bitcoin e os consumidores/usuários da moeda, além de analisar as novidades legislativas em andamento e/ou arquivadas, e sua relevância para o microssistema consumerista. Afinal, espera-se concluir pela necessidade de que haja o concreto emprego de esforços do Poder Público, respeitando os Princípios atinentes ao microssistema consumerista, sem, contudo, descaracterizar a natureza descentralizada das transações utilizando-se os bitcoins.
2 AS CRIPTOMOEDAS BITCOIN: ASPECTOS CONCEITUAIS
É impossível iniciar-se uma discussão acerca dos bitcoins sem, antes de tudo, tecer algumas breves considerações sobre a moeda digital e seu enquadramento. Além disso – e como os conceitos específicos serão trazidos a partir dos subtópicos abaixo, cumpre esclarecer que não há unanimidade quanto à aceitação das criptomoedas no cenário econômico mundial. Assim, e em que pese haver benefícios e vantagens no uso do Bitcoin, há quem apresente veemente resistência à inserção definitiva das criptomoedas no Mercado. Inclusive, é valiosa a menção de que o processo de globalização, tendo, obviamente, chegado à esfera dos mercados financeiros, acostou-se fundamentalmente no avanço tecnológico, com especial relevância à tecnologias de conexão e nos sistemas de liquidação e compensação de operações financeiras[5].
Em síntese, trata-se de “um sistema de pagamentos online alternativo, baseado em código criptográfico e informático, mediante o qual seria possível substituir os intermediários de confiança por uma confiança no código matemático”[6]. Sob outra ótica, há que se considerar que o sistema assume o que Guilherme Canedo Correia denomina “uma natureza dual: é simultaneamente um sistema de pagamentos, de troca, e uma moeda digital”[7].
A saber, o escritor britânico Charlie Stross[8] protesta que, não diferente de todos os outros sistemas de moeda, o Bitcoin pretende, de forma implícita, a implantação de sua própria agenda política. [9]Finaliza, ainda, explicando que o custo de geração de novos Bitcoins, com o passar do tempo, sofre aumentos – mormente em relação aos serviços e bens postos à disposição no mercado. Ocorre que, havendo menos “dinheiro perseguindo coisas”, por consequência, haverá menos dinheiro em fluxo, diminuindo-se os gastos e desaquecendo a economia[10].
Uma vez expostos, ainda que em apertada síntese, noções e também argumentos genéricos contrários às criptomoedas Bitcoin, é razoável adentrar-se nesta temática com maior profundidade, com o escopo de compreender suas origens, bases e razões históricas, como também suas definições e características essenciais.
2.1 BREVE HISTÓRICO ACERCA DOS BITCOINS
Segundo as lições de Hindenburgo Pires[11], há respaldo para sustentar que “a crise financeira internacional de 2007 e 2008, impulsionada pela globalização neoliberal e a desregulamentação financeira, conduziu à instabilidade do valor das moedas”. Não bastando, provocaram uma indeterminação econômica poucas vezes vista antes de tal fenômeno. Há que se admitir que todo o processo de endividamento desenfreado pelos Estados Unidos, como também de outras relevantíssimas economias centrais influíram diretamente no panorama de um capitalismo instável e sem segurança[12].
Em face disto, é certo que o advento de tecnologias cuja base é os algorítmicos criptografados foi muito oportuno para as transações financeiras. Nessa linha, é imprescindível revelar que a chamada tecnologia Blockchain representa verdadeira revolução frente “à falta de limites e regras, impostas pelo cassino financeiro do capitalismo global, e também à busca de estabilidade no valor das moedas”[13]. Isto porque, até o advento das criptomoedas – e com inescusável enfoque nos bitcoins –, em 2008, conforme revela o programador autodenominado Satoshi Nakamoto, não era possível realizar-se transações online sem que houvesse o chamado “terceiro intermediário de confiança”[14], a saber, instituições bancárias e, mais recentemente, plataformas de pagamentos como Paypal e similares.
Peculiar curiosidade acerca do tema repousa no fato de que o trabalho publicado pelo heterônomo que recebeu a denominação acima descrita não indica a autoria[15], isto é, Nakamoto seria, portanto, um nome criado pelo desenvolvedor das ideias expostas na sintética e relevante obra “Bitcoin: a peer-to-peer eletronic cash system”. De toda sorte, a exposição dos aspectos inerentes a esta criptomoedas foi feita com rigorosidade acadêmica, trazendo verdadeira declaração de intenções, ao envolver, acima de tudo, a ruptura com o sistema anterior, calcando-se, para tanto, no tripé: descentralização, segurança e privacidade[16].
Conforme explica o já referido Satoshi Nakamoto[17], o custo de se ter um ente mediador aumenta as despesas que abrangem a atividade das transações. Argumenta, ainda, que tanto os gastos como as inseguranças que permeiam as transações podem ser dirimidas, ao menos em parte, usando-se moedas físicas, mas, note-se que não há um mecanismo para que se pague através de uma plataforma de transações sem que haja uma parte, terceira, confiável[18]. Por outro lado, em havendo um sistema de pagamentos eletrônicos cuja premissa seja os recursos criptográficos – em oposição à mera confiança –, é possível que duas ou mais partes possam negociar entre si diretamente, sem, contudo, a necessidade de uma terceira pessoa[19].
Destarte, as inovações trazidas pelas criptomoedas em epígrafe retiraram a necessidade de que houvesse uma autoridade central, sendo esta responsável pela criação de unidades monetárias, ou mesmo pela fiscalização da legitimidade transacional[20]. Em arremate, denota-se que Satoshi “tomou a iniciativa incrível de reinventar a moeda na forma de código de computador. O resultado foi o Bitcoin [...] Nakamoto lançou-o com um white paper em um fórum aberto: aqui está uma nova moeda e um sistema de pagamento”[21].
Segundo as lições de Fernando Ulrich[22], “dois anos após ter sido lançado ao mundo, o bitcoin atingiu a paridade com o dólar americano – algo imaginado como possível por muito poucos”. Nessa senda, a criptomoeda em comento surgiu trazendo as características mais desejadas pelo ideal de dinheiro nos estudos da ciência econômica, sendo escasso, divisível, portável, e, ao mesmo tempo, incorpóreo. Assim, pode-se afirmar de modo contundente que o Bitcoin contornou todo um status quo construído e solidificado pelo sistema bancário vigente, diferenciando-se deste ao não se subverter à intervenção governamental (ao menos em sua proposta inicial)[23].
2.2 CONCEITOS E CARACTERÍSTICAS DAS CRIPTOMOEDAS
Trata-se o Bitcoin de uma moeda digital, de código aberto, de natureza “peer-to-peer”, isto é, o que em português se conhece como par a par, ou, em tradução mais específica, “de ponto a ponto” (remetendo-se à ideia da ausência de um terceiro entre transações realizadas por duas partes interessadas). Liste-se, talvez até como principal característica, o fato de que Bitcoin é o primeiro sistema de pagamentos em ordem global cem por cento descentralizado[24]. Mas a definição em tela não é unívoca. O Banco Central Europeu definiu-a, em 2015, como uma forma de representação digital de valores, não emitidos por uma autoridade (banco) central, tampouco por instituições de crédito ou análogas. A isto, acrescente-se o aspecto de que estes criptoativos poderiam ser utilizados, em algumas circunstâncias, como alternativas ao dinheiro[25].
Sob outro panorama, a intitulada criptocomunidade, isto é, aquela camada de pessoas mais dedicada a se debruçar sobre o tema, formada pelos entusiastas, estudiosos e utilizadores, chega a definir as criptomoedas – com natural abrangência aos bitcoins – como moedas baseadas exclusivamente na tecnologia criptográfica, cujo valor se resguarda exatamente no fato de que possuem utilidade como moeda, com as vantagens de serem baseadas em propriedades matemáticas em vez de se confiarem a propriedades de cariz físico, como por exemplo os metais mais valiosos – ouro, prata etc.[26]
Fernando Ulrich ilustra a relevância das novidades trazidas pelo Bitcoin. Veja-se: se Antônio desejasse transacionar dez unidades monetárias com Flávia por meio da Internet, certamente teria de lançar mão de serviços como Paypal, Mastercard, entre outros possíveis intermediários.Ao serem enviadas as referidas unidades monetárias, o terceiro intermediário debita o valor da conta originária (de Antônio) e, em sequência, credita na conta receptora (de Flávia). Importante observar que sem esse intermédio, nada impediria que o dinheiro digital fosse gasto duas vezes: e surge assim o conhecido – e superado – problema dos gastos duplos[27].
À primeira vista, pode se aparentar intangível a possibilidade de um valor existir duplamente. Teça-se, assim, uma analogia a uma simples mensagem de e-mail: quando se remete um arquivo anexado ao corpo da mensagem eletrônica, este não desaparece do computador original, ou mesmo da caixa de mensagens do remetente. Na mesma linha de raciocínio, Antônio poderia enviar as 10 unidades monetárias a Flávia e permanecer com a quantia. Observe-se que a ciência da computação se deparava com o chamado “problema do gasto duplo” até o surgimento do Bitcoin[28].
Em sequência, cumpre analisar o que já se mencionou consideráveis vezes no presente escrito: como a rede de transações de bitcoins desempenha a verificação das referidas operações, registrando-as e impedindo, assim, os gastos duplicados? Explica-se: a rede “depende dos usuários que proveem a força computacional para realizar os registros e as reconciliações das transações. Esses usuários são denominados ‘mineradores’, porque são recompensados pelo seu trabalho com bitcoins recém-criados”[30]. E como os bitcoins são criados? Basicamente, criam-se à proporção que milhares de computadores, dispersos (não há uma figura central, uma instituição, uma sede etc.) pelo planeta, resolvem equações matemáticas de complexidade muito elevada e que aumentam conforme a atividade de mineração avança[31].
Satoshi Nakamoto[32] leciona que para haver uma compensação do aumento da velocidade dos processos de mineração executados ao longo do tempo, a dificuldade dos problemas matemáticos é balizada pelo valor médio dos blocos gerados a cada hora. Assim, se são gerados de forma mais veloz, a dificuldade, consequentemente, é ampliada. Nesse diapasão, pode-se concluir que “o minerador que registrar as transações no blockchain recebe os Bitcoins recém criados”[33], e é desta forma que o sistema alimenta a si próprio.
Sob esse espectro, avalie-se que, como passar dos anos, a quantidade de bitcoins produzidos será menor, em constante diminuição. Cumpre mencionar também que, como já se pôde perceber, a quantidade de bitcoins disponíveis tende a ser finita, e se chegará a um momento em que não serão mais produzidas as criptomoedas, e a atividade de mineração terá como único escopo os lucros com taxas de serviços atinentes à verificação das transações[34].
Nesse trilhar, e adentrando em outra relevante seara das criptomoedas, tem-se como fundamental a análise, mesmo que sucinta, a respeito do chamado blockchain (em tradução para a língua portuguesa, a corrente de blocos – aue se pode visualizar como o registro público das transações realizadas). Desta maneira, toda e qualquer operação que esteja circunscrita à plataforma dos bitcoins passa por um registro nos blockchains, cujo funcionamento é análogo ao de um livro-razão, a saber, um gigantesco banco de dados, público, que possui armazenado todo o histórico das transações utilizando bitcoins já realizadas[35].
