A função da pena, a dignidade da pessoa humana e o dilema do sistema prisional brasileiro

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10/09/2020 às 11:28

Resumo:


  • O sistema penitenciário brasileiro enfrenta uma crise caracterizada por superlotação e condições desumanas, violando princípios como a dignidade da pessoa humana e falhando em cumprir as funções da pena, como ressocialização e prevenção do crime.

  • A ADPF 347, reconhecida pelo STF, aponta um "estado de coisas inconstitucional" no sistema prisional e exige medidas como a realização de audiências de custódia e a liberação de verbas do Fundo Penitenciário Nacional.

  • Para atenuar a crise, considera-se necessário um estudo aprofundado das condições carcerárias, a aplicação de penas alternativas, políticas de ressocialização eficazes e a construção de novos estabelecimentos prisionais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Estudo bibliográfico acerca da pena e seus princípios norteadores, bem como suas funções, do princípio da dignidade da pessoa humana e análise de dados constantes dos bancos de dados de órgãos nacionais concernente à atual situação carcerária no Brasil.

Resumo

O presente artigo tem como base o estudo bibliográfico acerca da pena e seus princípios norteadores, bem como suas funções, do princípio da dignidade da pessoa humana e análise de dados constantes dos bancos de dados de órgãos nacionais concernente à atual situação carcerária no Brasil. Tendo por base tais premissas, o cerne da questão é conjugar os ensinamentos e averiguar se a situação verificada possibilita que a pena cumpra suas funções e se os direitos e garantias fundamentais da população carcerária estão sendo violados.

Palavras-chave: Pena; Função; Dignidade; Crise; Prisões.

Abstract

This article is based on the bibliographical study about the penalty and its guiding principles, as well as its functions, the principle of human dignity and analysis of data contained in the databases of national agencies concerning the current prison situation in Brazil. Based on these premises, the heart of the matter is to combine the teachings and find out if the situation verified allows the sentence to fulfill its functions and if the fundamental rights and guarantees of the prison population are being violated.

Keywords: Pena; Occupation; Dignity; Crisis; Prisons.

Introdução

O presente artigo encontra-se alocado dentro do Direito Penal, mais precisamente no tocante a pena e seus fundamentos e como reprimenda aos ilícitos praticados. Ainda, aborda o princípio basilar do Estado Democrático de Direito Brasileiro, a dignidade da pessoa humana, entrando na seara constitucional.

Considerando a atual situação do sistema carcerário brasileiro, é imperioso averiguar os dados constantes de bancos de dados nacionais que demonstrem o caos encontrado e a situação precária na qual a população carcerária se encontra.

Diante de tal cenário, será possível que a pena cumpra a sua função de punir e ressocializar, bem como ainda respeite os direitos e garantias fundamentais do apenado?

Os objetivos do presente artigo são o de averiguar os fundamentos da pena, o princípio da dignidade da pessoa humana e a atual situação do sistema prisional brasileiro. Não obstante, busca-se a averiguação se a pena cumpre com a sua função e respeita os direitos e garantias fundamentais e qual a realidade encontrada no meio carcerário.

Obviamente que o tema e a triste realidade encontrada nos estabelecimentos prisionais evidenciam a necessidade de uma mudança drástica na cultura punitiva do país, buscando-se tratar o apenado como ser humano e possuidor de direitos fundamentais.

Utilizamos o método de pesquisa bibliográfico e análise de dados constantes dos bancos oficiais disponíveis acerca da matéria. Trazendo, em primeiro momento, definições e ensinamentos doutrinários acerca dos institutos que permeiam a seara penal e constitucional para, somente assim, finalmente adentrarmos à análise dos dados constantes de órgãos que estudaram/inspecionaram o sistema carcerário brasileiro.

I – Do Direito Penal

Inicialmente, cumpre analisar, de forma mais detida, o Direito Penal (de forma ampla), eis que é através deste conjunto jurídico que o Estado aplica sanções aos transgressores, após todo o trâmite legal (previsto no Código de Processo Penal – Decreto-Lei nº. 3.689/1941).

Conforme o ser humano passou a conviver em sociedade, necessitando da imposição de limites, assim nasceu a necessidade do Estado estabelecer as normas de convivência:

Como já se observou, das necessidades humanas decorrentes da vida em sociedade surge o Direito, que visa garantir as condições indispensáveis à coexistência dos elementos que compõem o grupo social. O fato que contraria a norma de Direito, ofendendo ou pondo em perigo um bem alheio ou a própria existência da sociedade, é um ilícito jurídico, que pode ter consequências meramente civis ou possibilitar a aplicação de sanções penais. No primeiro caso, tem-se somente um ilícito civil, que acarretará àquele que o praticou apenas uma reparação civil: aquele que, por culpa, causar dano a alguém será obrigado a indeniza-lo; o devedor que não efetua o pagamento tempestivamente sofrerá a execução com a penhora de bens e sua venda em hasta pública, arcando com o ônus decorrente do atraso (multa, correção monetária, etc.); o cônjuge que abandona o lar estará sujeito à separação judicial ou ao divórcio, etc.

