Considerações iniciais
A ausência de uma tradição política liberal no Brasil não atinge apenas o caso do armamento da população civil e seus meandros comerciais e políticos discutidos. A falta de um amparo filosófico a respeito do tema faz com que as discussões sejam absorvidas por duas correntes antagônicas: uma de cunho comunitarista, composta pelos ditos “progressistas” favoráveis à proibição da venda de armas e munições, com forte apoio do setor hegemônico da mídia tradicional, representada pela Rede Globo, bem como por intelectuais engajados; e outra de um setor da sociedade que se declara como “conservador”, munido de uma retórica comparativa abstrata com países mais permissivos à compra e ao porte de arma – sendo o maior e mais influente deles os Estados Unidos da América. Ambos os lados estão amparados em falácias comparativas de vários tipos, com nações tão distantes do Brasil geograficamente quanto do ponto de vista cultural, educacional, de segurança pública e economicamente.
O objetivo deste artigo é discutir o problema do desarmamento de um ponto de vista filosoficamente liberal, inserindo os principais problemas que o Brasil atualmente enfrenta a respeito do assunto, nas esferas filosófica, jurídica e comercial.
Os setores militantes da questão armamento/desarmamento não são úteis para uma discussão brasileira, pois não refletem as reais necessidades do Brasil dos pontos de vista: i) filosófico e liberal, no que tange liberdades individuais básicas que precisam ser garantidas; ii) legal, a respeito das limitações sobre o número de armas, calibre restritos e número de cartuchos que podem ser comprados, bem como o fato do Brasil ter dois sistemas de registros de armas concorrendo em paralelo (SIGMA e SINARM) e a distinção fulcral entre posse e porte de arma de fogo, diferença solenemente ignorada por ambos os grupos; iii) comerciais, levando em conta a dificuldade de acesso às armas produzida pela falta de concorrência no mercado nacional e, concomitantemente, proibição das importações. Esses são os três alicerces centrais deste texto.
A escolha de uma perspectiva declaradamente liberal para abordar o assunto está amparada em um fato também bastante brasileiro: os setores progressistas e conservador no Brasil se confundem quando o assunto é desarmamento e nenhum deles pode ser identificado como liberal. José Sarney, símbolo da política brasileira tradicional, conservadora e retrógrada, figura impossível de ser identificada com qualquer ambiente progressista, chegou a sugerir em 2011 uma política de “tolerância zero às armas de fogo”, pedindo revisão do chamado “Estatuto do Desarmamento” (Lei 10.826/03) e a proibição completa da venda de armas e munições para a população civil. A sugestão veio após Wellington Menezes de Oliveira, ex-aluno de uma escola em Realengo, no Rio, entrar no ambiente estudantil armado, chacinando 12 pessoas e ferindo 22, antes de ser parado a tiros por policiais e se suicidado. Sarney, derrotado no referendo de 2005 que buscava ratificar a proibição da venda de armas de fogo e munições para civis – prevista na mesma lei de 2003, julgou o momento da chacina escolar de Realengo oportuno para “rediscutir” o assunto. Sem nenhum filtro humanista, o então Senador pelo Amapá distribuiu panfleto no velório alheio, uma excelente oportunidade para vender sua pauta “progressista”. Sem o apoio interno do próprio Senado, o assunto acabou esquecido.
Assim como o atirador de Realengo, a maioria das armas utilizadas para cometer crimes no Brasil não são adquiridas legalmente, tendo em vista os critérios estabelecidos pela lei para se poder acessar uma autorização de compra, através da Polícia Federal. Mesmo que vingasse a proibição, a pauta desarmamentista de Sarney em nada afetaria outro crime premeditado como aquele cometido por Wellington.
Perspectivas sociológicas
No Brasil, o tipo de análise mais utilizado, por ambos os lados, armamentistas conservadores ou progressistas desarmamentistas, é o que poderíamos classificar de perspectiva sociológica. Ela se caracteriza por atrelar a quantidade de armas ao aumento dos índices de homicídios, assaltos violentos, crimes domésticos e todo tipo de problema que não está, necessariamente, ligado apenas ao fator do armamento da população civil, tampouco ao uso de armas para defesa pessoal e doméstica. Em geral, trata-se da tentativa de “espremer os números até que eles confessem” por meio de estatísticas ou dados parciais. O problema com essa perspectiva sociológica, especialmente no Brasil, é que ela depende fundamentalmente de índices de criminalidade disponibilizados pelas polícias, passando pelo filtro dos agentes políticos[3].
Por exemplo, no ano de 2000 o governo de São Paulo implantou uma política de redução da criminalidade e nos anos seguintes os delegados eram orientados a classificar os homicídios como “mortes a esclarecer” e “encontro de cadáver”. O resultado dessa política de mascaramento foi uma redução no número de homicídios. No ano de 1999 os homicídios estavam calculados em 15.810 (diante de um montante de 2.191 mortes de “intenção indeterminada”; num total de 34.182 “mortes por causas externas”). A relação entre mortes por causas externas e indeterminadas antes da política de maquiagem dos números do governo paulista era de 6,4%. Esse número estava drasticamente alterado em 2005, quando 17,2% dos casos de “mortes por causas externas” são considerados “indeterminados”. Foram 4.729 mortes sem esclarecimentos concretos, diante de 27.420 mortes totais. O número de homicídios teve uma redução virtual para 8.727 caos. A taxa de homicídios entre 1999 e 2005, dessa forma, caiu de 44,01 para 21,93 (100 mil habitantes), uma redução de quase 50%. No mesmíssimo período o Pará quase triplicou seu número de assassinatos, saindo de 10,91 para 27,63 casos (100 mil habitantes).