Dessarte, é nítida a facilidade para se consultar qualquer explorador desses registros públicos à procura de transações envolvendo uma conta Bitcoin específica[36]. Além disso, lecionam Marco Iansiti e Karim Lakhani que blockchains trazem consigo a possibilidade de um mundo em que os contratos se incorporam a um código digital, e se armazenam em bancos de dados transparentes, de memória praticamente interminável[37]. Com este modo de armazenamento, as informações tendem a estar bastante protegidas contra eventuais tentativas de exclusão, adulteração ou mesmo revisão de operações já realizadas[38].
Nessa ótica, João Guilherme Lyra[39] pondera que a tecnologia por trás dos blockchains possibilita um surgimento de sistemas descentralizados, isto é, moedas, contratos digitais autoexecutáveis e ativos que podem ser todos controlados pela internet. Ademais, estes protocolos de confiança permitem a operação através de uma rede de computadores sem qualquer intervenção humana, fator este que levou muitos a cotejar esses protocolos com uma evolução da internet, nomeadamente por possibilitar o surgimento de novas formas de diálogo entre as redes.
Frise-se, no entanto, que nem tudo são vantagens no universo Bitcoin e seu principal aliado, o Blockchain. Isto porque, como se sabe, os problemas relacionados à segurança neste ambiente virtual ocorreram e ocorrem, tal como o colapso – em 2014 – envolvendo uma Exchange e invasores virtuais, e como outros ataques por hackers que se deram posteriormente[40]. Não se olvide também as complicações de segurança sofridas pela plataforma, no ano de 2012, quando “hackers furtaram 24 mil BTC (então valorados em 250 mil dólares) de uma casa de câmbio chamada Bitfloor em 2012) [...]”[41].
É sob esse panorama que surge o ímpeto deste trabalho, calcando-se, portanto, na ideia de que os usuários-consumidores de criptomoedas, e principalmente dos bitcoins, precisam ter a devida instrumentalização a respeito da plataforma, do sistema, do funcionamento das criptomoedas, entre outros. Assim, cumpre à seara do Direito do Consumidor pugnar pela proteção desses consumidores, isto é, promovendo, ensejando e sugerindo, junto ao Estado, políticas que favoreçam o aprendizado desses referidos usuários, até para que estes se previnam contra os temerosos riscos de segurança existentes nas operações com Bitcoin.
Cabe ainda a menção de que não se defende uma ação estatal tão intensa a ponto de descaracterizar o novo sistema e retirar, por isso, os benefícios por ele trazidos. Trata-se, de outro modo, de uma ingerência por parte do Estado no sentido de regulamentar e trazer à tona princípios consumeristas com vistas a, não controlar, mas regular este “recém surgido” modus operandi no âmbito das moedas virtuais. Assim, defende-se a atuação estatal como forma de tutelar os consumidores frente à criptomoedas Bitcoin, afinal a peculiar descentralização da rede em causa não pode criar freios à atuação do Direito, principalmente quando este precisa tutelar a parte vulnerável da relação de consumo.
2.3 PROBLEMAS E CONFLITOS GERADOS PELAS TRANSAÇÕES COM BITCOINS
Em primeiro lugar, importa a menção a um dos mais polêmicos atributos inerentes ao Bitcoin: o relativo anonimato. Em verdade, não chega a ser anônimo em si, mas permite o uso de pseudônimos, em que nas transações, embora sejam visíveis por todos em um regime de transparência integral, e fiquem registradas no Blockhain, não se divulgam as identidades das partes transacionadoras. Deste modo, inobstante a verificação transparente de toda e qualquer operação realizada, não é possível saber quem foi o autor e o beneficiário de cada uma delas[42].
Nessa linha, é perceptível o surgimento de vantagens e desvantagens a partir desse mesmo aspecto: o anonimato relativo às transações. Por isso, é de se concordar que o sistema traz maior privacidade às partes envolvidas nas transações, entretanto, de outro ponto de vista – principalmente sob a ótica de entidades reguladoras – torna-se demasiado árdua a tarefa de investigação das atuações criminosas, isto é, lavagens de dinheiro, fugas do Fisco remetendo enormes montantes não tributados a paraísos fiscais, entre outros[43].
Sob esse espectro, existe larga margem de temor quanto às transferências monetárias feitas, praticamente de forma anônima, utilizando-se essas criptomoedas. Além das atividades acima citadas, convém debruçar-se sumariamente à situação do mercado virtual Silk Road, mediante o qual produtos ilícitos eram transacionados através de uma rede chamada TOR. Esta forma de operação permitia uma fuga dos olhares das autoridades de fiscalização e mesmo investigação, tornando-as praticamente incapazes de atuar contra as referidas transações[44].
Basicamente, designa-se Silk Road um mercado de criptografia, o qual emprega uma série de estratégias para ocultar a identidade e a localização física dos seus participantes, bem como das transações realizadas pelos servidores. Nesse sentido, a Silk Road lança mão de serviços de anonimização – como o supra referido TOR – que são capazes de ocultar o endereço de um determinado computador, permitindo que este fique “invisível” na rede. Ademais, cita-se justamente o uso de criptomoedas descentralizadas e relativamente não rastreáveis como bitcoin e litecoin para efetuar pagamentos[45].
Outro aspecto que merece comentários é as questões atinentes à segurança nas transações operadas com bitcoins. Com efeito, elucida Guilherme Canedo Correia[46] que “apesar de o sistema ainda não ter sido violado, já houve várias falhas no ecossistema Bitcoin. Na verdade, os pontos de informação centralizada, como por exemplo, os intermediários, representam o “calcanhar-de-Aquiles” do sistema”. Ocorre que, ao contrário do que o senso comum pode levar a crer, de fato, é uma plataforma operacional autenticamente segura. Isto porque os usuários têm suas moedas protegidas a partir de um complexo conjunto de técnicas que transmutam a informação diretamente inteligível em um agrupamento de códigos que um agente externo à operação não é capaz de decodificar[47].
Nesse sentido, a criptografia atua como um meio destinado a que se proteja a “privacidade de dados que está cada vez mais presente em nosso dia a dia. Ela é comumente utilizada para proteger e-mails durante o login, senhas de bancos convencionais principalmente em transações pela internet”[48]. Tamanha é a sua relevância que essa tecnologia passou a ser utilizada, inclusive, nos chats do aplicativo de mensagens Whatsapp. Assim, caso a conta esteja criptografada, ainda que eventualmente sofra algum ataque hacker ou similar, se este não tiver a chamada “chave criptográfica” correta, tudo o que o invasor conseguirá ver serão letras e números dispostos aleatoriamente, que não fazem sentido algum[49].
No âmbito prático, a criptografia utilizada nas tecnologias bitcoin atua da seguinte maneira: imagine-se, por exemplo, que um invasor virtual consiga interceptar uma transação realizada entre duas pessoas que utilizaram as criptomoedas bitcoin nessa empreitada negocial. O hacker não terá acesso aos dados verdadeiros dessas partes, mas verá tão somente letras e números desconexos, ou seja, a privacidade dos transacionadores tende a ser mantida – ponto positivo ao sistema, mesmo em meio à tamanha desconfiança com que, por óbvio, ainda se depara.
Vê-se, desta maneira, o advento de um avultado fenômeno de transformação do modo como transações entre privados são realizadas. O uso das novas tecnologias, por si, já se apresenta como um desafio a ser encarado pelo Direito e suas formas de proteção às partes mais frágeis das relações jurídicas. Nesse trilhar, conceitos como ‘criptografia’ e ‘blockchain’ apresentam-se como o futuro iminente – ou melhor, como aquele que já se apresenta disponível à sociedade, cabendo, portanto, sua regulamentação visando a adequada tutela em face aos negócios jurídicos firmados sob a égide desses novos recursos.
3 CONTRATOS POR ADESÃO ATINENTES AO USO DAS CRIPTOMOEDAS
Adentrando nos limites da seara consumerista, faz-se necessário um processo de intelecção, ainda que sucinto, acerca dos contratos por adesão inerentes ao uso das criptomoedas. Nessa linha, convém, antes de tudo, compreender a teoria por trás dos contratos por adesão, para, assim, fazer a devida abordagem desta figura no universo das criptomoedas. Deste modo, é preciso admitir que este contrato reflete, sobretudo, o modo de vida contemporâneo e suas implicações no âmbito econômico.
Isto posto, Humberto Teodoro Jr.[50] elucida que a tônica da atualidade é o consumo em massa, a partir do qual surgem volumosas demandas a todo tempo, de modo que os empresários passaram a lançar mão de padrões, literalmente uniformizados, na forma de negociar e de contratar. É por isso que se diz que a nova praxe negocial envolve os contratos de massa, sendo estes feitos essencialmente por estipulação unilateral dos fornecedores. Em suma, a própria natureza desta figura consensual, por mais paradoxal que se apresente, afasta a ideia de discussão pormenorizada de cláusulas e condições operacionais.
Não há, portanto, a individualização das opções contratuais, mas, por outro lado, estas são basicamente pensadas e oferecidas unicamente pelo fornecedor. Dito isto, acentua-se a razão pela qual os contratos de massa são bastante peculiares em sua própria natureza, eis que não proporcionam aos consumidores a faculdade de deliberar sobre as disposições contratuais, “como deveria ocorrer segundo os padrões clássicos do princípio da autonomia plena de vontades”[51].
Nessa linha, faz-se essencial à delimitação do presente trabalho a análise dos termos de uso e da política de privacidade de algumas plataformas de negociação de criptoativos, tencionando verificar as inconformidades das disposições ali contidas em face da necessária tutela aos direitos e interesses dos consumidores. Isso porque, de todo modo, esta modalidade de contratos massificados é marcada pelo simples clique do consumidor na opção “Aceito os Termos de Uso”, concordando ainda com a Política de Privacidade dessas empresas.
Ocorre, no entanto, que os mesmos contratos por adesão podem conter cláusulas abusivas, que contrariem de alguma maneira o Direito vigente. Destarte – e principalmente ante a falta de regulamentação dessas criptomoedas –, mister analisar situações de ocorrência de violações aos direitos consumeristas. Ademais, ilustra Bruno Miragem[52] que “esta proteção tanto se estabelece com relação ao direito à prestação principal do contrato – o produto ou serviço contratado – assim como pelo cumprimento de todos os demais deveres estabelecidos ao fornecedor por força de lei”. Não se olvide, ainda, nas relevantes balizas corolárias do axioma da boa-fé sob o plano das relações de consumo.
Finalmente, Miragem[53] alerta sobre a necessidade de se examinar a regra especial constante no Código de Proteção e Defesa do Consumidor que atine à interpretação dos contratos de consumo. Consagrada no artigo 47 deste Diploma Legal, dispõe que "as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”, buscando-se, assim, o alcance de uma tutela mais robusta e eficaz tendo em vista a fragilidade inerente à coletividade de consumidores.