Muitas vezes, porém, essas sanções civis se mostram insuficientes para coibir a prática de ilícitos graves, que atingem não apenas interesses individuais, mas também bens jurídicos relevantes, em condutas profundamente lesivas à vida social. Arma-se o Estado, então, contra os respectivos autores desses fatos, cominando e aplicando sanções severas por meio de um conjunto de normas jurídicas que constituem o Direito Penal. Justificam-se as disposições penais quando meios menos incisivos, como os de Direito Civil ou Direito Público, não bastam ao interesse de eficiente proteção aos bens jurídicos.[1]

Desta forma, necessária se faz a criação de um arcabouço jurídico que permita o indivíduo se organizar em sociedade e prever sanções aplicáveis aos transgressores de tal regramento, seja ele civil e/ou criminal/penal.

I – A. Conceito

O conceito de Direito Penal pode ser definido “como conjunto das prescrições emanadas do Estado que ligam ao crime, como fato, a pena como consequência”[2].

Ademais, “o Direito Penal é o setor ou parcela do ordenamento jurídico público que estabelece as ações ou omissões delitivas, cominando-lhes determinadas consequências jurídicas – penas ou medidas de segurança[3].

Ainda, conforme Aníbal Bruno, em sua obra, assim podemos conceituar o Direito Penal:

O conjunto das normas jurídicas que regular a atuação estatal nesse combate contra o crime, através de medidas aplicadas aos criminosos, é o Direito Penal. Nele se definem os fatos puníveis e se cominam as respectivas sanções – os dois grupos dos seus componentes essenciais, tipos penais e sanções. É um Direito que se distingue entre os outros pela gravidade das sanções que impõe e a severidade de sua estrutura, bem definida e rigorosamente delimitada.[4]

I – B. Da Função

Segundo o doutrinador Cleber Masson, em sua obra, o Direito Penal possui diversas funções, senão vejamos:

Funciona como proteção de bens jurídicos, isto é, valores ou interesses reconhecidos pelo Direito e imprescindíveis à satisfação do indivíduo ou da sociedade.

Funciona como instrumento de controle social ou a preservação da paz pública, compreendida como a ordem que deve existir em determinada coletividade.

Funciona como garantia, funciona como um escudo aos cidadãos, uma vez que só pode haver punição caso sejam praticados os fatos expressamente previstos em lei como infração penal.

Funciona como ética-social tem origem na estreita vinculação existente tradicionalmente entre a matéria penal e os valores éticos fundamentais de uma sociedade.

Funciona como símbolo é inerente a todas as leis, não dizendo respeito somente às de cunho penal. Não produz efeitos externos, mas somente na mente dos governantes e dos cidadãos.

Funciona como motivação aos indivíduos a não violarem suas normas, mediante a ameaça de imposição cogente de sanção na hipótese de ser lesado ou colocado em perigo determinado bem jurídico.

Funciona como redutor da violência estatal, já que a imposição da pena, embora legítima, represente sempre uma agressão aos cidadãos.

Funciona como promoção do Direito Penal, por constituir-se em ferramenta que auxilie a dinamizar a ordem social e promover as mudanças estruturais necessárias para a evolução da comunidade.[5]

I – C. Da Evolução Do Direito Penal Brasileiro

O Direito Penal brasileiro pode ser subdividido em três ramificações evolutivas: período colonial, código criminal do império e período republicano.

O período colonial, é assim definido por Luiz Rogério Prado, senão vejamos:

Tem-se que na sociedade primitiva existente no brasil antes do domínio português imperam a vingança privada, sem nenhuma uniformidade nas formas de reação contra as condutas ofensivas; ainda que de modo empírico, a composição, inicialmente por acordo entre as famílias e com caráter de indenização, e a expulsão da tribo. No que toca às formas punitivas, havia predomínio das corporais, sem tortura.

Todavia, as leis da metrópole se impuseram totalmente, de sorte que as práticas punitivas das tribos selvagens que habitavam o país em nada influíram, nem então, nem depois, sobre nossa legislação penal. O Direito em vigor na colônia estava feito, precisando simplesmente ser aplicado, depois de importado, sendo nada mais que um capítulo do Direito português na América: fenômeno denominado bifurcação brasileira, isto é, a transplantação do organismo jurídico-político luso para o território nacional.[6]

A segunda fase do Direito Penal brasileiro é justamente com a chegada da família real portuguesa e a criação da Constituição de 1.824, conforme leciona Cleber Masson:

O art. 179, XVIII, da Constituição de 1824 determinou a urgente e necessária elaboração de um Código Criminal, “fundado nas solidas bases da justiça, e equidade”.

Em 1827, Bernardo Pereira de Vasconcellos apresentou o seu projeto, o qual foi sancionado em 1830 pelo imperador Dom Pedro I, destacando-se como o primeiro código autônomo da América Latina.

Entre as grandes inovações, consagrou-se no art. 44 do Código Criminal do Império o sistema do dia-multa. Nada obstante as características positivas, não foi definida a figura da culpa e imperava a desigualdade, principalmente em relação aos escravos, que, aliás, eram equiparados a animais, e, portanto, considerados como bens semoventes.[7]

Por sua vez, o período republicano compreende o advento da Proclamação da República, datado de 15 de novembro de 1889, e, segundo PRADO, assim se expôs:

Com o advento da República, Baptista Pereira teve o encargo de elaborar um projeto de Código Penal, o que foi feito, e em 11 de outubro de 1890 era convertido em lei. Nas condições em que o trabalho foi realizado, não se podia esperar muito do novo diploma legislativo penal.