Com esse novo raciocínio a respeito do que é classificado como homicídio, praticamente apenas os casos de prisão flagrante do assassino iriam para o cálculo em São Paulo. O Estado mais populoso do Brasil se tornou uma “ilha de tranquilidade”, diante de Estados vizinhos com índices considerados violentos, mas estáveis (RJ: 52,59 para 48,16 mortes) e explosões de homicídios (MG: 9,23 para 31,95). A política de “tolerância zero” de São Paulo só foi desbarata quando delegados que não estavam interessados em reduzir seus índices de violência mecanicamente começaram a denunciar as ameaças que sofriam por parte da Secretaria de Segurança Pública do Estado[4], mas o dano causado aos dados é irreversível e quem quiser dizer alguma coisa a respeito dos homicídios em São Paulo nesse período terá que se reportar a eles[5]. Assim, não existe como demonstrar uma relação objetiva entre o número de armas e os índices de homicídio, muito menos de violência[6].
Armamento civil: perspectiva liberal
Neste artigo, com base no que poderíamos chamar de uma “tradição liberal”, nos opomos ao cerceamento ao direito de cidadãos de usar armas para fins de defesa individual. Por “liberal”, não estamos fazendo referência a movimentos militantes, mas, sim, à ideia, presente no seio da filosofia política moderna, de defesa de liberdades individuais. No sentido amplo do termo que usamos, “liberal” é o filósofo político que atribui certa primazia para o valor da liberdade individual, e que entende, por essa razão, que qualquer restrição ou interferência com as liberdades individuais por parte de uma autoridade política apenas será legítima se for baseada em alguma justificação especial[7]. A nossa posição é a de que o cerceamento ao direito do uso de armas para fins de defesa individual não satisfaz esse critério liberal.
Imagine a seguinte cena. Uma mulher foi abusada sexualmente. Pouco se sabe sobre o agressor, pois a violência aconteceu à noite, em meio a uma rua pouco movimentada e sem câmeras de segurança. Prontamente, após se recompor, a vítima procura os órgãos de segurança para buscar ajuda e fazer os devidos registros. Após ser encaminhada para os exames médicos protocolares, enquanto dá o seu depoimento completo, ela ouve a seguinte observação do delegado responsável pelo caso: “Usando uma saia curta destas!”. No Brasil, são repetitivos os casos de delegados dispostos a retirar o ônus de uma agressão tão grave e violenta quanto um estupro da alçada do estuprador. Em parte, isso se deve a uma cultura que busca culpar a vítima[8] e insistir em “comportamentos adequados para mulheres”.
Agora imagine a seguinte cena: acontece um assalto à mão armada a uma mercearia. Pouco se sabe sobre o assaltante. Contudo, além de levar o dinheiro do caixa, ele dispara com uma arma de fogo contra o dono do estabelecimento, que morre no local. O delegado vai até a cena do crime para apurar o caso e fala para a esposa do vitimado: “pois é, veja bem, não se deve reagir em casos deste tipo!”.
A diferença fundamental entre as duas pantomimas é que a primeira declaração da autoridade policial geralmente é dita em boca-pequena nos corredores da delegacia. A segunda, por sua vez, é dita às emissoras de rádio, TV e jornais em tom de conselho, vindo de autoridade entendida no assunto. O raciocínio de fundo que opera em ambas é tentar culpar a vítima ou, no mínimo, tem como efeito colateral colocar em suspenso o ônus da culpa do bandido.
A pergunta que um filósofo de tradição liberal precisa fazer a respeito disso é a seguinte: por que nossa a sociedade contemporânea julga uma dessas declarações absurda, ofensiva, mas considera a outra “um conselho vindo de uma autoridade”? Certamente, a luta centenária do movimento feminista pode nos dar uma boa pista com sua agenda de reivindicações de direitos individuais. Assim, um delegado que tente culpar uma vítima de estupro e não um estuprador precisa esconder os seus verdadeiros pensamentos da esfera pública, para não provocar reprovação e alarido[9]. Por outro lado, a contemporaneidade sugere que segurança é coisa para especialistas e o fomento de forças institucionais de segurança pública por parte dos governos alterou drasticamente a percepção em torno das responsabilidades individuais a respeito da nossa segurança pessoal, patrimonial/doméstica e das pequenas comunidades. Afinal, não havia forças de segurança pública especializadas até o século XIX e a atividade de garantir a segurança de uma população era deixada a cargo da própria população ou de milícias ligadas às cortes. Por exemplo, a popularização das armas de fogo na Inglaterra dos séculos XVI e XVII, não estava apenas relacionada à defesa de si mesmo, mas também à obrigação do cidadão de intervir para evitar mal feitos contra a comunidade[10]. Essa percepção de proteção mudou drasticamente depois do surgimento das forças policiais; agora, não se espera apenas que o efetivo de policiamento dê conta de espaços públicos amplos, mas também exerça seu poder institucional de fiscalização e controle individualmente sobre os indivíduos. Vamos mostrar que isso não é possível.
Existem bons motivos para a impossibilidade de uma “super-polícia”, investigativa, judiciária e ao mesmo tempo ostensiva, capaz de tutelar a segurança de todos os cidadãos. Eles vão dos mais banais e empíricos, como o fato da polícia não poder estar em todo lugar o tempo todo; passando pelo modo de abordagem dos meliantes que buscam espaço e oportunidade para efetuarem furtos e roubos, longe do alcance da polícia. A expectativa de uma segurança pública integral é frustrada porque sequer as forças de segurança têm a pretensão de manter sobre sua tutela o espaço privado (ou da individualidade doméstica dos cidadãos), bem como elas surgiram com outro modus operandi amparado, inicialmente, na justiça de forma retroativa: elucidar crimes e buscar culpados para serem incriminados e julgados. A institucionalização de policiamento ostensivo, no sentido de prevenir os crimes em uma sociedade, é um acessório estatal ainda mais recente. Devemos deixar de lado a ideia de policiamento ostensivo como freio central da redução da criminalidade em geral, porque é óbvio que bandidos procuram desviar da segurança policial, no sentido de que mais policiamento preventivo diminui a prática criminosa como um todo. Ambas as polícias, judiciária e ostensiva, são igualmente necessárias para uma sociedade. Nesse sentido, é preciso ficar claro que uma perspectiva armamentista liberal não diz respeito ao problema amplo da segurança pública de todos os cidadãos em espaços compartilhados e, muitas vezes, controlados pela segurança pública ostensiva, mas está ligada à segurança individual dos cidadãos. Imaginar que armas nos coldres de particulares servem para refrear índices de violência pública em geral ou que o cidadão contemporâneo deva ter algum compromisso com isso é perigoso, pois, além de sugerir a existência de heróis despreparados para essa função, reduz o problema da segurança pública ao armamento da população. Seria uma falácia que nos remeteria, mais uma vez, aos erros da perspectiva sociológica. O que precisamos entender é por que surge um conselho do tipo “não reaja” e isso diz respeito à confusão a respeito dos reais papeis das polícias especializadas.