Em arremate, cumpre asseverar que, em matéria contratual, foram analisados os termos de uso, bem como as políticas de privacidade de duas das maiores empresas intermediadoras da venda de criptomoedas bitcoin: a Mercado Bitcoin e a Foxbit. Com esta análise, tencionou-se verificar a existência – ou não – de disposições que pudessem contrariar normas de inescusável relevância para a tutela da parte mais vulnerável no microssistema consumerista. Isto, frise-se, não obsta a análise de fontes de suposta violação extracontratual dos deveres constantes no Código de Defesa do Consumidor (CDC), as quais também foram levadas em consideração para o desenvolvimento da presente pesquisa.
3.1 DISPOSIÇÕES ARBITRÁRIAS QUE VIOLAM O ART. 39, INCISO V, DO CDC
O art. 39 inaugura a seção do Código intitulada “Das Práticas Abusivas”, como também lista, exemplificativamente, um conjunto de práticas consideradas abusivas pelo ordenamento, devendo, portanto, serem repelidas pelo Direito. Nessa linha, Leonardo Medeiros Garcia[54] aponta que o ordenamento não admite o exercício de um direito em caráter absoluto, devendo, isso sim, ser exercido sem desvio de finalidade, bem como sem frustrar as legítimas expectativas criadas em outrem, sob pena de ser considerado ato ilícito, mesmo que o titular não fira a norma propriamente dita.
Dito isso, cumpre mencionar o necessário enfoque no inciso V do dispositivo em causa, que classifica como prática abusiva “exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva”. Desta maneira, é vedado ao fornecedor que cause prejuízos ao consumidor – lançando mão, para isso do recurso à superioridade econômica –, provocando um rompimento do equilíbrio contratual. Além disso, a intelecção do que significa “vantagem manifestamente excessiva” traz um exercício de remissão ao artigo 51 do mesmo Códex, já que este dispositivo, em seu parágrafo primeiro, define o que seria o “exagero da vantagem” auferida por um fornecedor[55].
Com esteio nas hipóteses previstas na norma mencionada acima, presume-se exagerada a vantagem em três situações: a primeira, se ofender os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence. A segunda hipótese é caso restrinja direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual. Finalmente, presume-se exagerada a vantagem que se mostre excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo contratuais, o interesse das partes e outras circunstâncias que sejam peculiares ao caso concreto[56].
De logo, verifica-se em ambos os termos[57] – Mercado Bitcoin e Foxbit – disposições determinando a cláusula de eleição de foro, designando, para tanto, o foro da Capital do Estado de São Paulo, para a litigância de quaisquer litígios ou controvérsias oriundas dos referidos Termos de Uso. Espantosa a leitura, aliás, do trecho redigido pela Mercado Bitcoin, em que tal eleição se opera
Nesse sentido, sabe-se que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) possui disposição própria – art. 101 – do qual se depreende que as ações envolvendo responsabilidade civil do fornecedor podem ser propostas no domicílio do consumidor. Por evidência, esta norma se encontra sistematicamente alicerçada pela tutela à vulnerabilidade dos consumidores. Rizzato Nunes[58] argumenta que da leitura do caput do art. 101 do Código Consumerista vê-se que o termo utilizado é responsabilidade civil, ou seja, abrange não apenas os danos oriundos de acidentes de consumo, mas a responsabilidade contratual em sua integralidade. Nessa órbita, a regra fixada no dispositivo se aplica para a totalidade das ações judiciais envolvendo relações jurídicas de consumo.
Por conseguinte, as fornecedoras se encontram em desvio às normas consumeristas, incorrendo em uso de uma cláusula contratual demasiado violada por empresas, dificultando o acesso à justiça dos consumidores que precisarem discutir judicialmente questões atinentes à respectiva relação de consumo. Diz-se isto até porque o Estado de São Paulo é apenas um dos 26 entes da Federação (sem contar com o Distrito Federal); assim, é lógico se inferir que muitos consumidores que não residem nesta unidade federativa seriam – se é que já não estão sendo – lesados por esta cláusula abusiva que afasta, indevidamente, o acesso ao Poder Judiciário pela parte vulnerável da relação. Destarte, é preciso considerar nula esta cláusula nos contratos de consumo – mormente nos contratos por adesão –, mesmo que os consumidores tenham anuído com os aludidos termos de uso.
3.2 CLÁUSULAS QUE TRANSGRIDEM A BOA-FÉ OBJETIVA
Humberto Teodoro Jr.[59] explica que na concepção hodierna da função social do contrato, ao abrigo do CDC, a boa-fé transmuta-se, em um processo de afastamento da sua feição tradicional. Nessa senda, não se limita mais ao plano subjetivo, mas passa a trazer um elemento objetivo envolvendo as prestações sinalagmáticas. Note-se, contudo, que a vertente subjetiva permanece em uso, inclusive esteando a teoria dos vícios de consentimento nos negócios jurídicos. Ocorre, em termos de boa-fé objetiva, o que o referido autor denomina “a abertura para o reexame objetivo da base econômico-jurídica [...], em nome da equidade [...]”.
Em vista disso, em sucinta distinção, a boa-fé subjetiva seria mais um estado anímico do que uma norma jurídica, pode-se aduzir[60]. Dessarte, enquadra-se como o desconhecimento sobre determinado fato ou mesmo a falta de intenção de prejudicar alguém – in casu, a contraparte da relação contratual. A feição objetiva da boa-fé, a seu turno, se desenvolve como uma “fonte de deveres jurídicos implícitos”, isto é, que apesar de não estarem prescritos na lei ou no contrato, decorrem da incidência deste próprio axioma em uma determinada relação jurídica[61]. Cláudia Lima Marques[62] leciona que, por sua vez, o princípio da transparência – art. 4º, caput – atua como uma espécie de reflexo da boa-fé que se exige das partes do contrato.
Por isso, o códex consumerista consagra a boa-fé objetiva como princípio básico das relações de consumo, de inexorável pertinência ante ao modus vivendi da sociedade contemporânea, fortemente marcada pelas infindas contratações de massa, quase tantas quantas são as relações consumeristas. Assim, não se admitem, à luz desse preceito axiológico, prejuízos desproporcionais suportados por uma das partes[63], em benefício de uma outra que, por quaisquer razões deixou de cumprir deveres de correção e fidelidade[64].
Dito isto, pode-se considerar que “a boa-fé objetiva não é outra coisa senão o velho princípio da lealdade contratual com nova roupagem”[65], em que as partes se obrigam a não atuar na relação contratual de forma contrária ao mandamento de agir com lealdade e correção – e destarte poderão alcançar a função social que é destinada aos contratos. Em suma, a boa-fé objetiva consiste na imposição de limites ao exercício de direitos de ordem subjetiva[66].
Em sequência, analisando os Termos de Uso[67] da intermediadora Foxbit, constata-se a seguinte disposição: “4.5.5. Em caso de qualquer evento [...] (observado que não cabe à Foxbit de forma alguma comunicar os Usuários da iminência de qualquer um de tais eventos) [...]. Ora, expôs-se cuidadosamente acerca dos deveres contratuais advindos da boa-fé objetiva nos contratos sob o resguardo da Lei Maior das Relações de Consumo: a fornecedora, ao contrário da linha que se vem sustentando, propõe cláusula em que não se obriga a informar o consumidor acerca de eventos que possam exigir deste medidas para salvaguardar seu patrimônio de criptomoedas constante na plataforma – parece absurdo que assim o seja, pois, ainda que seja mera intermediadora da compra e venda de bitcoins, uma vez figurada relação de consumo (e é inequívoco que o seja), surgem também os deveres de fidelidade[68] para com a outra parte, inclusive por esta ser, como sabido, a mais frágil da relação.
Por sua vez, cumpre apontar outra cláusula eivada de abusividade, desta vez constante nos Termos de Uso[69] da fornecedora Mercado Bitcoin, dentro das disposições sobre Compra e Venda de Criptomoedas Através da Plataforma, dispondo que: “o Usuário reconhece os riscos relacionados aos forks e aceita que a Mercado Bitcoin não possui responsabilidade e/ou dever de auxiliar o Usuário a mover e/ou vender a criptomoeda não suportada resultante do processo de fork.
Oriunda do inglês, a palavra “fork”, dentre as semânticas possíveis, traduz-se na linguagem da engenharia de software como “bifurcação”. No caso em estudo, as bifurcações operam divisões nas criptomoedas, que passam a ter rede, valores e níveis de aceitação no mercado próprios[70]. Então, a competição dos mineradores por quem será o primeiro a resolver o problema matemático e inserir o bloco validado na rede, tende a gerar inconsistências temporárias entre as versões do Blockchain[71]. Nesses limites, pergunta-se: e como se resolvem essas bifurcações?
Em geral, são resolvidas à proporção que se adicionam novos blocos a alguma dessas ramificações. Contudo, ocorre que, não obstante seja algo raro, é possível ocorrer de uma bifurcação se estender em dois blocos. E qual é a condição para que isso aconteça? Simples. Basta que uma bifurcação seja encontrada praticamente em simultâneo por mineradores que estejam um em cada um dos polos da bifurcação. Verificada essa simultaneidade, é bem possível que ocorra uma divisão da rede, formando, assim, duas versões concorrentes do bitcoin[72].
Desta maneira, torna-se nítido que apesar de ser um evento raro, e com ligeiras características de fortuito, trata-se de riscos de concreta possibilidade de ocorrência. Logo, não se pode admitir aos fornecedores responsáveis pelo intermédio da compra e venda de bitcoins que se neguem a “auxiliar o Usuário a mover e/ou vender a criptomoeda não suportada resultante do processo de fork”. É bem verdade que por serem eventos imprevisíveis não seria coerente exigir do fornecedor a responsabilização integral pela ocorrência deles. Contudo, remanesce o dever de auxiliar os consumidores que porventura necessitem de suporte técnico e informacional no que toca esse âmbito das relações com as criptomoedas.
Encerrando este tópico, mister a abordagem de uma última disposição constante no Termo de Uso[73] da Foxbit: “5- Tarifas Foxbit sobre os Serviços – A Foxbit se reserva no direito de alterar este Painel de Tarifas sem notificação prévia ao Usuário a respeito dessas alterações”. Mais uma vez, depara-se com um exemplo manifesto de violação ao princípio da boa-fé objetiva, já que, em que pese a possibilidade de recorrência de cláusulas desta ordem nas diversas contratações firmadas diuturnamente, não se tornam, por isso, mais admissíveis pelo ordenamento jurídico a violação ao inexorável dever de transparência, supramencionado.
Identifique-se, com efeito, que o tão referido axioma ligado à lealdade nas relações contratuais resulta como limite do exercício, indistintamente, de todo e qualquer direito subjetivo – não se podendo excluir, ainda mais em sede de contratações consumeristas, deveres inerentes à inexorável boa-fé. Nessa senda, esta passou, nas palavras de Cavalieri, “a ser um cinto-de-segurança” da ordem jurídica, além do qual não se pode ir sem incorrer em ilicitude”[74].