Atualmente, vigora-se o Código Penal de 1940 (Decreto-Lei nº. 2.848/1940), que detém diversas alterações (a fim de atualiza-lo) e que, ainda, podemos elencar alguns dos posicionamentos doutrinários acerca do mesmo, senão vejamos:

Em 1937, durante o Estado Novo, Alcântara Machado apresentou um projeto de Código Criminal Brasileiro, que, submetido ao crivo de uma comissão revisora, acabou sendo sancionado, por decreto de 1940, passando a vigorar desde 1942 até os dias atuais, ainda que parcialmente reformado.

Dentre as leis que modificaram o Código Penal em vigor, merecem destaque a Lei 6.416, de 24 de maio de 1977, e a eu 7.209, de 11 de julho de 1984, que instituiu uma nova parte geral, com tópicos de nítida influência finalista.[8]

A reforma da Parte Geral humanizou as sanções penais e adotou penas alternativas à prisão, além de reintroduzir o sistema de dias-multa.[9]

Importante ressaltar que o sistema que compreende a execução penal (cumprimento da pena imposta pelo Estado) é hodiernamente regido pela Lei nº. 7.210/1984 – embora tenha sofrido alteração (Lei nº. 13.964/2019) e seja complementada por outras (Decreto nº. 6.049/2007 e Decreto nº. 7.627/2011, dentre outros).

II - Do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

Ademais, cumpre analisar, de forma mais detida, o princípio da dignidade da pessoa humana, eis que se encontra como um dos pilares do Estado Democrático de Direito vigente em nosso país.

Trata-se de termo enraizado nas diversas declarações de Direitos Humanos, tratando-se de tema atual e de uma gama variada de definições e aplicabilidade.

Embora tal princípio não esteja elencado como um dos norteadores do Direito Penal, certo é que este ramo do Direito, bem como todos os demais, possuem estreita correlação e devem obediência hierárquica ao mesmo (conforme hermenêutica jurídica e hierarquia de normas).

II – A. Conceito

Por tratar-se de um princípio, o mesmo pode possuir variadas conceituações doutrinárias, eis sua amplitude de aplicação e de possibilidade conceitual.

Conforme bem relatado nas diversas obras pesquisadas, o precursor da conceituação da dignidade da pessoa humana repousa sobre a pessoa de Kant, tendo em vista sua ampla contribuição para com o aludido tema.

Do estudioso supranominado extrai-se o seguinte pensamento coligido:

O homem, e duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas acções, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim.[10]

Prospectando-se o ensinamento supra descrito, pode-se extrair que todas as proposições de um ordenamento jurídico não devem possuir o homem como um meio e sim tem por finalidade o homem.

Segundo André Ramos Tavares, em sua obra, assim coleciona o seguinte entendimento acerca deste instituto:

Dessa forma, a dignidade do Homem não abarcaria tão somente a questão de o Homem não poder ser um instrumento, mas também, em decorrência desse fato, de o Homem ser capaz de escolher seu próprio caminho, efetuar suas próprias decisões, sem que haja interferência direta de terceiros em ser pensar e decidir, como as conhecidas imposições de cunho político-eleitoral (voto de cabresto), ou as de conotação econômica (baseada na hipossuficiência do consumidor e das massas em geral), e sem que haja, até mesmo, interferências internas, decorrentes dos, infelizmente usuais, vícios.[11]

Desta forma, resta forçoso reconhecer que a dignidade da pessoa humana, nos moldes atuais, não mais se enquadra tão somente no conceito proposto por Kant, mas de uma forma que a dignidade possui conotações de seria digno aquele ser humano que possui vontade, autonomia e que o Direito venha a respeitar tais premissas.

Cumpre destacar o brilhante ensinamento lecionado por José Afonso da Silva em sua obra, aduzindo o seguinte sobre referido princípio:

Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. “Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observem Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer ideia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentida da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a quando se trata de garantir as bases da existência humana.[12]

Não obstante, cumpre destacar o ensinamento doutrinário perpetrado por Alexandre de Moraes em sua obra:

A dignidade é um valor espiritual e mora inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos[13].

De outro ponto, cumpre destacar a lição de Manoel Jorge e Silva Neto em sua obra, sendo o conseguinte:

Trata-se, como se refere no sistema da ciência do direito, de um topoi, ou seja, termo que não admite conceituação, muito embora sirva de ponto de partida para a solução do problema normativo ocorrente.[14]

Para André de Carvalho Ramos, em sua obra, assim pode-se definir a dignidade humana:

Assim, a dignidade humana consiste na qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano, que o protege contra todo tratamento degradante e discriminação odiosa, bem como assegura condições materiais mínimas de sobrevivência. Consiste em atributo que todo indivíduo possui, inerente à sua condição humana, não importando qualquer outra condição referente à nacionalidade, opção política, orientação sexual, credo etc.[15]

Resta evidente que, devida a sua amplitude, não pode ser pronunciada uma conceituação concreta do aludido dispositivo, conforme bem exposto pelo douto doutrinador em sua obra.

II – B. Evolução Histórica

Ao se consultar a obra de Bernardo Gonçalves Fernandes, podemos extrair uma breve elucidação acerca da evolução durante os tempos do aludido princípio ora tratado.

Tem-se que desde a China Imperial, datando do século IV a.C. já haviam filósofos atribuindo dignidade própria à cada ser humano por ato divino[16].

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São Tomás de Aquino, já defendia que a dignidade humana advinha da semelhança do ser humano com Deus.