Desde a existência de uma segurança pública especializada (não ostensiva, mas investigativa e judiciária), ampliamos a impressão de que homicidas precisam de uma motivação para matar. Ao natural, uma investigação criminal se encaminha para esse paralelo e a tentação de buscar essa motivação na vítima é bastante presente, pois levamos em conta não apenas latrocínios, como aqueles narrados no nosso exemplo. Somos afetados pelos sentimentos de crimes passionais, vinganças, crimes cometidos sob efeito do álcool e outras drogas. A elucidação dos motivos que levam alguém a cometer um homicídio é fundamental para os parâmetros da justiça, nos moldes do próprio liberalismo. Boa parte do peso de uma sentença recai (ou deixa de recair) sobre os motivos do acusado. Essas circunstâncias que levam alguém a cometer um homicídio são importantes para a investigação policial, são imprescindíveis quando se busca declarar alguém inocente, por exemplo, de ter reagido a um atentado contra si mesmo, como nos casos classificados de legítima defesa (excludente de ilicitude). Mesmo com boas razões para se levar em conta os motivos do homicida, contudo, existe uma diferença crucial entre as intenções que o levaram a matar e a inversão do ônus da prova que aposta, basicamente, na motivação do homicídio como algo causado pela própria vítima!
Com isso, queremos dizer que o nosso exemplo do latrocínio é uma via de mão dupla, diferentemente do estupro “em virtude da saia curta”. Precisamos sempre pensá-lo dentro de um contexto de aceitação do risco de matar, ratificado pelo latrocida. O bandido, por certo, aceita o risco não só de cometer um crime muito mais grave do que o assalto à mão armada: ele está disposto a ferir mortalmente uma pessoa para conseguir efetivar seu plano. Também aceita o risco de lutar com a própria vida pelo produto do roubo, ou seja, pratica o dolo de forma consciente, voluntária, deliberada e premeditada. Por outro lado, existe a perspectiva da vítima. Ela não é responsável pelo cenário que foi montado em torno do assalto, não possui condições de adivinhar as reais intenções do assaltante – se ficarão limitadas ao roubo ou se estenderão para o sequestro, estupro, latrocínio etc. Nessa perspectiva da vítima, mais primária da defesa de si mesmo e da própria vida, o que deve ser feito para a preservação de si mesmo é algo que diz respeito intimamente a quem está sendo agredido. Um conselho do tipo “não reaja” exigiria que qualquer consideração a respeito da vítima fosse deixada de lado, em detrimento àquilo que foi considerado durante a maior parte da história do pensamento ocidental, não apenas uma lei da natureza, mas o imperativo último da justiça, no sentido do direito natural. Nas célebres palavras de Hobbes:
O DIREITO NATURAL, geralmente chamado pelos escritores de Jus Naturale, consiste na Liberdade de cada homem para usar seu próprio poder da forma que desejar para a preservação de sua própria Natureza; isto é, de sua própria Vida; e, consequentemente, de fazer qualquer coisa que conceba em seu próprio Julgamento e em sua própria Razão como sendo adequado para tal fim[11].
A ideia de direto natural, por si mesma, coloca na hierarquia das leis da natureza a preservação da própria vida em mais alta conta. Ela “proíbe o homem de fazer aquilo que seja destrutivo da sua vida ou que lhe remova os meios para preservá-la; ela também o proíbe de omitir aquilo que ele acredita poder ser preservado”[12]. Uma interpretação mais ferrenha dessa marca fundadora buscaria justificar inclusive uma contrarreação do assaltante do nosso exemplo para preservar a sua própria vida, investindo mortalmente sobre o comerciante, para tentar preservar a si mesmo.
Como vimos, contudo, a condição do latrocínio no nosso exemplo acaba sendo garantida pelo reconhecimento da aceitação do meliante das condições necessárias e suficientes para realizar seu empreendimento, o roubo, algo que inclui seu risco de morrer e matar. A garantia do direito inalienável hobbesiano de lutar para preservar a própria vida não parece ser amplificada a ponto de deixar de lado essa particularidade e tornar uma retaliação do bandido juridicamente justificável. Sendo o meliante o responsável pela montagem do cenário, não há como inverter a culpa, independente do resultado. Fundamentalmente, do ponto de vista liberal, ele não parece estar nunca reagindo, mas sempre agindo, dado o fato de ser o responsável pela investida criminosa. O reconhecimento de que a culpa não é da vítima em nenhum dos desfechos possíveis faz parte da moderna concepção política liberal de justiça. A sugestão a respeito de como a vítima deve se comportar, reagindo ou não, contraria isso. O surgimento da segurança pública especializada, primeiramente, investigativa e jurídica e, em segundo lugar, ostensiva e preventiva, confunde os papeis desses dois aparatos estatais e o conselho “não reaja” prova isso, pois não há como inverter o ônus de um crime que coloca em risco objetivamente a vida de alguém. A decisão em torno de reagir ou não é unicamente da vítima.