3.3 PREVISÕES CONTRATUAIS QUE CONFLITAM COM O EQUILÍRIO CONTRATUAL
Quanto à disciplina do equilíbrio contratual, leciona Bruno Miragem[75] que este “constitui efeito da principiologia do direito do consumidor, muito especialmente dos princípios da boa-fé, da vulnerabilidade e, especialmente, do próprio princípio do equilíbrio”. Nesse sentido, é adequado ponderar que – uma vez reconhecida e inquestionada a vulnerabilidade do consumidor como postulado do microssistema – apresenta-se inequívoca a ideia de que a tutela das relações consumeristas, com especial escopo de proteção do elo mais frágil, justifica-se pela intenção de harmonizar os interesses das partes integrantes das relações de consumo[76].
Convém aduzir, por certo, que a principal faceta do equilíbrio posta em causa se relaciona ao equilíbrio econômico do contrato. Nesse sentido, valiosa é a lição de Enzo Roppo, segundo o qual o contrato é uma espécie de “veste jurídica” da operação econômica[77]. É justamente pelo quanto acima exposto que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) opta acertadamente por assegurar o (re)equilíbrio, que pode sofrer alterações e desajustes devido às condutas adotadas pelas partes nas diversas fases de uma relação contratual.
Cláudia Lima Marques[78] aponta para o fato de que uma vez concluído um determinado contrato entre fornecedor e consumidor, isto é, iniciada a produção de efeitos deste pacto, a lei impõe, através do princípio em epígrafe, direitos e deveres no contrato visando o alcance da chamada “justiça contratual”. Sob esse espectro, o código consumerista, através da instituição de normas imperativas, proíbe que se lancem mão de cláusulas abusivas, isto é, aquelas que de algum modo confiram vantagens unilaterais ou demasiadas para o fornecedor de bens e serviços, ou que, outrossim, seja incompatível com a boa-fé e a equidade[79].
Mas então, quais são as possíveis causas dos desequilíbrios verificados em prejuízo dos consumidores? Esses desbalanceamentos contratuais se verificam sempre que houver, de alguma maneira, benefícios desproporcionais pela outra parte (fornecedor), podendo ser ocasionados “tanto da imposição de parcelas que agravem a prestação do consumidor, como exclusões ou limitações que contrariem a natureza de determinado contrato”[80]. Situações como estas se verificam, por exemplo, nos contratos de seguro que excluem da cobertura do serviço os riscos inerentes à própria atividade segurada do consumidor, ou em cláusula estabelecida em um contrato de plano de saúde a determina a suspensão do atendimento em caso de haver atraso de uma única parcela – conforme se extrai do entendimento do STJ[81].
Deste modo – e vale, portanto reiterar –, “a proteção do equilíbrio contratual resulta não apenas do princípio do equilíbrio, mas também dos deveres da boa-fé objetiva, quais sejam, os deveres de respeito, colaboração e lealdade com a contraparte”[82]. Frise-se, aliás, que é com acosto nos deveres acima referidos e nos axiomas da boa-fé e do equilíbrio que foi alterado o paradigma da vontade das partes: mesmo quando manifestada livremente, sem a menor existência de vícios no seu consentimento, não é mais a autonomia volitiva o fator decisivo para o Direito[83].
Nesse passo, é adequada a menção de que o compete ao Poder Judiciário, dada a relevância desta tutela, declarar a nulidade em caráter absoluto dessas cláusulas eivadas de abusividade por violação do equilíbrio contratual, princípio consagrado no terceiro inciso, art. 4º, do CDC[84]. O magistrado o faz tanto a pedido do próprio consumidor lesado, das entidades de proteção – associações criadas na forma da lei para defesa do consumidor, por exemplo –, ou mediante requerimento do próprio Ministério Público. Observe-se que tal declaração de nulidade pode ainda ser exarada pelo julgador ex officio[85].
Após breve exposição da temática supra referida, imprescindível o retorno às disposições constantes nos termos de uso das fornecedoras ora analisadas. Não foi difícil encontrar, pois, cláusulas manifestamente desajustadas sob o prisma do equilíbrio contratual. Em referência aos Termos de Uso da Foxbit[86], tem-se que “4.5.3 Como condição para a utilização dos Serviços, o Usuário entende e reconhece que as transações de compra e venda de Criptomoedas são realizadas por sua conta e risco e que a Foxbit atua exclusivamente como mantenedora da Plataforma para que os Usuários transacionem entre si [...]”.
Não bastando, a fornecedora dispõe ainda que “[...] Em nenhum momento a Foxbit poderá ser considerada responsável por quaisquer perdas, danos, prejuízos e/ou lucros cessantes que possam eventualmente ser sofridos pelos Usuários devido às transações de compra e venda realizadas ou não através da Plataforma”[87]. Ora, parece inadmissível que – principalmente em sede de contratações por adesão – uma das partes, (e não por caso a fornecedora) pretenda se eximir de obrigações extracontratuais inerentes a eventual ocorrência de danos quando das transações no âmbito da referida plataforma.
Sob esse cenário, resta claro que a disposição pretende atribuir praticamente a generalidade dos encargos – inclusive aqueles de surgimento eventual – a uma das partes (o consumidor). Saliente-se, contudo, que o microssistema em questão não admite distribuições dos encargos nesse sentido, já que os fornecedores, tendo ciência sobre se tratar de um negócio que possui seus riscos inerentes, pretendem se eximir de, por assim dizer, todas as responsabilidades quanto a prejuízos que possam vir a ser configurados.
Reflita-se, por exemplo, sobre situação em que eventuais danos ao consumidor no âmbito da relação de intermediação entre compra e venda de criptomoedas sejam causados pelos próprios fornecedores: estariam eles, através da disposição referida supra, tencionando uma exclusão contratual de responsabilidade extracontratual? Esta cláusula, decerto, tende a ser abusiva por promoção de desequilíbrio excessivo na relação de consumo, com esteio no art. 39, V, da tão referida Lei nº 8078/90. A valer, pode-se afirmar que uma disposição nesse sentido propõe quase uma espécie de cláusula geral – e tendencialmente absoluta – de inimputabilidade do fornecedor.
Em suma, busca-se um tratamento suficientemente rigoroso quanto às cláusulas que criam, de algum modo, vantagens unilaterais para o fornecedor. Nessa senda, Cláudia Lima Marques[88] expõe que há uma lista delongada de incisos do art. 51 do CDC que consideram nulas todas as disposições que prevejam, para o fornecedor, a faculdade de concluir ou não o contrato, bem como de variar o preço, cancelar a relação contratual, receber de volta os valores empregados na cobrança de dívida, e mesmo autorização para fazer alterações no conteúdo ou na qualidade do contrato após este já ter sido celebrado. Estas situações são nulas sempre que ao consumidor também não sejam conferidas tais faculdades. Assim, consoante a mesma doutrinadora, estes são casos em que a nulidade não se forma pelo conteúdo das cláusulas, mas sim pelo fato de a vantagem ter sido concedida unilateralmente ao fornecedor, tornando-as, portanto, abusivas[89].
Desse modo, e apenas em sucinta referência, embora o consumidor possa até, dada certa conjuntura, requerer a modificação do contrato segundo juízos de equidade, considera-se que “as práticas comerciais desleais não se caracterizam por induzir a um desequilíbrio contratual, que necessitasse de ser corrigido equitativamente, mas antes por conduzir à celebração dos contratos com base em ações ou omissões enganosas ou agressivas”[90]. Exatamente por isso, há espaço para que se sustente a falta de plena efetividade deste remédio – de efeito modificador dos contratos de consumo – ante a violação dos direitos desses já referidos destinatários finais[91], sendo necessária, para tanto, uma atuação veemente dos órgãos e instituições definidos pelo ordenamento para a defesa desta parcela mais frágil da relação.
4 BREVE ANÁLISE DO PROJETO DE LEI QUE VISA REGULAMENTAR AS CRIPTOMOEDAS
O ordenamento jurídico vigente no país, conforme leciona Fernando Ulrich[92], incluindo as leis em sentido estrito e as regulações, não fazem previsão expressa ao modelo de tecnologia alusivo às criptomoedas. Nesse sentido, veem-se o que o autor denomina “zonas legais cinzentas”. É bem verdade que o Bitcoin não se encaixa nas previsões nos conceitos tradicionais de moeda. Além disso, o tão mencionado atributo da descentralização afasta os bitcoins do enquadramento como outro instrumento financeiro já existente. Destarte, mostra-se uma tarefa árdua definir quais diplomas legais efetivamente se aplicam ao Bitcoin, e, caso se lhe apliquem, de que forma isso ocorrerá.
Sem prejuízo do quanto acima referido, é válido salientar que as características inerentes às criptomoedas não são, por si, e nem poderiam sê-lo, idôneas ao afastamento de disposições legislativas sobre a matéria. Mencione-se, inclusive, que, ao longo do lapso temporal de surgimento/ascensão das criptomoedas, houve dois projetos de lei apresentados por parlamentares brasileiros que merecem atenção. Há, inicialmente o PL nº 2.303/2015, de autoria do Sr. Deputado Áureo Ribeiro, cuja ementa “
A despeito disso, pontue-se um atributo deveras benéfico trazido pelo PL 2.303/15, anteriormente mencionado, no art. 3º desta proposta – in verbis: “Aplicam-se às operações conduzidas no mercado virtual de moedas, no que couber, as disposições da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, e suas alterações”[93]. Assim, sustenta-se que a relevância deste projeto não está nele, em si, já que carrega pretensões tanto quanto limitadas. Releva, sobretudo, nesta proposta a inserção da matéria legislada no campo de extensão do CDC, isto é, o Códex consumerista passaria a ser aplicado às operações de pagamento com moedas digitais – as quais pretendiam inclusão junto aos programas de milhagens de companhias aéreas, com espeque na lei nº 12.865/13.
Por outro lado, não se pode deixar de aduzir que esta subordinação ex lege das criptomoedas ao Código de Defesa do Consumidor tem força mais simbólica do que prática – não desconsiderando o valor deste emblema, mas, em verdade, mostra-se pouco efetiva. Isto devido ao fato de que o microssistema consumerista há de ter ingerência em toda e qualquer relação jurídica cujos elementos e partes essenciais rondem ao entorno dos polos fornecedor- consumidor, sendo este destinatário final de um produto ou serviço[94]. Sem prejuízo do que ora exposto, há que aduzir que o relator do referido PL demonstrou, ao que se infere da leitura do texto proposto, preocupação e respeito aos direitos dos consumidores positivados na Lei nº 8078/90.
A seu turno, o mesmo Deputado Áureo Ribeiro apresentou o PL nº 2060/2019, cuja finalidade se relaciona à disposição “sobre o regime jurídico dos criptoativos” no Brasil. Verdadeiramente, este PL se mostra muito distinto daquele outro – mais consistente e com pretensa maturidade jurídica, trazendo, inclusive, o conceito devidamente especificado de criptoativos[95], consoante seu art. 2º. Curiosa também é a disposição trazida no parágrafo único do mesmo dispositivo, que cria a figura do intermediador de Criptoativos, isto é, “a pessoa jurídica prestadora de serviços de intermediação, negociação, pós-negociação e custódia de Criptoativos”[96].