Conforme tratado no tópico anterior, somente com o Iluminismo de Kant fora possível uma maior abordagem e elucidação do que realmente viria a ser a dignidade humana[17].

Em se tratando de tempos mais modernos, aludido tema somente viera a ter sua posição reconhecida no advento do Estatuto da Organização das Nações Unidas (1945), na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), na Constituição Italiana (1948) e na Lei Fundamenta da República Federativa Alemã (1949).

Na visão de Manoel Jorge Silva e Neto, podemos colecionar que aludido tema encontra-se ligado ao Cristianismo, tendo em vista de que o homem fora criado à semelhança de Deus, como bem afirma São Tomás de Aquino.

II – C. Dignidade da Pessoa Humana e a Constituição de 1988

Aludido princípio fora abarcado pela Carta Magna de nosso Estado, em seu artigo 1º, inciso III[18], sendo forçoso reconhecer que se trata de um princípio de toda a nação e do Estado Democrático de Direito.

Conforme bem explanado por André Ramos Tavares em sua obra, o aludido princípio fora deixado de lado ao não se incluir o mesmo entre os direitos fundamentais, eis que o intuito fora considera-lo um dos fundamentos da República Federativa do Brasil[19].

Ora, conforme bem coleciona o mesmo doutrinador o seguinte entendimento:

Parece que o objetivo principal da inserção do princípio em tela na Constituição foi fazer com que a pessoa seja, como bem anota Jorge Miranda, “fundamento e fim da sociedade”, porque não pode sê-lo o Estado, que nas palavras de Ataliba Nogueira é “um meio e não um fim”, e um meio que deve ter como finalidade, dentre outras, a preservação da dignidade do Homem[20].

Conforme bem leciona acerca da disposição constitucional do aludido tema, Alexandre de Moraes assim o faz: “esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual[21]”.

Conforme bem exposto neste capítulo, o princípio da dignidade da pessoa segue o ensinamento colaciona por Kant, bem como se torna o fundamento de todo o ordenamento jurídico pátrio.

III – Da Pena

Conforme supra narrado, para cada infração penal há a sua respectiva pena. Ou seja, o agente causador do dano, após os trâmites legais, estará sujeito a uma sanção imposta pelo Estado.

III – A. Conceito

O conceito de pena, conforme PRADO é de que “consiste na privação ou restrição de bens jurídicos, com lastro na lei, imposta pelos órgãos jurisdicionais competentes ao agente de uma infração penal[22].

Não obstante, o ilustre MASSON assim discursa acerca do conceito de pena, senão vejamos:

Destarte, pena é a espécie de sanção penal consistente na privação ou restrição de determinados bens jurídicos do condenado, aplicada pelo Estado em decorrência do cometimento de uma infração penal, com as finalidades de castigar seu responsável, readaptá-lo ao convívio em comunidade e, mediante a intimidação endereçada à sociedade, evitar a prática de novos crimes ou contravenções penais.[23]

Ademais, MIRABETE, em sua obra, assim leciona acerca da mesma:

Para Luiz Vicente Cernicchiaro, a pena pode ser encarada sobre três aspectos: substancialmente consiste na perda ou privação de exercício do direito relativo a um objeto jurídico; formalmente está vinculada ao princípio da reserva legal, e somente é aplicada pelo Poder Judiciário, respeitado o princípio do contraditório; e teleologicamente mostra-se, concomitantemente, castigo e defesa social.[24]

III – B. Princípios Norteadores

Conforme dito alhures, a todo ilícito penal é prevista uma punição correspondente e legalmente instituída (princípio da estrita legalidade – art. 1º do Código Penal[25] e art. 5º, XXXIX[26], da Constituição Federal).

Acerca de tal instituto, assim leciona Luiz Régis Prado:

A sua dicção tem sentido amplo: não há crime (infração penal) nem pena ou medida de segurança (sanção penal) sem prévia lei (stricto sensu). Isso vale dizer: a criação dos tipos incriminadores e de suas respectivas consequências jurídicas está submetida à lei formal anterior (garantia formal). Compreende, ainda, a garantia substancial ou material que implica uma verdadeira predeterminação normativa (lex script lex praevia et lex certa).[27]

Ainda, é importante repisar que as sanções previstas devem corresponder proporcionalmente ao ilícito perpetrado pelo agente. Vale dizer, a pena não pode ser desproporcional ao crime praticado.

Assim elucida Cleber Masson acerca do referido princípio:

De acordo com o princípio da proporcionalidade, também conhecido como princípio da razoabilidade ou da convivência das liberdades públicas, a criação de tipos penais incriminadores deve constituir-se em atividade vantajosa para a sociedade, eis que impõe um ônus a todos os cidadão, decorrente da ameaça de punição que a eles acarreta.

Em outras palavras, o princípio da proporcionalidade possui três destinatários o legislador (proporcionalidade abstrata), o juiz da ação penal (proporcionalidade concreta), e os órgãos da execução penal (proporcionalidade executória).

Na proporcionalidade abstrata (ou legislativa), são eleitas as penas mais apropriadas para cada infração penal (seleção qualitativa), bem como as respectivas graduações - mínimo e máximo (seleção quantitativa), Na proporcionalidade concreta (ou judicial), orienta-se o magistrado no julgamento da ação penal, promovendo individualização da pena adequada ao caso concreto. Finalmente, na proporcionalidade executória ou administrativa) incidem regras inerentes ao cumprimento da pena, levando-se em conta condições pessoais e o mérito do condenado.[28]

Ainda, cumpre destacar o princípio da individualização da pena, devidamente previsto no artigo 5º, XLVI[29] da Constituição Federal de 1988.