De fato, discutir a provisão de armamento para o público em geral é um problema liberal da modernidade, mas seria de bom termo que o analisássemos à luz de alguns fatores. A questão está comportada em uma perspectiva que jamais teve eco no Brasil, como o fato da common law da Inglaterra e País de Gales ter incentivado durante a maior parte da sua história que as pessoas comuns possuíssem armas para a formação de milícias, antes do surgimento das confusas políticas policiais. A modernidade teve início durante o século XV justamente com essa característica, sendo que homens ingleses eram, inclusive, obrigados a manter armas consigo. Mesmo caras, imprecisas e desconfortáveis, armas de fogo foram se tornando populares para caça, defesa e “manutenção da paz” nas comunidades feudais[13].
A perspectiva inglesa não se encerra no contratualismo de Hobbes. Seria justo fazer alusão aos fundamentos do ceticismo empirista inglês para explicitar a importância dessa marca da modernidade. David Hume, fiel detrator de Hobbes, estabeleceu aquilo que seria a marca do utilitarismo, pelo âmbito da justiça e não da política ou filosofia do direito natural. Não há, para ele, considerações de justiça para serem elencadas em condições de escassez de uma guerra de todos contra todos hobbesiana ou em uma condição afortunada em que nada falte ao espírito humano – buscando um contraponto com Rousseau. A concepção de justiça, não está, segundo essa posição, ligada à natureza das coisas. A justiça é uma virtude artificial que opera apenas quando a utilidade assim exige:
Suponha-se [...] que a sina de um homem virtuoso levou-o a cair em meio a uma sociedade de bandidos, distante da proteção da lei e do governo – que comportamento deveria ele adotar nessa triste situação? Por toda parte ele vê uma voracidade desesperada, um descaso pela equidade, um desprezo pela ordem, uma cegueira estúpida ante as consequências futuras, e tudo isso em um tal grau que deve levar prontamente ao mais trágico desfecho, culminando com a destruição da maioria e a completa dissolução da sociedade dos demais. Durante esse tempo, ele não tem outro recurso senão armar-se, seja a quem for que pertença a espada ou o escudo que toma, e prover-se de todos os meios para sua defesa e segurança. E, já que sua consideração pessoal pela justiça não tem mais utilidade para sua segurança ou a dos demais, ele deve seguir exclusivamente os ditames da autopreservação, sem preocupar-se com aqueles que não mais merecem seu cuidado e atenção[14].
Para Hume, as regras de justiça só cumprem um papel em uma condição intermediária, na qual a sociedade não tenha se diluído em conflitos ou a benevolência de seus membros seja tamanha uns para com os outros que tais considerações não precisem ser feitas. A condição de possuir armas para evitar injustiças e danos causados pelo cenário intempestivo na qual o homem se encontra também pode ser ratificada por Hume, independentemente de uma aceitação da doutrina do jusnaturalismo hobbesiano. Autopreservação, antes de ser uma marca do direito natural, é uma característica da filosofia liberal.
Outro fator que inevitavelmente precisa ser levado em consideração a respeito da permissividade do uso de armas diz respeito aos fundamentos da modernidade e ao surgimento das armas de fogo em si mesmas: a distinção entre armas curtas e longas. A mera distinção de uso e eficiência de emprego entre um mosquete e uma garrucha, uma espingarda e uma pistola, atinge o elemento da permissividade desde que essa diferença de emprego se estabeleceu. Devido à sua portabilidade e à facilidade de dissimular o seu porte, armas curtas sempre estiveram mais intimamente conectadas com crimes como assaltos em estradas[15]. Quando se tornaram mais eficientes no século XIX, se tornaram populares também para a proteção individual, sendo as armas longas destinadas ao conflito bélico, proteção de residências rurais e caça. Essas particularidades de uso se mantêm até hoje, reservadas as devidas particularidades. Não é por coincidência, portanto, que as armas curtas sejam as mais visadas quando uma legislação armamentista é elaborada, antes mesmo de rifles de assalto. Mais adiante, veremos que essa é uma das características da legislação brasileira. A permissividade ou não de certas armas atinge diretamente a perspectiva de proteção individual que certas configurações de armas têm. A sugestão do seu banimento só surge quando o corpo policial profissional adquire a pretensão de ser o único uso legítimo da coerção e garantia da paz, independentemente da condição real de violência de qualquer momento histórico específico e mesmo que essa pretensão não seja jamais concretizada, como no caso brasileiro.
O ataque deliberado contra as armas curtas é uma das marcas deste fenômeno disciplinador do comportamento individual, pois elas são as mais recorrentes para a proteção individual do usuário. A admissão disto é feita pela própria característica que as autorizações envolvendo o porte de arma assumem: armas curtas, destinadas ao porte dissimulado; uma vez que sua função diz respeito exclusivamente à segurança do usuário, não se esperando que elas sirvam para a manutenção da paz na comunidade ou formação de milícias.
Veremos isso com os detalhes relevantes no que diz respeito à legislação brasileira na sequência.
Armamento da população civil: perspectiva legal brasileira
Um dos argumentos contra o armamento da população civil mais recorrente é a ideia de que muitas armas que se encontram em poder de meliantes foram adquiridas no mercado legal e extraviadas por furto ou roubo. Não há, contudo, dados que apoiem essa percepção, pois não há um dispositivo legal que criminalize diretamente o proprietário que perde o controle de sua arma, para a criminalidade ou não. Do ponto de vista legal, apenas militares de carreira das forças armadas que compram armas entre os chamados “calibres restritos” respondem através de um inquérito militar pela perda de seus armamentos. Esse tipo de ataque aos direitos de defesa e proteção individual busca acrescentar um problema adicional à ideia de armamento da população civil: a percepção de que as armas necessariamente geram mais insegurança do que segurança, na medida em que acrescentam um chamarisco à bandidagem. Esse argumento pode ser rejeitado com base nos argumentos de responsabilidade em torno de uma perspectiva liberal, elencados anteriormente. Chama atenção especial, no entanto, o fato de que o Brasil tem uma legislação extremamente frágil no que se refere tanto ao campo da responsabilidade quanto ao da liberdade.