Em caráter também recente – e sob outras perspectivas legislativas quanto à matéria tratada –, mencione-se o PL nº 3825/2019, de autoria do Senador Flávio Arns (Rede/PR). Até pela atual conjuntura, vê-se com apreço esta novel iniciativa, uma vez que se pretende mais abrangente do que a proposta legislativa anteriormente citada. Desta maneira, introdutoriamente, cabe pontuar que o projeto de lei do Senador Arns releva imensamente na sua missão de atribuir conceitos, como, por exemplo, do que se tratam criptoativos. Isto porque, principalmente, em se tratando de um tema ainda pouco explorado (considerando seu potencial alcance e aprofundamento nos anos vindouros), é preciso, sobretudo, definir e especificar, na medida do possível, os objetos de tratamento do referido conteúdo legislativo.
No que atine ao Exchange de criptoativos, isto é, quanto ao processo pelo qual uma pessoa jurídica oferece serviços de intermediação ou negociação, o projeto de lei em epígrafe determina, conforme será visto nas linhas abaixo, que seja solicitada uma autorização prévia do Banco Central. Para o autor do projeto, a regulamentação deve contemplar todo o processo de utilização do recurso, visando maior transparência e segurança de dados. Sem prejuízo dos demais escopos, percebe-se a intenção de regulamentar não somente as criptomoedas, mas operações que as envolvam, a segurança para os investidores, os recursos que devem estar sendo utilizados em termos de identificação das pessoas de processamento da origem, entre outros[97].
Nesse sentido, pela completude com a qual se depara deste último projeto de lei em cotejo ao PL e ante à impossibilidade de se debruçar extensamente sobre a matéria nas linhas deste sintético trabalho, optou-se pela análise do PL 3.825/2019. Com isso – e é valioso esclarecer desde logo – não se pretende elaborar, meramente, uma coletânea de comentários ao pretendente diploma legislativo, mas, primordialmente, recortar aspectos que se julgam positivos e necessários, bem como os que se considera inadequada a inclusão no ordenamento jurídico pátrio.
4.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS
Primeiramente, há que se considerar as matérias disciplinadas pelo referido projeto, isto é, os serviços referentes a operações realizadas com criptoativos em plataformas eletrônicas de negociação, conforme redação expressa do art. 1º. Percebe-se, desde logo, a clara intenção do aludido projeto de trazer definições relevantíssimas, nomeadamente: plataforma eletrônica, criptoativo, Exchange de criptoativos. E qual a relevância desta medida? Em primeiro lugar, denota-se relevo prático, por ser indubitável que a temática em referência ainda não é tão amplamente conhecida a ponto de que seus termos e expressões sejam comuns ao vocabulário nacional.
Destarte, a delimitação, ab initio, dos conceitos sobre o que se vai tratar nos dispositivos legais promove a facilitação do acesso e, por lógica, a devida compreensão por parte de todo e qualquer interessado na matéria que venha a consultar a norma em causa. Além disso, sublinhe-se também o relevo jurídico: não rara é a utilização de conceitos vagos, indeterminados ou mesmo plurívocos pelos legisladores. Por isso, o exercício de conceituação diminui a margem de dúvidas sobre o campo jurídico a que se está considerando. Isto repercute diretamente no âmbito de fiscalização por pelas eventuais autoridades responsáveis e controle pelo Poder Judiciário.
Ademais, mister pontuar um importante dispositivo consagrado no art. 6º do projeto em questão. Sua redação expressa uma vedação destinada às Exchanges, proscrevendo-lhes o uso de quaisquer nomes que contenha termos característicos de alguma das instituições do Sistema Financeiro Nacional (SFN), mormente se a palavra for “banco”. A mesma proposta normativa veda também o uso de expressões similares em vernáculo ou em idioma estrangeiro. Com isso, visa-se combater às alusões reflexas às instituições e elementos do sistema financeiro: pense-se, por exemplo, em uma Exchange que, proibida de usar a denominação “banco”, usasse “bank”[98] – o efeito inicial pretendido seria o mesmo. Ou seja, em verdade se busca evitar que essas empresas aludam, por meio dos seus nomes fantasia ou similares, pertencerem ao SFN.
Acredita-se, dessa forma, na existência de uma preocupação do projeto legislativo de inserir no ordenamento – em matéria de intermediação de criptomoedas – uma ratificação das vedações trazidas pelo art. 37, §1º do Código de Defesa do Consumidor[99]. Inclusive, infere-se especial aversão do legislador pela publicidade enganosa, eis que “esse traço patológico afeta não apenas os consumidores, mas também a sanidade do próprio mercado”[100]. No caso em tela, o projeto de lei entende que pode ser, em alguma medida, enganoso o chamariz das empresas intermediadoras de operações com as criptomoedas, valendo-se, como já afirmado, de nomenclaturas alusivas às instituições financeiras propriamente ditas.
Nessa linha, estaria o consumidor diante de situação na qual os elementos da empresa poderiam induzi-lo a alguma espécie de erro, ou mesmo atribuição de demasiada confiança nas referidas Exchanges pelo simples fato de usarem nomes semelhantes aos daquelas instituições já exaustivamente citadas[101]. Portanto, demonstra-se haver, por via de um atributo enganoso qualquer, “uma distorção no processo decisório do consumidor, levando-o a adquirir produtos e serviços que, estivesse melhor informado, possivelmente não o faria”[102].
Finalmente, é razoável mencionar-se também o art. 13 do PL, principalmente em seu inciso I. Esta proposta normativa traz, ao longo da sua redação, a atribuição de competências ao Banco Central em matéria de regulação das criptomoedas. E assim, o já referido primeiro inciso do dispositivo afirma a competência desta instituição bancária no âmbito da disciplina das operações com criptoativos, inclusive no tocante à atividade do que a lei denomina “supervisão prudencial” e “contabilização das operações”. É bem verdade, entretanto, que essa extensa lista de atribuições ao Banco Central mitiga, em não desprezável medida, a famigerada liberdade com inerente às transações envolvendo criptomoedas até o presente momento.
4.2 PRINCÍPIOS E DIREITOS ASSEGURADOS
Inaugurando este tópico, é digno de menção o art. 4º do PL 3.825/19, cujas disposições constantes nos incisos I a VII trazem para o cerne das preocupações legislativas a necessidade de serem observadas certas diretrizes de atuação no mercado de criptoativos. Em linhas gerais, reza o dispositivo que as operações realizadas nas plataformas eletrônicas devem ser sólidas e eficientes, com serviços confiáveis e de qualidade, mencionando-se, inclusive, a “excelência no atendimento às necessidades dos clientes”.
Outrossim, estando atento aos novos paradigmas e desafios do Direito hodierno, o projeto legislativo preza também pela segurança da informação, principalmente no que toca a proteção de dados pessoais – matéria esta que, não obstante de relevância fulcral para uma mais ampla compreensão do tema, não caberia nas curtas linhas disponíveis em sede deste presente trabalho. Adicionalmente, destina-se um dos incisos a dispor sobre a transparência, devendo sê-lo feito de modo claro e completo, principalmente no que toca as condições em que serão prestados os serviços. Nessa linha, ousa-se interpretar o art. 4º deste PL como verdadeiro introdutor de boa parte dos princípios que serão não só consagrados, mas especificados nos dispositivos posteriores, conforme será visto logo em sequência.
Cumpre debruçar-se, em sequência, nos valorosos contributos que se pretendem trazer pelos incisos I e V do art. 9º; separadamente, analisem-se um e outro. Primeiramente, cabe afirmar que aquele (inc. I) determina que as Exchanges devem ser dotadas da infraestrutura necessária a garantir a segurança das operações, assegurando, deste modo, a confiabilidade e qualidade dos serviços prestados. Ora,
Ainda sobre o dispositivo supracitado, faz-se necessário remeter esse tal “dever de qualidade” especificamente para o art. 39, VIII, do CDC[103], a saber, que consagra como prática abusiva a inserção no mercado de produtos ou serviços em desacordo com as normas relativas à disciplina em causa, sejam elas produzidas pelos órgãos competentes ou, na inexistência de tal, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) ou outras entidades que sejam credenciadas pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro).
Neste panorama, o advento das inovações tecnológicas trouxe novas preocupações aos órgãos metrológicos. Comunga-se, inclusive, com o art. 4º, III do CDC, em que se firma como um dos princípios regentes da política nacional de relações de consumo a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e a proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, tendo sempre esteio na boa-fé e equilíbrio nas relações consumidor-fornecedor[104].
Sobre isso, uma questão que poderia ser colocada é até que ponto as normas de natureza técnica expedidas pela ANBT seriam obrigatórias, bem como vinculariam os fornecedores de serviços relacionados à transação de bitcoins, já que, como se sabe, não há largo conjunto normativo sobre a matéria[105]. De toda sorte, há que se afirmar que as normas técnicas são majoritariamente compulsórias. Assim, o já referido art. 39, VIII do CDC debruça-se diante das atividades econômicas que venham a exigir um regramento mínimo, em especial no tocante à qualidade e segurança dos usuários e consumidores, requerendo condições mínimas de atuação, que hão de funcionar como margens de avaliação no caso de eventuais defeitos ou vícios constatados[106].
Além desse, vê-se no inciso V do mesmo art. 9º o dever às Exchanges de estabelecerem medidas adequadas contra lavagem de dinheiro e demais crimes financeiros. Em que pese soar estranha a menção de normativas de caráter penal em um trabalho de teor predominantemente consumerista, explica-se a razão da abordagem: como será demonstrado ainda neste tópico, as tenções do projeto de lei em epígrafe acabam por ser essencialmente voltadas à tutela penal das operações envolvendo criptomoedas. De toda sorte, deixa-se aqui a observação de que esta norma trazida pelo quinto inciso do art. 9º, embora sendo uma feliz iniciativa, é demasiado vaga, permitindo larga margem de discricionariedade às Exchanges na definição do que seriam as tais “medidas adequadas”.
Nesse sentido, opina-se, pretensiosamente, que o modo de construção desta norma não é muito favorável à sua aplicabilidade imediata, necessitando, para isso, que o Banco Central – mediante competência atribuível pelo art. 13, II[107] – edite normas complementares relativamente ao objeto social, constituição, funcionamento e à fiscalização das plataformas de câmbio de criptoativos. Tendo isso em conta, o déficit de concreção da norma do inc. V poderá acarretar, mormente no início de eventual vigência desta (potencial) lei, dificuldades no controle e fiscalização das intermediadoras acima referidas, até pela apriorística carência de parâmetros concretos.