O referido princípio é assim definido pelo ilustre Cleber Masson:

Expressamente indicado pelo art. 5.º, XLVI, da Constituição Federal repousa no princípio de justiça segundo o qual se deve distribuir a cada indivíduo o que lhe cabe, de acordo com as circunstâncias específicas do seu comportamento - o que em matéria penal significa a aplicação da pena levando em conta não a norma penal em abstrato, mas, especialmente, os aspectos subjetivos e objetivos do crime.[30]

Conforme a obra supracitada de MASSON[31], ainda teríamos outros princípios norteadores da pena que seriam o da anterioridade, da personalidade, da inevitabilidade, da intervenção mínima e da humanidade.

III – C. Evolução Histórica

Pode-se afirmar que as penas remontam aos primórdios do homem na sociedade. Assim afirma MIRABETE em sua obra, senão vejamos:

Perde-se no tempo a origem das penas, pois os mais antigos grupamentos de homens foram levados a adotar certas normas disciplinadoras de modo a possibilidade a convivência social. Segundo Manoel Pedro Pimentel, o confronto das informações históricas contidas nos relatos antropológicos, oriundos das mais diversas fontes, autoriza uma forte suposição de que a pena, como tal, tenha tido originariamente caráter sacral. Não podendo explicar os acontecimentos que fugiam ao cotidiano (chuva, raio, trovão), os homens primitivos passaram a atribuí-los a seres sobrenaturais, que premiavam ou castigavam a comunidade por seu comportamento. Esses seres, que habitariam as florestas, ou se encontrariam nas pedras, rios ou animais, maléficos ou propícios de acordo com as circunstâncias, eram os totens, e a violação a estes ou a descumprimento das obrigações devidas a eles acarretavam graves castigos.[32]

Em sua obra Do Delito e das Penas (1764)[33], Cesare Beccaria, teceu diversas críticas ao sistema penal vigente à época, especialmente às penas impostas que não se coadunavam com os ilícitos perpetrados.

Assim ele definiu em sua obra, sobre a pena de tortura:

Direi ainda que é monstruoso e absurdo exigir que um homem seja acusador de si mesmo, e procurar fazer nascer a verdade pelos tormentos, como se essa verdade residisse nos músculos e nas fibras do infeliz! A lei que autoriza a tortura é uma lei que diz: “Homens, resisti à dor. A natureza vos deu um amor invencível ao vosso ser, e o direito inalienável de vos defenderdes; mas, eu quero criar em vós um sentimento inteiramente contrário; quero inspirar-vos um ódio de vós mesmos; ordeno-vos que vos tomeis vossos próprios acusadores e digais enfim a verdade ao meio das torturas que vos quebrarão os ossos e vos dilaceração os músculos.[34]

Até os dias atuais, a obra deste ilustríssimo Autor compõe a biblioteca básica de todo Estudioso do Direito que se prontifica a analisar o sistema penal, eis que ali se encontram indagações que nos permitem conjugar com a importância da evolução do sistema penal (saindo do inquisitório para o sistema acusatório) e a humanização das penas (conforme a própria Declaração dos Direitos do Homem).

III – D. Das Teorias e Funções

A pena, conforme o ensinamento doutrinário, possui diversas teorias e diversas funções: teoria absoluta e finalidade retributiva; teoria relativa e finalidade preventivas; e, por fim, a teoria mista e a dupla finalidade.

Acerca da teoria absoluta e a finalidade retributiva, assim dispõe MASSON, senão vejamos:

É chamada de absoluta porque esgota-se em si mesma, ou seja, a pena independe de qualquer finalidade prática, não se vincula a nenhum fim, pois não se preocupa com a readaptação social do infrator da lei penal. Pune-se simplesmente como retribuição à prática do ilícito penal. Em outras palavras, a pena funciona meramente como um castigo, assumindo nítido caráter expiatório.

A pena atua como instrumento de vingança do Estado contra o criminoso, com a finalidade única de castigá-lo, fator esse que proporciona a justificação moral do condenado e o restabelecimento da ordem jurídica.[35]

Acerca da teoria relativa e finalidade preventiva, o mesmo Autor assevera que:

Para essa variante, a finalidade da pena consiste em prevenir, isto é, evitar a prática de novas infrações penais (punitur ne peccetur). É irrelevante a imposição de castigo ao condenado.

Adota-se uma posição absolutamente contrária à teoria absoluta. Destarte, a pena não está destinada à realização da justiça sobre a terra, servindo apenas para a proteção da sociedade. A pena não se esgota em si mesma, despontando como meio cuja finalidade é evitar futuras ações puníveis.[36]

A teoria mista, conforme o doutrinador supracitado, assim discorre:

A pena deve, simultaneamente, castigar o condenado pelo mal praticado e evitar a prática de novos crimes, tanto em relação ao criminoso como no tocante à sociedade.

Em síntese, fundem-se as teorias e finalidades anteriores, A pena assume um tríplice aspecto: retribuição, prevenção geral e prevenção especial.