Em primeiro lugar, temos dois sistemas de controles de armas de fogo, ambos ineficientes, falhos e sem contato entre si, correndo em paralelo: o Sistema Nacional de Armas (Sinarm), administrado pela Polícia Federal, e o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), controlado por cada uma das 12 regiões militares do país. Em meio a eles, os principais dispositivos legais a respeito do assunto são o chamado Estatuto do Desarmamento, o Código Penal Militar e um bom número de portarias militares editadas e reeditadas sem aval legislativo.
Antes da criação do Sinarm, a autonomia para registro de armas era distribuída entre as polícias das respectivas unidades federativas e, após a lei 9437/97, esse tipo de processo ficou concentrado na Polícia Federal, responsável pelos certificados das armas compradas, portes e inclusive extravios. Atualmente, o registro de armas de fogo tem a prerrogativa de ser válido por 10 anos[16], uma alteração feita no Estatuto do Desarmamento que determinava cinco anos para esse tipo de concessão até recentemente.
O Sigma, por sua vez, é caracterizado por dar a flexibilidade legal para que civis registrem as chamadas “armas de calibres restritos”, reservadas às policias dos estados e Forças Armadas. São os chamados CACs, colecionadores, atiradores e caçadores que devem manter registro junto ao Comando do Exército de cada respectiva região militar[17].
Portanto, para a compra de uma arma de defesa residencial ou de porte pessoal, aquilo que vale é o registro no Sinarm; para armas de acervos de colecionadores, destinadas à caça ou atiradores desportivas, vale o registro do Sigma. Na prática, essa distinção transforma as armas adquiridas para uma determinada finalidade sem respaldo legal para a outra, o que nos faz imaginar que um atirador desportista não poderia recorrer a seu armamento de prática esportiva para fins de defesa pessoal contra uma ameaça com as características de um excludente de ilicitude, ou seja, “usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”[18], a conhecida prerrogativa de “legítima defesa”. O inverso também é válido. Falando de meios estritamente legais, o proprietário de armas registradas junto à Polícia Federal não pode utilizar sua arma para fins de caça e/ou atividade esportiva. Uma demonstração prática disso é a dificuldade para buscar autorizações de “guia de trânsito” para o armamento e levá-lo com frequência a um clube de tiro para prática de treino, algo desejável para sua segurança pessoal e indispensável para o uso seguro e responsável do armamento. Segundo Instrução Normativa recente da Polícia Federal, o proprietário de uma arma registrada no Sinarm pode pedir apenas duas guias de trânsito por ano para praticar com seu armamento em “estande de tiro”. O proprietário deve procurar a PF com dez dias de antecedência, datas de transporte, endereço e locais de origem e destino da arma[19].
A própria distinção estabelecida entre “transportar uma arma” e portá-la é imprecisa dentro da legislação. Em portaria do Comando Logístico do Exército, responsável fiscalização de produtos controlados, o artigo 135 estabelece que “fica autorizado o transporte de uma arma de porte, do acervo de tiro desportivo, municiada, nos deslocamentos do local de guarda do acervo para os locais de competição e/ou treinamento”[20]. Diante disso, atiradores desportistas com registros no Sigma julgaram poder colocar uma de suas armas de acervo em porte velado (na cintura) para se dirigir aos clubes de tiros e competições. Houve casos de prisão, como a do atirador Vitor Oliveira que tinha uma guia de tráfego, espedida pelo Exército com bases nos termos da portaria citada. Parado em fiscalização policial, ele informou que portava uma arma, apresentou seu documento, mas foi indiciado mesmo assim por porte ilegal de arma de fogo. A portaria do Colog, como vimos, fala em transportar arma municiada. A definição de “porte de trânsito” veio depois desse incidente com o Decreto 9785/19:
direito concedido aos colecionadores, aos atiradores e aos caçadores que estejam devidamente registrados no Comando do Exército e aos representantes estrangeiros em competição internacional oficial de tiro realizada no País, de transitar com as armas de fogo de seus respectivos acervos para realizar suas atividades[21].
O mesmo decreto é mais flexível para certas ocupações, pois caracteriza repórteres policiais, advogados, políticos e até caminhoneiros como enquadrados na concepção de “efetiva necessidade” para o porte de arma, autorizando a essas categorias que possam requerer porte de arma[22] junto à Polícia Federal.
A celeuma criada pelo decreto citado foi tanta que ele foi revogado, o texto de 7 de maio de 2019 conseguiu falhar do ponto de vista técnico com o governo liberando “sem querer” inclusive fuzis do calibre 5.56×45mm NATO. O resultado, óbvio, foi a revogação do texto. Para suprir a falta de uma norma para os CACs, o governo editou dias mais tarde outro decreto:
Os colecionadores, os atiradores e os caçadores poderão portar uma arma de fogo curta municiada, alimentada e carregada, pertencente a seu acervo cadastrado no Sinarm ou no Sigma, conforme o caso, sempre que estiverem em deslocamento para treinamento ou participação em competições, por meio da apresentação do Certificado de Registro de Colecionador, Atirador e Caçador, do Certificado de Registro de Arma de Fogo e da Guia de Tráfego válidos[23].
Independente da tentativa do governo de reposicionar seu eleitorado, sem as condições políticas de revogar o Estatuto do Desarmamento, a regra de “porte” é proibitiva quando analisada do ponto de vista geral dentro da lei 10.826/03. Fica caracterizada a exceção apenas para os casos lá previstos no Art. 6: “integrantes das Forças Armadas, das polícias federais e estaduais e do Distrito Federal, bem como os militares dos Estados e do Distrito Federal”; ou aos casos discricionários do citado Art. 10.