A seu turno, pode-se aduzir que felizmente o mesmo não ocorre com a disciplina trazida pelo art. 10 do PL 3.825/19. De inescusável relevância, o dispositivo consagra, logo em seu caput, os princípios da informação e boa-fé, especificando ainda a necessidade de que as informações prestadas pelas tais “casas de câmbio” a seus clientes e usuários (consumidores) sejam claras e objetivas. Assim, a norma em causa propõe o dever de que sejam prestadas informações muitíssimo relevantes aos consumidores, quais sejam: sobre a natureza e a complexidade das operações contratadas. Estabelece ainda que isto deve ser feito com recurso a linguagem clara e objetiva, com escopo de permitir a ampla compreensão tanto sobre as operações e riscos ocorridos.
Com efeito, consagra-se no projeto de lei o direito do consumidor previsto no art. 6º, III do CDC, pelo qual surge o “dever de informar bem o público consumidor sobre todas as características importantes de produtos e serviços, para que aquele possa adquirir produtos, ou contratar serviços, sabendo exatamente o que poderá esperar deles”[108]. Além disso, tem-se que a vantagem do dispositivo em tela consiste na delongada especificação – arrolada nos respectivos incisos – dos procedimentos e métodos a serem adotados, de forma a alcançar não somente o dever de informar, mas consagrar a necessária obrigação de transparência nas relações contratuais.
A isto se liga, com efeito, o princípio da boa-fé, já suficientemente considerado em linhas anteriores. Deste modo, Rizzato Nunes[109] expõe que, a partir de uma cumulação dos princípios, “compostos de dois deveres – do transparência e o da informação –, fica estabelecida a obrigação de o fornecedor dar cabal informação sobre seus produtos e serviços oferecidos e colocados no mercado, bem como das cláusulas contratuais por ele estipuladas”.
Em arremate, a crítica que se atreve a fazer à proposta legislativa nº 3.825/2019 é, sem dúvidas, ligada ao seu enfoque dedicado quase exclusivamente ao âmbito criminal. É bem verdade que a apuração da análise permite que se extraiam do aludido projeto regras e princípios aplicáveis às relações de consumo. No entanto, nota-se, inclusive com espeque na própria justificação do PL, que a grande propulsão legislativa visa o combate à prática criminosa, tal como por lavagem de dinheiro, evasão de divisas, tráfico de drogas, enfim, cuja moeda de financiamento e troca dessas condutas delitivas seja justamente as criptomoedas.
Assevere-se, enfim, que a iniciativa com viés criminal não era só importante, mas inexorável. Com efeito, pretende-se afirmar que o microssistema consumerista continua a carecer de legislação mais específica sobre a matéria, até mesmo para assegurar de forma indubitável e eficiente a tutela dos consumidores envolvidos nas relações com Exchanges, principalmente aquando das operações com os já tão referidos criptoativos.
4.3 A REGULAMENTAÇÃO E A FISCALIZAÇÃO DAS ATIVIDADES ENVOLVENDO BITCOINS
Existem, na atualidade, mais de 30 (trinta) Exchanges no Brasil; dentre elas, mais de 20 (vinte) foram criadas no ano de 2018, revelando um impactante e abrupto crescimento deste novo setor. Ocorre, entretanto, que estas empresas – no presente cenário – atuam livre e desimpedidamente no mercado pátrio, isto é, sem estarem submetidas a quaisquer órgãos ou entidades governamentais responsáveis por sua supervisão e/ou fiscalização[110]. Por isso, e sem prejuízo do quanto exposto anteriormente, é razoável admitir que o projeto de lei cumpre, em termos gerais, uma relevante função de ser ao menos precursor da atividade legislativa regulamentadora em matéria de criptomoedas, incluindo-se, por lógica, o Bitcoin.
Pondere-se também que se engendram no PL mecanismos que de fato podem viabilizar, em alguma medida, a fiscalização em matéria de comércio e transação de criptomoedas – observando-se, especialmente, os arts. 3º, caput, 5º, 12 e 13, incisos V e VI. Com efeito, é bem verdade que a fiscalização das operações em si apresenta-se como uma tarefa de árdua (e improvável) realização bem sucedida. Isto porque, conforme abordado nos tópicos iniciais sobre o conceito e características das criptomoedas Bitcoin, explicou-se que pela sua própria natureza e constituição integram um sistema de difícil ingerência, marcado por uma alta discrição e privacidade das identidades dos transacionadores.
Desta maneira, e não sendo oportuno aprofundar sobre as funções que permeiam uma regulação estatal propriamente dita, há que se considerar que “a essência de um processo regulatório consiste num processo de organização coletiva, decorrente do Poder Estatal, ao qual está submetido um determinado grupo de participantes de um mercado específico [...]”[111]. Este trâmite se materializa sob vários prismas distintos, como, por exemplo, na autoridade conferida para a criação de determinadas normas de conduta, bem como recomendações quanto ao modo de atuação (ou não atuação), podendo, inclusive, compreender as relevantes funções de fiscalização e supervisão[112], sendo aquela, inclusive, uma das bases de discussão do presente trabalho.
5 A IMPORTÂNCIA DA ATUAÇÃO DO PODER PÚBLICO NA FISCALIZAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO DAS CRIPTOMOEDAS EM PROL DOS CONSUMIDORES
Inicialmente, cumpre observar que tudo sobre o que foi até então debatido no presente trabalho fundamenta o que será, pois, aduzido na sequência. Sob esse espectro, é possível afirmar que os modelos idealizados para as transações de criptomoedas – em que pese inequivocamente benéficos à desburocratização e modernização de transações financeiras – desencobre considerável parcela (senão a generalidade) dos seus utilizadores. Isto porque, conforme já abordado, o advento das novas e ainda pouco conhecidas tecnologias, a maior liberdade de trânsito inerente aos criptoativos, o sistema descentralizado, a criptografia e o próprio sistema de Blockchain são universos com os quais considerável parte dos consumidores ainda não tem, certamente, afinidade.
De todo modo, ainda que assim não fosse, vota-se pela remanescência ao Estado do dever de tutelar os consumidores nesse âmbito, já que os atributos acima referidos não podem ser suficientes para afastar a devida proteção jurídica[113]. Evidencia-se que a problemática em causa também traz a necessidade haver uma ponderação entre fatores complexos, dentre eles: liberdade econômica, autonomia da vontade, multipolarização dos centros de relevância econômica, por um lado; e a tutela estatal dos indivíduos mais frágeis de uma relação (in casu, de ordem consumerista), por outro. Efetivamente, “o dever de proteção do consumidor, estabelecido a partir da norma constitucional, vincula todos os poderes públicos, visando à realização dos direitos fundamentais em geral, e à defesa do consumidor em particular”[114].
Nesse leme, a ação governamental para a efetiva proteção e defesa dos consumidores surge em sede de política nacional das relações de consumo, consagrada no Códex consumerista. Portanto, é possível aduzir que a importância da atuação do poder público em matéria de fiscalização e regulamentação das criptomoedas se coaduna com o já referido art. 4º, II, “d” do CDC, segundo o qual o princípio da ação governamental, visando a efetiva tutela do consumidor,
Ada Pellegrini Grinover[115], oportunamente, leciona ser necessário que se observe, nesse diapasão, “que por qualidade há de se entender não apenas que determinado produto ou serviço foi certificado, isto é, está de acordo com a respectiva norma técnica como também que atende às expectativas do consumidor”. Compete, pois, ao Estado proteger efetivamente o consumidor, intervindo no mercado para evitar distorções e desequilíbrios, zelando pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade e segurança, bem como de durabilidade e desempenho.
Tendo isso em consideração, e com vistas a não deixar a discussão apenas no plano abstrato, é valiosa a aplicação concreta das situações acima referidas. Sublinhe-se, por exemplo, o caso de um consumidor, pessoa simples e humilde, que não possui especializações nas áreas da economia, das finanças, mas que decide operar algumas transações utilizando criptomoedas, já que comercialização com criptoativos é, sem dúvidas, um dos assuntos mais abordados da atualidade. Para isso, cadastrou-se em uma das plataformas intermediadoras referidas no tópico nº 3 (Contratos por adesão atinentes ao uso das criptomoedas). Ora, na oportunidade em que foram analisadas algumas disposições dos contratos por adesão utilizados pelas referidas empresas, foram vistas sequenciais – e graves – violações às normas consumeristas.
Perceba-se que, no exemplo acima construído, o utilizador deste serviço não era pessoa com grau de instrução específico na área econômica, tampouco entendia de sistemas de computação. Ou seja, no fundo, refere-se a um indivíduo de conhecimentos médios e que não tem, de modo algum, como se proteger por si só das investidas abusivas promovidas por fornecedores de serviço de intermediação (Exchanges) ou mesmo por hackers, criminosos, que eventualmente possam invadir os sistemas utilizados pelas intermediadoras.
Para mais, por se tratar de um negócio com relativo risco, é preciso que haja, no mínimo, alguma informação a respeito do modus operandi deste novel ramo das operações e até investimentos.Nesse sentido, “compete ao Estado proteger efetivamente o consumidor, intervindo no mercado para evitar distorções e desequilíbrios”[116], sendo preciso, então, que o Estado intervenha para proceder ao menos com a coordenação das “regras do jogo”; não para descaracterizar o Bitcoin ou qualquer ação similar, mas para impedir que ocorram práticas não desejadas pelo Direito do Consumidor ante à parte mais frágil da relação contratual.
Em suma, a consagração do princípio da intervenção do Estado opera designadamente no reconhecimento de que a defesa do consumidor deverá, necessária e inescapavelmente passar pela atuação estatal – e aqui comporta, inclusive, a menção à específica disposição da Carta Magna pátria, que, ao estabelecer o direito do consumidor como direito fundamental, fá-lo tendo em conta uma imposição ao Estado do dever de proteção e defesa do referido direito[117].
5.1 A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR FRENTE AO BITCOIN: PRINCÍPIOS DO MICROSSISTEMA CONSUMERISTA
Os princípios, tanto para o Direito como um todo, quanto para os seus microssistemas lograram, paulatinamente, relevo ao lado das “regras” nos ordenamentos. Nessa linha, foi-se o tempo em que se defendia uma existência principiológica meramente instrumental, isto é, que aqueles desempenhavam simples função de auxílio, em caráter subsidiário, na aplicação do Direito[118]. E mais: estes verdadeiros axiomas, embora permitam concretizações a níveis variados, por serem “mandamentos de otimização”[119], não dão azo a que o operador jurídico deixe de tê-los como referência, buscando dar-lhes o cumprimento necessário[120].
Por essa razão, sobre os princípios ínsitos ao Direito do Consumidor, Bruno Miragem[121] pondera que “se reconhecem a partir do Código de Defesa do Consumidor, incidem sobre as relações jurídicas de consumo, visando à correta interpretação e aplicação das regras que a regulamentam”. Por isso, o estudo em questão impõe a análise da problemática da regulamentação e fiscalização das criptomoedas à luz de relevantíssimos axiomas pertencentes ao microssistema consumerista, sem os quais não seria possível o alcance de uma tutela efetiva dos consumidores.