Foi a teoria acolhida pelo art. 59, caput, do Código Penal, quando dispõe que pena será estabelecida pelo juiz “conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime” É também chamada de teoria da união eclética, intermediária, conciliatória ou unitária.[37]

O ilustre PRADO, em sua obra, assim dispõe acerca das referidas teorias:

As teorias absolutas fundamentas a existência da pena unicamente no delito praticado (punitur quia peccatum est). A pena é retribuição, ou seja, compensação do mal causado pelo crime. É decorrente de uma exigência de justiça, seja como compensação da culpabilidade, punição pela transgressão do direito (teoria da retribuição), seja como expiação do agente (teoria da expiação).

As teorias relativas encontram o fundamento da pena na necessidade de evitar a prática futura de delitos (punitur ut ne peccetur) – concepções utilitárias da pena. Não se trata de uma necessidade3 em si mesma, de servir à realização da Justiça, mas de instrumento preventivo de garantia social para evitar a prática de delitos futuros (poena relata ad effectum). Isso quer dizer que a pena se fundamenta por seus fins preventivos, gerais ou especiais. Justifica-se por razões de utilidade social.

As teorias unitárias ou ecléticas, predominantes na atualidade, buscam conciliar a exigência de retribuição jurídica da pena – mais ou menos acentuada – com os fins de prevenção geral e de prevenção especial.[38]

III – E. Da Função Social da Pena

Embora o ordenamento jurídico pátrio adote a teoria eclética, conforme supra explicitado, tem-se que a atual situação prisional brasileira (conforme será abordado no item infra) não tem obtido o resultado esperado e necessário.

Conforme MASSON, a “função social da pena deve ser direcionada eficazmente à sociedade a qual se destina, pois é a pena que tem a função de protege-la e pacificar seus membros após a prática de uma infração penal[39]”.

IV – Do Sistema Penitenciário e Sua Crise

É cediço, bem como de notório domínio público, que o sistema carcerário/penitenciário brasileiro se encontra em total colapso, assim como em evidente superlotação.

Os dados constantes dos relatórios de dezembro de 2019[40], último a ser publicado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), acusam um total de 748.009 presos em território nacional.

Dentre estes, consideram-se aqueles em todos os regimes (aberto, semiaberto e fechado), presos provisórios (aqueles em que não há sentença penal condenatória com trânsito em julgado), em tratamento ambulatorial e em cumprimento de medidas de segurança.

Conforme o gráfico da folha 07[41], o déficit de vagas do sistema prisional alcançava o alarmante número de 312.925. Ou seja, existe quase o dobro de presos para a capacidade máxima prisional em todo território brasileiro.

Não obstante, conforme gráfico constante da folha 13[42], as prisões provisórias (aquelas em que não há trânsito em julgado das sentenças penais condenatórias) eram responsáveis por ocupar, exatamente, 229.823 das vagas existentes. Isto vale dizer que aqueles enclausurados pelas prisões provisórias correspondem há 29,75% do total de presos no atual sistema[43].

Ao se analisar os dados constantes do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões[44], organizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), temos em 2020 um total de 882.574 pessoas privadas da liberdade (dados mais recentes). Deste total, 397.129 pessoas são presos provisórios e, é o de se espantar, apenas 289.733 presos possuem prisões definitivas.

Ou seja, a maior parte do sistema prisional brasileiro, considerando os dados levantados de ambos os sistema supra informados e consultados, está abarrotada por prisões provisórias e não por efetivamente condenações com trânsito em julgado.

Não obstante, a fim de corroborar a informação acerca da carência de vagas existentes no sistema e a superlotação, o Mapa da Violência[45] evidencia que há uma superlotação de 67,8% acima da capacidade existente – excluindo-se os presos que encontra-se em regime aberto, por não demandarem vagas, conforme informação constante do gráfico.

O relatório produzido pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias, através da II Caravana – Sistema Prisional Brasileiro[46], demonstra a superlotação em diversos estabelecimentos inspecionados e, ainda, graves violações aos direitos e garantias fundamentais.

Importante destacar a situação encontra em um dos estabelecimentos visitados pela referida Caravana, senão vejamos:

Antes de descrever a situação dramática imposta àqueles seres humanos, jovens pobres envolvidos, em geral, em delitos contra o patrimônio, é preciso descrever o local que habitam: as celas são imundas. De tal forma que o odor fétido que exalam pode ser sentido ainda no pátio interno do distrito policial. Todas elas são escuras e sem ventilação. Ao alto, em uma das paredes, há uma pequena abertura gradeada com não mais que 15 centímetros de largura. No chão, em meio à sujeira e ao lixo, transitavam com desenvoltura dezenas de baratas. Nas paredes laterais das celas, inscrições firmadas com o sangue dos seus autores nos oferecem a sugestão de sofrimentos passados. Também nas paredes, outras mensagens gravadas com o auxílio de cascas de banana complementam a sujeira toda. Ao alto, no teto desses cárceres, centenas de pequenos aviõezinhos de papel, confeccionados pelos internos, encontram-se grudados pelo "bico", como se ali se depositasse simbolicamente uma compreensível vontade de "voar". A visão geral é deprimente.

Todos esses presos estão obrigados a dormir no chão, sobre a lage, sem que lhes seja oferecido sequer um colchão ou uma manta. Disputam, assim, espaço com os insetos. A nenhum deles é permitido que tenham acesso, mesmo que restrito, a qualquer área aberta. Não tomam sol, não caminham nem se exercitam. A longa permanência naquele lugar nojento lhes provoca crises nervosas, acessos de choro e doenças as mais variadas, destacadamente as doenças de pele e as bronco-pulmonares. Lhes assegura, também, uma coloração especial, algo assim como um tom esmaecido entre o branco e o amarelo pelo que é possível lembrar, alternadamente, as imagens de hepáticos que perambulassem ou de cadáveres que insistissem em viver.