Mesmo quando falamos em transporte – e não porte – de uma arma de fogo “municiada” sugerimos a ideia de pronto emprego do equipamento para defesa, inclusive para a proteção do acervo do atirador que está se deslocando do local de guarda de sua (s) arma (s) para o clube de tiro, como no exemplo do atirador Vitor. É razoável imaginar que isso realmente seja uma necessidade, levando em conta eventuais ataques em busca de armamentos, uma vez que os locais, data e horas das competições são tornados públicos, em busca de divulgar o esporte. Antes do agora revogado decreto 9785/19, a regra criada pelo Exército pretendia justamente essa proteção, contudo falhou no uso dos termos adequados[24], e não poderia ser diferente porque não pode suplantar uma lei maior, restritiva no que se refere ao porte de armas. A falta de republicanismo do governo eleito em 2018, somada à sua ausência de competência política, tenta legislar por decretos. A fragilidade dessa postura é evidente quando vemos que apenas três dos sete decretos editados entre janeiro e junho de 2019 permanecem válidos[25].
Ainda com respeito à legislação, as armas de uso restrito são sempre registradas pelo Exército e as de uso permitido podem ser adquiridas via pedido feito para a Polícia Federal. Essa distinção é uma das mais insensatas presentes no Estatuto do Desarmamento. Nem o Estatuto nem o decreto que o regulamenta especifica os calibres das armas consideradas de uso permitido e restrito. Portanto, não oferecem uma definição legal e técnica do que seja esse armamento. O decreto 5123/04, Art.11º, diz apenas que “arma de fogo de uso restrito é aquela de uso exclusivo das Forças Armadas, de instituições de segurança pública e de pessoas físicas e jurídicas habilitadas, devidamente autorizadas pelo Comando do Exército” (o que inclui o caso dos CACs, como vimos). Precisamos recorrer a um decreto, anterior ao próprio estatuto, para encontrar a definição técnica do que é permito ao cidadão para sua defesa, através dos registros concedidos pela Polícia Federal. Em se tratando de armas curtas, são sempre calibres de baixa energia, a maioria inadequados para a defesa pessoal em caso de perigo eminente contra um alvo humano, tais como: os calibres .22 LR, .25 Auto, .32 Auto, .32 S&W, .38 SPL e .380 Auto. Segundo a já citada tabela publicada no Diário Oficial da União pelo Comando do Exército, passam a ser de uso permitido: 9 x 19 mm Parabellum, .40 SW; .45 Auto; .45 Colt; .45 GAP; .45 Winchester Magnum, .357 Magnum, armas que anteriormente eram de uso restrito das Forças Armadas e instituições de segurança. No escopo das armas longas, o calibre de maior energia permitido é o 12GA, observada a restrição no que diz respeito ao tamanho do cano da arma que não pode ser inferior 24 polegadas. Essa restrição é proveniente do receio de conceder portabilidade para uma arma com essas características. Em todo caso, armas curtas ou longas, há a restrição limítrofe para armas semiautomáticas[26]; sendo as armas automáticas sempre de uso restrito[27].
Para compreender o anseio de liberação de armas de calibres restritos para a população vale a pena destacar uma confusão criada pelo Exército: O CACs tiveram a liberação do calibre 9x19mm para o uso no tiro desportivo recentemente, por meio do Exército. A Portaria do Colog nº 61, de 15 de agosto 2016, exclui no seu Art. 1º, inciso III, o inciso I do Art. 81 da portaria nº 51 de 8 de setembro de 2015. O inciso revogado proibia o uso do calibre 9mm no tiro desportivo. Assim, em termos mais simples, ficou revogada a proibição; portanto, ficou liberado o uso desse tipo de armamento no tiro desportivo. É preciso pedir desculpas por expor a liberação nesses termos confusos, contudo foi exatamente o que o Exército fez. Como estamos vendo, a caserna não tem apreço pela objetividade e clareza quando o assunto é legislar[28], até porque isso extrapola seu papel institucional. Na prática, mesmo que o calibre mais difundido no mundo seja agora permitido tanto para CACs quanto para defesa pessoal (Sinarm), permanecem os empecilhos para a população em geral, pois para que armas com essa configuração possam chegar às lojas é preciso uma normatização específica por parte do Comando do Exército.
Os principais critérios estabelecidos pela legislação para a compra de armas de defesa pessoal e/ou residencial (Sinarm) e armas para a prática do tiro esportivo (Sigma) são muito parecidos: idoneidade, ocupação lícita, residência fixa (local de guarda da arma), atestado de aptidão psicológica e técnica[29].
Aquilo que o cidadão comum pode, na carta fria da lei, ter para se defender é absolutamente restritivo, quando olhado pelo viés do Estatuto do Desarmamento e dispositivos legais auxiliares. Ainda que as portarias do Exército tentem ampliar o escopo da liberdade, não é possível transformar uma portaria em lei sem o respaldo do Congresso. Nesse tocante, vemos que as regras paralelas tentam encontrar brechas no Estatuto do Desarmamento e fomentam um conjunto especial de cidadãos, muitos deles travestidos de desportistas, colecionadores e caçadores. O aumento de 879% no número de CACs, entre 2014 e 2018[30], não se deve apenas a atividades legalmente relacionadas à prática do tiro para a qual essas armas são adquiridas, mas pelas brechas abertas por uma legislação que prima pela parcialidade das portarias militares e proibições prima facie do Estatuto do Desarmamento. Prova disso é que o disposto que libera munições não consegue ser colocado em benefício do cidadão através do mercado.
A respeito de como o Brasil pode ser um país parcial e protecionista no comércio de armas de fogo, dedicamos a última parte deste trabalho.
Protecionismo comercial
O problema envolvendo o mercado de armas no Brasil também foge da curva oferecida pela interpretação sociológica. Isso se configura assim especialmente porque as pessoas interessadas em defesa pessoal e residencial não fazem frente àquilo que a União e os Estados gastam com a indústria nacional, através de compras para o uso das Forças Armadas e polícias. Mesmo sem dados unificados dos valores gastos especificamente com armas, o incremento de gastos militares globais do Brasil atingiu o pico de U$$ 29,3 bi em 2017, maior aumento anual desde 2010, isso em meio a uma crise financeira que se arrasta desde 2013[31]. Os governos são os maiores clientes da indústria nacional de armas e o motivo é tipificado por força de lei: o protecionismo e a tentativa de evitar fuga de divisas.