5.1.1 Princípio da Vulnerabilidade
O reconhecimento pelo legislador quanto ao Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor no mercado de consumo é marcadamente uma das maiores bases – se não a maior de todas – do pensamento em matéria consumerista. Desta forma, o primeiro inciso do art. 4º do CDC, atribuindo aos consumidores a maior fragilidade da relação com os fornecedores, contribui, inclusive, para a delimitação do que se entende por “consumidor”, isto é, sua definição perante o Direito. Eros Roberto Grau sustenta esta tese, elucidando que a tal exercício conceitual advém de que existem, no mercado, relações inequivocamente assimétricas. Além disso, pondera ainda que, via de regra, é mesmo o consumidor a parque se encontra em posição de debilidade e subordinação ante o fornecedor[122].
A inexorável relevância do reconhecimento da vulnerabilidade chegou ao patamar do Superior Tribunal de Justiça, em sede de Recurso Especial, cujo entendimento extraído foi de que “o ponto de partida do CDC é a afirmação do Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor, mecanismo que visa a garantir igualdade formal-material aos sujeitos da relação jurídica de consumo”[123]. Reitere-se, com veemência, ser certo que a vulnerabilidade se tornou condição indispensável para que se entenda o que é ser consumidor[124]. A partir disto, aliás, parte da doutrina acaba por referir a expressão “consumidor vulnerável” como pleonástica, em si, haja vista todos os consumidores possuírem intrinsecamente tal condição, eis que surgida de presunção legal absoluta, isto é, que não comporta discussão nem aceita prova em sentido diverso[125].
Consoante a doutrina de Cláudia Lima Marques, há três tipos de vulnerabilidade, quais sejam: fática, técnica e jurídica[126]. Primeiramente, tem-se a modalidade fática, cuja decorrência reside intrinsecamente no desequilíbrio inato produzido pelas relações entre consumidores e fornecedores. Logo, presume-se que o fornecedor possui maior arcabouço intelectual, bem como econômico[127], sendo, no mais das vezes, melhor aparatado de corpo técnico e especializado para as mais diversas questões atinentes aos produtos oferecidos e/ou serviços desenvolvidos por determinada empresa[128]. Observe-se ainda que embora haja, sim, pessoas físicas mais ricas que uma larga gama de fornecedores e suas respectivas empresas, não há maiores dúvidas de que esta não é, em definitivo, a regra.
Além disso, admite-se também a modalidade técnica[129], pela qual o consumidor é vulnerável sob o inequívoco prisma de que este não possui domínio técnico sobre o produto ou serviço que consome. Avalie-se, por exemplo, o caso de uma pessoa que decide investir na compra de determinada quantia em bitcoins, pois ficou sabendo, por meio de um anúncio publicitário na internet, que as criptomoedas estavam em ascensão, e investir nelas tratava-se de um negócio realmente promissor. É bem verdade que, principalmente devido à considerável popularização do acesso à tecnologia, esta pessoa deve saber, razoavelmente, manusear o computador/celular, acessar as plataformas virtuais de comércio de criptoativos, cadastrar-se e até mesmo dar os primeiros passos no tocante a esta nova empreitada em sua vida: a gerência de criptomoedas.
Entretanto, não é esperado que esta mesma pessoa saiba como é, per si, o funcionamento pormenorizado daquela plataforma que está utilizando, ou mesmo as nuances do mercado em que se inserem essas denominadas moedas virtuais, seus riscos, as possibilidades de operações fraudulentas, os registros em blockchains, dentre outros. Isto, sublinhe-se, até pelo fato de se tratar de matéria bastante recente e deveras complexa, abrangendo simultaneamente questões de ordem econômico-financeiras, tecnológicas e tantas mais.
Aliás, é ainda possível – e pertinente – complementar o exemplo acima, atendo-se mesmo à realidade das criptomoedas: não integra uma expectativa média a ideia de que os consumidores de bitcoins, mormente em face das Exchanges, saibam, ao transacionarem, como funcionam os processos de (des)criptografia, mineração e afins. No fundo, a compreensão que se tem sobre eles é, na generalidade dos casos teórica, não havendo o domínio técnico sobre a matéria em causa. Por tais pretextos, resta mais que comprovada a vulnerabilidade, sob o viés técnico, dos consumidores lato sensu, e, especificamente, dos consumidores abarcados pelas relações envolvendo criptomoedas.
Finalmente, tem-se em consideração a vulnerabilidade jurídica. Segundo Claudia Lima Marques[130], através desta modalidade se presume desconhecimento por parte dos consumidores quanto às especificidades, tanto das relações em si, quanto dos produtos e serviços oferecidos no mercado – podendo estes peculiares atributos tangenciarem a lei, as Ciências Econômicas, Contábeis etc. Definição tanto quanto mais restritiva é trazida por Bruno Miragem[131], que não inclui a falta de conhecimentos em economia ou contabilidade pelo consumidor, mas, define sua ocorrência na “falta de conhecimentos, pelo consumidor, dos direitos e deveres inerentes à relação de consumo que estabelece, assim como a ausência da compreensão sobre as consequências jurídicas dos contratos que celebra”.
Então, a vulnerabilidade está intimamente associada ao mercado das criptomoedas, principalmente sob o viés técnico, já que ao consumidor não é exigida a expertise e o conhecimento preciso sobre as características essenciais inerentes ao objeto daquela relação[132]. Nessa senda, o princípio tantas vezes reiterado é um dos que mais corrobora a necessidade de atuação estatal no sentido de regulamentar e fiscalizar o comércio e a transação de criptomoedas bitcoin.
5.1.2 Vetor do Equilíbrio Contratual
Para além da relevante análise da vulnerabilidade enquanto princípio regente das relações de consumo, que já demanda ao Estado proteção ao consumidor, sobretudo por meio de ações legislativas, entende-se que essa tutela surge também a partir da ideia de equilíbrio das relações. Isto se deduz a partir da redação do inciso III do artigo 4º, que usa expressões como “harmonização dos interesses” e “compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico”.
Nessa senda, a vulnerabilidade do consumidor, bem como a distinção entre as posições das partes nessa relação, surgem como pressuposto e corroboram a relevância do princípio do equilíbrio no Direito do Consumidor[133] – cuja materialização se encontra nítida nos arts. 5º, V, e 51, ambos do Código de Defesa do Consumidor (CDC)[134]. Com as devidas ressignificações, e transportando-se a questão para o campo das relações de consumo, vê-se que o comércio e a transação de bitcoins apresentam inequivocamente o binômio “risco/benefício”, pela própria natureza desta atividade. Por isso, compete às autoridades governamentais, com a colaboração direta dos órgãos de proteção e defesa do consumidor, equacionar tais questões, buscando atribuir de forma equânime, tanto quanto possível, os perigos e os bônus inerentes à atividade em causa[135].
Pelo quanto o acima exposto, resta nítida a correta inquietação do legislador em buscar a manutenção efetiva do equilíbrio nas relações contratuais de consumo. Na prática, é (também) por isso que a lei promove expressas vedações ao que Leonardo Medeiros Garcia[136] classifica em obrigações iníquas (antagônicas à equidade), abusivas (que violam relevantes valores presentes na sociedade) ou ainda que ofendem a boa-fé objetiva – através de quaisquer rupturas aos deveres de cooperação, lealdade, proteção à confiança legítima etc. Nesse leme, interessante notar que o equilíbrio visa não só, mas em essência, proteger o consumidor com relação ao contrato, bem como através da responsabilização civil extracontratual (à luz da responsabilidade objetiva, verificada sem demonstração de culpa)[137].
Além disso, no tocante à necessidade de balanceamento no poder de direção do contrato, remete-se à inolvidável vulnerabilidade do consumidor face ao fornecedor, já que é este que desempenha posição de inequívoca dominância na relação contratual. Assim sendo, e por haver (muito) maior poder o poder ao fornecedor no papel de tomada de decisões sobre o desenvolvimento do contrato, bem como do seu cumprimento, por força de lei, é estabelecido considerável leque de normas que limitam a atuação e o poderio privado exercido pelo fornecedor. Felizmente, está-se diante de uma legítima e aceitável intervenção legislativa estatal na autonomia das partes, por visar, sobretudo, a proteção dos interesses do consumidor[138].
Ante o exposto, há que considerar o perigo trazido pela carência de regulação e de fiscalização, eis que sem essas atividades essenciais à política nacional das relações de consumo, é pouco esperável que os fornecedores cumpram seus deveres atribuídos pelo ordenamento, e isso tende a causar profundo desequilíbrio nas relações. As cláusulas abusivas – reitere-se – são, talvez, o mais evidente mostruário do panorama ora descrito. Se não houver, pois, parâmetros legalmente definidos, aos consumidores restará uma situação de intensa desproteção em matéria de criptomoedas.
5.1.3 A Informação dos Consumidores
Inaugurando-se este tópico, Bruno Miragem apresenta a compreensão de que “dentre os direitos positivados pelo CDC, é o direito à informação um dos que maior repercussão prática vai alcançar no cotidiano das relações de consumo”, bem como que tem eficácia correlata ao chamado dever de informação, que surge aos fornecedores. E, ainda em matéria de correlações, afirma-se o direito/dever de informação como corolário do princípio da boa-fé objetiva, temática tratada em linhas anteriores da presente discussão[139].
Consagrado no art. 6º, III, do códex consumerista, este binômio direito/dever apresenta a imposição ao fornecedor de que apresente informações claras e adequadas sobre os produtos e/ou serviços ofertados no mercado, especificando diversos elementos inerentes àqueles, como também os riscos que possam apresentar. Ora, cultiva-se aqui nada além do que o princípio da transparência, concedendo à parte vulnerável desta relação ter conhecimento certo e preciso do que pode (e do que deve) esperar dos produtos e serviços oferecidos por determinada empresa[140]. Com isso, respeita-se a igualdade substancial, em uma das suas vias – a tutela do contraente débil[141] –, pretendendo-se evitar frustrações de expectativas legítimas, bem como prejuízos que, em verdade, não deveriam ser suportados pelos consumidores.
Destarte, afirma-se a existência de um tratamento mais favorável do consumidor nas relações entre estes e fornecedores, com esteio justamente na deficiência informacional por parte daquele em relação ao fornecedor. Isto porque, não é difícil admitir, é este quem possui o conhecimento atinente a dados e informações (das mais específicas), quer sobre o processo de formação e produção do produto ou serviço, quer sobre sua disponibilização no mercado[142].
Com escopo ilustrativo, reservou-se para este oportunidade uma disposição bastante peculiar constante dos Termos de Uso da empresa Foxbit[143], cujo subtítulo expressa justamente a “Disponibilidade da Plataforma. A redação encontrada expõe que a referida fornecedora “procura assegurar que as informações fornecidas sejam precisas, completas, atuais e que o seu uso não tenha interrupções nem erros [...]”. Vê-se que, até essa parte, a disposição nada mais pretende do que formalizar expressamente seu compromisso em atenção ao princípio da transparência (cuja existência, frise-se, independe da verificação de qualquer cláusula nesse sentido).