Se é possível imaginar, ainda, condições agravantes a essas, não seria demais relatar que nenhum daqueles presos que sequer foram sentenciados - pelo que presume-se, como o assegura a Constituição Federal, suas inocências - recebem do Estado a alimentação que lhes é devida por lei. Repetimos: não recebem qualquer alimentação do Estado. Sobrevivem às custas de parcos mantimentos que lhes são entregues por familiares quando das visitas. Assim, famílias miseráveis que já se deslocam com dificuldade ao Distrito, descobrem-se na obrigação de evitar que seus filhos morram de inanição. Assinale-se que a maior parte das pessoas detidas naquela pocilga não recebem visitas de familiares. Assim, os mantimentos recebidos devem ser escrupulosamente divididos. Em muitos momentos, os policiais que ali trabalham oferecem os restos de suas refeições aos internos. Como se tudo isso não bastasse, os presos relataram com detalhes procedimentos usuais de espancamentos e maus tratos oferecidos por dois policiais. Entre essas iniciativas, encontra-se, por exemplo, o sofrimento imposto a um dos internos a quem se fez algemar em uma das celas, na grade, por uma noite inteira. Assim trata-se, "modelarmente", os presos no Ceará.[47]

Neste contexto, importante trazer ao presente estudo o ensinamento do ilustre Cezar Roberto Bitencourt, senão vejamos:

Apesar da deficiência dos dados estatísticos é inquestionável que a delinquência não diminui em toda a América Latina e que o sistema penitenciário tradicional não consegue reabilitar ninguém, ao contrário, constitui uma realidade violenta e opressiva e serve apenas para reforçar os valores negativos do condenado. A prisão exerce, não se pode negar, forte influência no fracasso do tratamento do recluso. É

impossível pretender recuperar alguém para a vida em liberdade em condições de não liberdade. Com efeito, os resultados obtidos com a aplicação da pena privativa de liberdade são, sob todos os aspectos, desalentadores.[48]

Cumpre indicar que, devido a falta de elementos objetivos e dados concretos e atualizados acerca da reincidência criminal no Brasil, não há como mensurar efetivamente o quantitativo de egressos que retornam ao sistema carcerário após cumprimento de sua reprimenda.

Cumpre aqui destacar o apontamento realizado pelo (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2015, senão vejamos:

Verifica-se, no quadro 1, que as taxas de reincidência calculadas pelos estudos brasileiros variam muito em função do conceito de reincidência trabalhado. Os números, contudo, são sempre altos (as menores estimativas ficam em torno dos 30%). Esse grave problema tem levado o poder público e a sociedade a refletirem sobre a atual política de execução penal, fazendo emergir o reconhecimento da necessidade de repensar essa política, que, na prática, privilegia o encarceramento maciço, a construção de novos presídios e a criação de mais vagas em detrimento de outras políticas.[49]

De antemão, cumpre citar que a função da pena adotada no ordenamento jurídico brasileiro fora a da teoria unificadora/eclética, ou seja, possui as vertentes preventivas geral e especial, senão vejamos:

De fato, o Código Penal aponta o acolhimento da finalidade retributiva nos arts. 121, $ 5º, e 129, $ 8.º, quando institui o perdão judicial para os crimes de homicídio culposo e lesões corporais culposas. Nesses casos, é possível a extinção da punibilidade quando as “consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”. Fica claro, pois, ser cabível o perdão judicial do quando o agente já foi punido, quando já foi castigado pelas consequências do crime por ele praticado. Já houve, portanto, à retribuição.

Por sua vez, em diversos dispositivos a Lei 7.210/1984 - Lei de Execução Penal dá ênfase à finalidade preventiva da pena, em suas duas vertentes, geral e especial.

Nesse sentido, estabelece o seu art. 10, caput: “A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade” E, ainda, o art. 22: “A assistência social tem por finalidade amparar o preso e o internado e prepará-los para o retorno à liberdade”. O trabalho do preso tem finalidade educativa (art. 28).

E, finalmente, a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, incorporada ao direito pátrio pelo Decreto 678/1992, estatui em seu art. 5.º, item “6” no tocante ao direito à integridade pessoal, que “as penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados”.[50]

A pesquisa realizada pelo IPEA, ao analisar o tocante à reincidência, assim dispõe:

[...] a prisão, do modo como se apresenta, é de fato incapaz de promover a ressocialização; ao contrário, o que ela tem produzido realmente são obstáculos ao alcance deste objetivo. No entanto, apesar desse reconhecimento, sustenta que o intuito não deve ser abandonado, mas reconstruído e, nesta reconstrução, propõe a substituição dos termos ressocialização e tratamento pelo de reintegração social. Para Baratta (1990, p. 3), ressocialização e tratamento denotam “uma postura passiva do detento e ativa das instituições: são heranças anacrônicas da velha criminologia positivista que tinha o condenado como um indivíduo anormal e inferior que precisava ser (re)adaptado à sociedade, considerando acriticamente esta como ‘boa’ e aquele como ‘mau’”. Em oposição, o termo reintegração social pressupõe a igualdade entre as partes envolvidas no processo, pois requer a “abertura de um processo de comunicação e interação entre a prisão e a sociedade, no qual os cidadãos reclusos se reconheçam na sociedade e esta, por sua vez, se reconheça na prisão”.[51]

Não obstante, a fim de garantir que a referida teoria eclética seja efetivamente realizada, bem como o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, fora proposta a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, em maio de 2015, com análise da medida cautelar em setembro/2015 pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) e reconhecendo as graves violações aos direitos e garantias fundamentais da população carcerária, possuindo a seguinte ementa:

CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO.

Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil.

SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL –      CONFIGURAÇÃO.

Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”.

FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS – CONTINGENCIAMENTO.

Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional.

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA.

Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.[52]

Referida decisão impôs aos Juízos que fosse realizada a “audiência de custódia”, inovação junto ao ordenamento jurídico pátrio, onde se viabiliza que o suposto autor de crime que tenha sido autuado em flagrante seja levado à presença da Autoridade Judiciária em, no máximo, 24 (vinte e quatro) horas a contar do momento da prisão.

Importante repisar que a referida ADPF supracitada ainda se encontra em tramitação, não possuindo data prevista para julgamento da mesma.

Hodiernamente, com o advento do famoso “Pacote Anticrime”, instituído pela Lei nº. 13.964/2019, o Código de Processo Penal alterou o artigo 310 em vigência, assim constando:

Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

Desta forma, legitimamente fora instituída a figura da audiência de custódia que, anteriormente, havia sido determinação do Egrégio Supremo Tribunal Federal na ADPF supra citada.

Considerações Finais

Ao se analisar detidamente os ensinamentos acerca da função da pena adotada (prevenção, retribuição e ressocialização), o princípio basilar do Estado Democrático de Direito do Brasil (princípio da dignidade da pessoa humana) e a atual situação do sistema prisional (o seu déficit de vagas e superlotação), resta límpido e evidente que os dois primeiros pontos não são contemplados e possíveis.

Isto se deve ao fato da atual situação carcerária não proporcionar a possibilidade de ressocialização e as condições degradantes e desumanas enfrentadas pelos enclausurados.

Em quase todas as instituições prisionais que foram inspecionadas pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias, constatou-se superlotação em diversos estabelecimentos e, ainda, as condições degradantes que agridem o princípio supracitado.

Ademais, a necessidade de pronunciamento da mais alta Corte do Poder Judiciário acerca das graves violações, através da ADPF 347, evidencia, ainda mais, a situação caótica na qual a população carcerária está atrelada.

Ou seja, de notório domínio público e de fácil constatação que os atuais estabelecimentos prisionais violam o princípio da dignidade humana da população carcerária.

Neste momento, importante realizar a seguinte indagação “do que realmente pode ser feito/proposto para que os direitos e garantias fundamentais sejam respeitados e a função da pena seja realmente efetivada”.

Primordialmente, cumpre destacar que é necessário que seja realizado um estudo criterioso acerca da real situação dos estabelecimentos prisionais e quais os seus principais defeitos para que, somente assim, possa ser incentivado um maior estudo acerca da possibilidade de diminuir as situações de precariedade que foram encontradas e aqui elencadas.

Várias hipóteses surgem ao se analisar, pois é possível falarmos em: a) o agravamento das penas, buscando o caráter retributivo e intimidador; b) a análise detida acerca da necessidade da decretação de prisões provisórias, o que se encontra consubstanciado, de certa forma, na implantação da audiência de custódia; c) a aplicação de penas diversas da prisão, objetivando a substituição das mesmas pelas restritivas de direito, a depender do caso em concreto, quando permitido pelo caráter preventivo geral; d) implementar projetos para a ressocialização dos detentos e, especialmente, os egressos, objetivando a prevenção especial negativa; e) construção de novos estabelecimentos prisionais.

Inúmeras são as possibilidades para que se possa reduzir a superlotação carcerária e, ademais, reduzir os índices de reincidência. Contudo, todas as possibilidades supra descritas dependem do Poder Público, seja no âmbito legislativo (agravação de penas, revogação de leis penais desnecessárias, etc.), judiciário (aplicação de penas diversas da prisão, análise detida acerca da necessidade da decretação da prisão provisória, etc.) e executivo (implementação de políticas públicas voltadas à ressocialização dos detentos, construção de novas instituições carcerárias, etc.).

Ou seja, há a extrema necessidade de que seja realizada importantes mudanças, especialmente comportamentais nos Governantes, para que as medidas (des)penalizadoras sejam agravadas e/ou atenuadas, que a aplicação da lei penal seja realizada em estrita observância aos princípios norteadores da pena e direitos e garantias fundamentais, que as pessoas privadas da liberdade sejam reconhecidas como indivíduos detentores de tais garantias e respeitadas, etc.

Não obstante, importante analisar-se a real causa da reincidência criminal e quais os seus efeitos, utilizando-se de métodos criteriosos e de âmbito nacional, estadual e municipal – ante a especificidade regional de delitos praticados – e, assim, promover uma política criminal mais adequada ao ambiente determinado.

Referências

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Sobre o autor
Hudson Barboza

Pós Graduando em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Estácio de Sá. Bacharel em Direito pela Faculdade Estácio de Sá de Campo Grande/MS. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

O referido artigo fora redigido e entregue à disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso da Pós Graduação em Direito Penal e Direito Processual Penal da Faculdade Estácio de Sá.

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