Portanto, para comprar uma arma de fogo no Brasil para defesa pessoal, o cidadão deve estar ciente de que estará refém de um mercado restrito a um conglomerado específico: Taurus/Rossi/CBC. A CBC controla o capital social das Forjas Taurus em 65%, em um negócio que iniciou em 2014 e tem o atual formato desde 2016[32]; por sua vez, a Taurus controla a produção de revólveres da Rossi, desde 2005. A legislação nacional prima por uma reserva de mercado para as empresas nacionais, e a Taurus opera com exclusividade e força hegemônica na fabricação de várias armas. Isso faz com que a empresa seja a principal (muitas vezes, a única) fornecedora de armas paras as polícias de todos os estados, Forças Armadas e empresas de segurança privadas.
Uma legislação de 2012 cria incentivos para a indústria brasileira de defesa e estabelece uma lista de Empresas Estratégicas de Defesa (EED)[33]. A Taurus tem um portfólio com 17 pistolas catalogadas na lista de exclusividade para dispensar a concorrência em licitações, enquanto a empresa estatal Imbel tinha exclusividade em 13 modelos[34]. A diferença fundamental gira em torno do fato de que a Imbel fabrica todas as suas pistolas com base na mesma plataforma, apenas com calibres diferentes, enquanto a Taurus reclama exclusividade para a maior parte de suas armas curtas indistintamente. A terceira fabricante de armas leves do Brasil, E. R. Amantino, não está na lista EED e fabrica apenas armas longas (espingardas e carabinas) com foco no mercado esportivo, não fazendo frente à preferência das licitações estatais, nem ao mercado de armas para proteção individual.
No mercado de armas compradas com a finalidade de defesa pessoal e residencial, a Taurus também opera hegemônica, sendo a única fabricante nacional de revólveres. Além disso, como salientamos, as pistolas fabricadas pela estatal Imbel são todas baseadas na mesma plataforma, a 1911. Isso encurta drasticamente a alternativa para quem busca uma arma dessa categoria. Apesar de preços competitivos, a estatal tem seu foco no desenvolvimento de rifles de uso militar, demorando vários meses para entregar uma arma curta comprada no comércio regular[35].
Quando vemos aquilo disposto no Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados pelo Exército (R-105) nos deparamos com portarias militares que flagrantemente beneficiam o monopólio. O Art. 190º do regulamento é explicito:
O produto controlado que estiver sendo fabricado no país, por indústria considerada de valor estratégico pelo Exército, terá sua importação negada ou restringida, podendo, entretanto, autorizações especiais ser (sic) concedidas, após ser julgada a sua conveniência[36].
Além do R-105, o monopólio comercial está estabelecido no Art. 5º da portaria 620 de 2006: “A importação de produtos controlados poderá ser negada, quando existirem similares fabricados por indústria brasileira do setor de defesa”[37]. Essa referência abriu brecha para a criação da lista EED de 2012, consolidando o protecionismo comercial no setor.
Precisamos levar em conta que não é no âmbito do comércio de armas para cidadãos que buscam defesa pessoal e residencial que o monopólio da Taurus encontra seu principal ponto de sustentação: estando os governos dos estados, e as próprias Forças Armadas, limitados ao portfólio das empresas nacionais, pedidos de importação são negados com base na ideia de “similaridade” presente no R-105. “Similar” pode ser compreendido como uma plataforma de arma fabricada no Brasil que teve sua patente, por exemplo, expirada internacionalmente.
Após a Taurus ter sido proibida de negociar com o governo de São Paulo em virtude do mau funcionamento de 7 mil submetralhadoras adquiridas pelo Estado, a Polícia Militar conseguiu autorização do Exército para importar 6250 pistolas da fabricante austríaca Glock a um preço final de R$ 1850 cada. No mesmo período, o Governo do Paraná fechou uma compra de pistolas Taurus ao valor de R$ 2500 a unidade[38]. Essa discrepância de valores não existiria com empresas estrangeiras concorrendo nas licitações em pé de igualdade com a principal fabricante nacional.
Outro exemplo pode ser buscado na utilização de patentes internacionalmente expiradas: recentemente, a Taurus “lançou” um fuzil rebatizado no Brasil de T4, uma cópia da consagrada plataforma M4 (5.56x45mm NATO) que possui fabricantes consagrados no mundo todo. A arma está reclamada na lista de exclusividade e as polícias nacionais estão impedidas de buscar através de licitações outros fabricantes de melhor qualidade. Ou seja, a vagueza desse conceito é oferecida como negativa para a importação de armas e a compra feita pelos estados para suas forças policiais fica condicionada, independentemente de problemas de qualidade e segurança das armas fabricadas pela Taurus. É evidente que qualidade e segurança são conceitos que não cabem na ideia de similaridade. Do ponto de vista do mercado de armas de fogo, o que o consumidor (estatal ou privado) procura são armas precisas, seguras e confiáveis[39].
E para o cidadão comum? O consumidor individual também sofre as consequências do monopólio que tem sua mão-nada-invisível voltada para o dinheiro público. A importação de armas não é impossível, mas a legislação se esforça para que seja proibitiva. Além de armas importadas não estarem disponíveis nos portfólios das lojas por força de lei, encontra brecha para concretizar um pedido de compra na sociedade civil, apenas, mais uma vez, os CACs[40]. Como vimos, armas para o desporto e colecionismo são diferentes daquelas usadas para a defesa, ao menos segundo a carta fria da lei. Ou seja, o indivíduo que buscar uma arma de qualidade com características que atendam as suas necessidades precisa se fantasiar de colecionador ou atirador desportista. A mesma arma que o estado de São Paulo comprou por R$ 1.850,00 em licitação internacional, no nosso exemplo anterior, custa para o consumidor final R$ 6.450,00, uma diferença baseada nos custos de importação, com todas as taxas e impostos[41].