Ocorre que a redação em causa não se finda na parte acima exposta, mas continua: “[...] No entanto, não podemos garantir a operação da Plataforma em tempo integral, na medida em que esta depende de serviços prestados por terceiros, como empresas de telecomunicações e provedores de acesso à internet”. Ora, acredita-se já não mais ser surpreendente a verificação de mais uma cláusula que não pode, decerto, produzir plenos efeitos na relação contratual. Analisa-se aqui uma disposição que, no fundo, pretende um desvio à transparência por parte da fornecedora, atribuindo, inclusive, responsabilidade por eventuais falhas a terceiros que não compõe aquela relação contratual. No entanto, se a Plataforma “não pode garantir a operação em tempo integral”, e isto, violando obrigações contratuais e/ou extracontratuais, deve, sim, ser responsabilizada por tal.
Ainda no que toca às concretizações do princípio em estudo, percebe-se não ser o bastante, então, que o fornecedor insira cláusulas com redações ilusoriamente atenciosas ao Direito Consumerista, entretanto, logo em seguida, proponha disposições que afastariam tudo o quanto consagrado como deveres incumbidos ao fornecedor. É preciso que haja não mera disposição formal ao cumprimento direito à informação, mas que a imperatividade da boa-fé objetiva (re)conduza sempre as relações entre fornecedores e consumidores à verdadeira transparência, cabendo, deste modo, ao ordenamento pátrio vedar toda e qualquer tentativa ilegal de colisão com este princípio.
5.2 A ATIVIDADE REGULATÓRIA COMO NECESSÁRIA À PROTEÇÃO DA PARTE MAIS FRÁGIL: O CONSUMIDOR
Não é novidade quando se afirma a importância de uma estrutura político-jurídica e técnica que, em verdade, somente o Estado pode fornecer, haja vista haver determinadas atividades, competências, enfim, que escapam por completo da alçada de qualquer particular – e de fato assim o deve ser, principalmente por competir a este, ao acosto da lei, o dever de zelar para que os produtos e serviços oferecidos possuam as devidas qualidade e segurança[144]. A problemática se engendra justamente diante do fato de que o tema das criptomoedas é delicado e ainda muito controverso e com parcas delimitações.
Ou seja, o Estado deixar o andamento desta questão a bel prazer do mercado e da sua suposta capacidade de autorregulação não parece ser a postura mais adequada a ser tomada. Com base nisso, mostram-se precisas as palavras de José Filomeno[145], aduzindo que, não obstante “o Código de Defesa do Consumidor se destine especificamente a ele, em face de sua vulnerabilidade, preocupa-se igualmente com a questão vital da qualidade-produtividade-competitividade”.
Assim, é de fato preciso que sejam adotadas medidas legislativas, administrativas e convencionais, tanto concreta quanto abstratamente, de modo que o Estado possa ou restringir a autonomia e liberdade privadas ou, de forma menos invasiva, atuar de forma indutiva (modelo até mais recomendado ante os parâmetros político-econômicos hodiernos), influenciando o comportamento dos agentes da economia, visando a coordenação das medidas pretendidas em sede de políticas governamentais em matéria de criptomoedas[146].
Interessante notar, em adição, que um recente estudo publicado pelo Finantial Stability Board sobre o panorama mundial quanto à regulação das criptomoedas revelou que, dentre as principais questões que preocupam os diversos países ao redor do globo, listam-se, com distinção, a proteção do consumidor e do investidor[147]. Disto emanam as preocupações no tocante à regulação das corretoras (Exchanges) que atuam como intermediárias na troca entre moedas virtuais e moedas oficiais. Verifica-se serem estes casos os que mais expõem os consumidores “comuns” às inseguranças e riscos – tanto inerentes aos negócios, quanto devido às abusividades praticadas pelas referidas fornecedoras[148].
6 CONCLUSÃO
O desenvolvimento do presente trabalho possibilitou, sobretudo, uma análise da relevância de regulamentação e fiscalização nas transações e no comércio eletrônico da criptomoedas face ao Direito do Consumidor, tendo sempre em conta o Princípio da Vulnerabilidade dos consumidores, eis que, conforme se buscou defender nas linhas acima, os próprios atributos ínsitos aos bitcoins são ligados à sua descentralização e autonomia entre os sujeitos. Não só: a independência frente ao Estado desta nova ordem de comercialização, inobstante possuir diversas vantagens – e quanto a isso não se deve negar –, tende a afastar os consumidores de uma esfera de segurança e proteção jurídicas, visto que onde o Estado e o Direito não podem, de alguma maneira, alcançar, os mais fracos das relações (neste caso, os consumidores), tendem a estar sobremaneira desprotegidos.
Sob esse espectro, Bitcoin é, ao mesmo tempo o que se pode denominar como moeda virtual e, além disso, um sistema de pagamentos criptografado, acessado através da internet, alternativo ao modus operandi até então utilizado pela majoritária parcela da sociedade em operações econômicas das mais diversas ordens – excluindo-se a necessidade de que haja terceiros de confiança (instituições bancárias etc.) para verificar a legitimidade das referidas transações[149]. Deste modo, durante o percurso investigativo sobre a problemática acima referida, tencionou-se especialmente observar a existência ou não de irregularidades neste universo dos criptoativos que pudessem ser verificadas nos contratos firmados em âmbito de comércio eletrônico de bitcoins, cuja constatação veio a ser operada, designadamente na oportunidade de análise dos Termos de Uso de duas grandes empresas intermediadoras de transações utilizando-se as criptomoedas em causa.
Com efeito, destas relações massificadas foram apontadas diversas situações de desconformidade das disposições contratuais com a lei consumerista, quais sejam, dentre outras: situações de vantagem manifestamente excessiva por parte de fornecedores, violações à boa-fé objetiva, atentados ao equilíbrio contratual e mesmo falhas no dever de informação. Por isso, cumpre pugnar, de fato, pela necessidade de atuação estatal no âmbito do comércio eletrônico de Bitcoins, visando evitar as abusividades – em sentido amplo – que se verificaram, sem prejuízo de outras tantas que podem existir e ainda não foram percebidas.
Nesse leme, para além da atuação jurídico-administrativa do Estado no combate às irregularidades nestas relações de consumo, são louváveis e imprescindíveis os impulsos legislativos desenvolvidos com o escopo de regulamentar esta matéria. No estudo em referência, verificou-se a existência de mais de um Projeto de Lei contendo disposições inerentes às criptomoedas e, por razões outrora expostas, concluiu-se pela delimitação analítica de apenas uma das propostas (PL 3.852/2019), que se mostra deveras relevante a ordenamento. Isto porque, consagra na matéria das criptomoedas princípios como o da informação, boa-fé, clareza, objetividade, proibição da publicidade enganosa, enfim, todos eles com benéficas consequências à proteção dos consumidores.
Por outro lado, conclui-se que ausência de disposições exaustivas sobre o ramo do Direito Consumerista faz com que se demande a existência de projetos de lei que abordem a matéria sob o prisma da esfera jurídica acima referida pois, conforme mencionado em anterior oportunidade, o principal fito da proposta legislativa é o combate aos crimes tendo como meio criptomoedas. E mais: ratifica-se a necessidade de que as instituições e órgãos de defesa do consumidor se especializem e direcionem vultosos esforços ao combate às ilegalidades verificadas em âmbito do comércio eletrônico de bitcoins, de modo a endossar a atividade fiscalizatória cuja responsabilidade se incumbe mesmo ao Estado.
Em caráter de sintética observação, cabe asseverar que os (necessários) impulsos estatais não devem ser tomados com base em receios e preconceitos infundados acerca das criptomoedas, de modo a levar a regulação a limites sobremaneira rígidos. Explica-se: essas “moedas virtuais” ainda despertam – até por serem bastante recentes – demasiadas inquietações sociais e desconfortos jurídicos. Trata-se, pois, de matéria cujas bases estão sendo paulatinamente criadas, e isto, é claro, pode provocar tentativas de repulsão, como foi o caso de um exemplo temporalmente próximo. Com isto, refere-se à absurda intenção apresentada pelo Deputado Expedito Neto, relator da Comissão Especial constituída para debater o tão referido PL nº 2.303/2015, de proibir, integralmente, as criptomoedas no Brasil[150].
Para além das medidas citadas acima – e com vistas à obtenção de resultados a longo prazo –, comporta mencionar a intenção do art. 5º, V, da Lei Maior das Relações de Consumo, de que sejam concedidos incentivos à criação e desenvolvimento de entidades (associações) de defesa do consumidor. Dessarte, e em se tratando de tema ainda tão pouco difundido no País, cumpre sugerir a criação de uma associação específica para a educação e tutela dos consumidores em matéria de comércio eletrônico (de criptoativos). Caso seja demasiado inviável, é possível também que se fomente, nas associações de defesa do consumidor já existentes, a criação de um setor específico voltado para a educação dos consumidores no que toca difundirem-se ao menos noções gerais sobre “criptomoedas e as relações de consumo”. Nesse sentido, ressalta-se a importância não só da tutela jurídica, mas também pelo viés pedagógico.
De toda sorte, há que mencionar a importância de associações quanto ao aspecto de proteção jurídica, uma vez que elas podem representar interesses difusos, cujo método de representação precípuo se dá por meio de ações governamentais[151]. Nesse sentido, Cappelletti e Garth classificam tais ações como mal sucedidas, eis que os órgãos incumbidos de exercê-las “estão inerentemente vinculados a papéis tradicionais restritos e não são capazes de assumir, por inteiro, a defesa dos interesses difusos recentemente surgidos”[152], até por estarem sujeitos à incessante pressão política, fator que muitas das vezes chega a obstar sobremaneira o trabalho de tais centros de atuação.
No mais, à luz das conclusões até então obtidas, alicerçadas ao fato de que as principais instituições legitimadas à defesa do consumidor – Ministério Público e afins – não têm o devido aparato[153] técnico para abordarem, de início, temas como o novel panorama da moeda virtual Bitcoin, é preciso que sejam inseridas, no universo das políticas governamentais, capacitações e cursos de formação especializados na área do comércio eletrônico, bem como das criptomoedas. Sua necessidade se fundamenta na crescente relevância jurídica de ambos os temas, cuja notabilidade será verificada cada vez mais nestes processos de advento e evolução do comércio eletrônico (e) das criptomoedas.
Por fim, resta afirmar que se considera relevante a inserção, no ordenamento, da ideia constante no parágrafo único do art. 2º do PL 2.060/2019, cuja proposição remete à que se crie a figura do intermediador de criptoativos. Assim, embora se tenha reservado a maior parte das linhas deste trabalho no debate de outro projeto – o PL 3.825/2019 –, esta relevante medida daquela outra proposta deve ser mesclada aos benefícios trazidos por este outro. Justifica-se tal sugestão com base no fato de que, atualmente, as corretoras de criptoativos, isto é, Exchanges, com atuação no território nacional “não possuem qualquer espécie de regulação ou exigências para funcionarem”[154]. Com efeito, embora nenhum dos projetos de lei até então apresentados tragam essas medidas regulatórias suficientemente específicas, o parágrafo único em comento pode, certamente, abrir espaço a uma maior – e melhor – regulamentação da matéria.
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