Num país com a legislação disposta com essas características, o Estatuto do Desarmamento é uma legislação desarmamentista assessório. Se as armas não são integralmente proibidas, são proibitivas em razão dos seus valores e da falta de alternativas no mercado nacional. O monopólio estabelecido no setor atinge fundamentalmente o orçamento público, mas serve como um dos principais fomentos de sustentação do impedimento de direitos da população civil. A Forjas Taurus, embora se esforce para disfarçar que não gosta da legislação desarmamentista brasileira, deve antes celebrar o protecionismo que ela fomenta.
Considerações Finais
Os argumentos baseados na interpretação filosófica-liberal são suficientes para sugerir a revogação do Estatuto do Desarmamento, pois o foco do dispositivo legal é limitar o uso de armas para a defesa natural ou utilitária do indivíduo, independentemente da “efetiva necessidade” de portá-la ou não. Tendo por base uma interpretação do direito natural, o cidadão é impedido de acessar o meio de maior eficiência conhecido para os momentos em que sua segurança está ameaçada de maneira prática e deliberada. Na medida em que não se consegue restringir integralmente o acesso às armas, busca-se restringir o acesso à eficiência delas para o emprego da segurança individual com calibres pouco adequados para a defesa. Em paralelo, se preferirmos uma leitura utilitarista dos pressupostos da justiça, impera hoje no Brasil a condição de escassez dos fatores básicos de garantia da segurança. Além disso, a maquinação de decretos, portarias e outras tentativas de autorizar pontualmente o porte de armas mostra que essas autorizações setorizadas em categorias criam uma discrepância de direitos não só entre agentes de segurança do Estado e cidadãos comuns, mas entre os próprios cidadãos. Quando a “efetiva necessidade” de porte é precariamente autorizada a categorias profissionais aleatoriamente, como aconteceu recentemente com um decreto agora revogado[42], o resultado é uma inconsistência no equilíbrio exigido para a garantia de direitos iguais para todos. Medidas populistas com essa característica deslocam o problema da relação entre Estado e cidadãos para uma discrepância de direitos e força ente os próprios cidadãos. De um ponto de vista liberal, não é legítimo conceder liberdade apenas para alguns, pois se trata de um direito natural de todos. Além disso, em cenários nos quais um agressor ameaça a integridade e a vida de um cidadão, não se deve inverter a atribuição de responsabilidade, culpando a vítima por não seguir à risca as recomendações de segurança de autoridades “competentes”. Cabe ao cidadão, naquelas situações críticas em que a sua vida está em risco, julgar quais são os meios adequados para sua própria segurança. Só a completa revogação da Lei 10826/03 e uma legislação séria que estabeleça as condições para comprar uma arma e portá-la pode transformar o Brasil em um país que não condena previamente os seus cidadãos com a inversão do ônus da prova. Enquanto isso, permaneceremos ignorando o direito natural de autodefesa e o perene cenário nacional de insegurança, em que os criminosos têm como principal vantagem o fato de que ignoram toda e qualquer regra.
No tocante à relação entre direitos individuais e a Lei, o problema fica suficientemente caracterizado, pois inclusive o título informal de “estatuto” é contraditório tendo em vista o conteúdo da 10826/03. O aparato legal brasileiro convencionou chamar de “Estatuto” aqueles dispositivos legais que buscam a maximização de direitos (Estatuto do Idoso, da Criança e do Adolescente, da Pessoa com Deficiência etc.). Todas essas legislações buscam melhores interpretações aos direitos individuais básicos, bem como criam formas de políticas públicas para assegurar direitos para determinados segmentos da sociedade que merecem atenção especial do setor público, instituições ou mesmo dos seus concidadãos ou responsáveis. Os estatutos tratam sempre daqueles mais vulneráveis, seja essa vulnerabilidade reconhecida flagrantemente ou não. Ao invés de potencializar, o chamado Estatuto do Desarmamento foi formulado para aviltar os direitos individuais básicos de cidadãos que buscam se defender. Ainda, não o faz para um setor ou segmento específico, mas para todo e qualquer cidadão adulto que tem direito a ter uma arma de fogo na teoria, mas não na prática. Nesse sentido, não é de estranhar que a própria palavra “estatuto” não costa na 10826/03, tendo sido sacramentada erroneamente pelos governantes com apoio da imprensa, sem nenhuma reflexão a respeito daquilo que a lei efetivamente diz[43].
O comércio legal de armas no Brasil é frágil especialmente porque o lojista e as pessoas jurídicas têm a completa inviabilidade financeira de ter acesso às armas importadas de boa qualidade e as oferecerem por um preço comercialmente aceitável. Isso faz com que a importação aconteça apenas por meio de pessoas físicas e limitando os maiores clientes das indústrias de armas, a União e os Estados, àquilo disposto no portfólio nacional com amparo do mecanismo de protecionismo comercial sacramentando por força de lei. A relação promíscua entre Estado e a indústria nacional de armas serve como mecanismo permanente de arrefecimento para frear o desenvolvimento de novas tecnologias no setor, tendo em vista o conforto do mercado fechado, e inibe o cidadão de acessar produtos em preços mais competitivos e maior qualidade para efetivar seu direito de defesa.
A perspectiva sociológica funciona como auxiliar do Estado na busca permanente de vilipendiar o direito à defesa armada do cidadão. Ela faz uso de argumentos que buscam incriminar antecipadamente quem quer se defender e o faz com base em uma transferência de responsabilidade e inversão do ônus da prova: pressupõe a eficiência do Estado na segurança individual e incrimina antecipadamente todos aqueles buscam legalmente uma arma para sua defesa. Tanto a responsabilidade para com a segurança de cada um que o Estado chamou para si quanto a tentativa de manter cada indivíduo em posição de subserviência falhou. O controle de armas nesses moldes só serve para os já controlados, enquanto aqueles sobre os quais não há controle sequer de si mesmo segue a ilegalidade como imperativo.
Referências
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