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Vontade política:

determinante da evolução da jurisdição e do direito penal internacional

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18/06/2006 às 00:00
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5. GUERRA FRIA: A ESTAGNAÇÃO DA JUSTIÇA PENAL INTERNACIONAL

Ao contrário do sucesso atingido na confecção dos princípios advindos do Tribunal de Nuremberg, não houve progresso na constituição de uma corte penal internacional, o que se atribuiu, à época, à falta de definição de vários termos por parte de outros órgãos das Nações Unidas, tal qual o termo ‘agressão’. De fato, o que se observa é que a estagnação do projeto deveu-se sim a uma explícita vontade política de que se postergasse o nascimento de um órgão deste vulto, uma vez que o mundo encontrava-se no início da Guerra Fria, extremamente dividido e prestes a entrar em guerra novamente.

O projeto continuaria ainda parado por décadas, sepultando com ele a esperança do desenvolvimento pleno do direito penal internacional. Não só essa, mas várias outras áreas dentro do sistema das Nações Unidas se paralisaram devido ao alistamento da grande maioria de seus membros em um dos dois grandes blocos políticos, antagônicos e rivais.


6. PÓS-GUERRA FRIA: TRIBUNAIS DA IUGOSLÁVIA E DE RUANDA

Certamente, o principal fator responsável pela instalação de tribunais penais internacionais no início dos anos 90 foi o final da Guerra Fria e a conseqüente dissipação natural da animosidade supramencionada. Aliado a tal arrefecimento de ânimos, veio o compromisso russo em obedecer certas determinações do direito internacional, o que contribuiu em muito para que os membros permanentes do Conselho de Segurança (UNSC) pudessem chegar a consenso em várias matérias, dentre elas as que versavam sobre a segurança de várias áreas em estado de convulsão social devido ao fim das forças de convergência que as mantinham unidas, geralmente agrupadas em sociedades multi-culturais sob o influência e temente a uma das duas grandes potências da Guerra Fria.

Nesse diapasão, Cassese afirma que,

durante a era da Guerra Fria, os dois blocos de poder tinham conseguido garantir um padrão módico de ordem internacional, na qual cada uma das superpotências tinha funcionado como força policial garantidora de tal ordem em suas respectivas esferas de influência. O colapso deste modelo de relações internacionais iniciou uma onda de conseqüências negativas, desencadeando a fragmentação da comunidade internacional e uma intensa desordem, a qual, aliada a um crescente nacionalismo e fundamentalismo, resultou numa espiral de conflitos armados internos, repletos de derramamento de sangue e crueldade. A seguinte implosão das anteriores sociedades multi-étnicas levou a flagrantes violações ao direito humanitário internacional, em escala comparável àquelas cometidas durante a Segunda Guerra Mundial (CASSESE, 2005, p. 335, tradução nossa).

A Guerra da Bósnia, no início da década de 90, testemunhou limpeza étnica, genocídio e outros graves crimes. O ‘Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia’ (TPII) foi criado por meio da Resolução 827 do Conselho de Segurança, com o escopo de julgar os responsáveis pelas violações aos direitos humanos internacionais no território da antiga Iugoslávia, desde 1991. O escopo básico da dita corte é fazer justiça àqueles vitimados pelo conflito e impedir que atrocidades semelhantes sejam cometidas novamente. Para muitos estudiosos, é claro o caráter político de tal tribunal, não se constituindo em um instrumento jurídico razoável e justo. O TPII tem sua contraparte africana no ‘Tribunal Penal Internacional de Ruanda’ (TPIR), instaurado para processar os responsáveis pelo genocídio levado a cabo no país, em 1994, no qual mais de 800 mil Tutsis e Hutus moderados tiveram a vida ceifada pelos rebeldes Hutus. O escopo secundário do TPIR é, também, assistir o processo de reconciliação nacional em Ruanda, além de manter da paz na região.

Stojanka Mirceva, em alusão à implementação de tais cortes:

O contexto político no qual quase sempre os crimes internacionais são cometidos exerce uma grande pressão no cumprimento da jurisdição nacional. Inimagináveis atrocidades que ocorreram no território da Iugoslávia e Ruanda, respectivamente, não foram peculiares somente a estes Estados, mas à comunidade internacional como um todo, portanto, justificam o estabelecimento do TPII e do TPIR. Não somente os dois Estados onde os crimes foram cometidos estão relutantes em executar a jurisdição nacional, mas também se recusam a cooperar com os tribunais, a despeito das obrigações a eles impostas pelas resoluções do UNSC (MIRCEVA, 2004, tradução nossa).

Interessante notar que tais cortes, ao contrário de seus predecessores tribunais de Tóquio e de Nuremberg, foram estabelecidos não através de processos multilaterais e internacionais de acordo, mas sim por meio de resolução do UNSC. Nas resoluções que as criam, o Conselho alerta para o fato de que as atrocidades cometidas nas ditas áreas representam ameaça para a paz internacional e a segurança, segundo o capítulo VII da Carta das Nações Unidas.

6.1 Crítica aos tribunais ad hoc do Conselho de Segurança

Para uma forte corrente de estudiosos, mais uma vez a vontade política suplanta o correto andamento da resolução de conflitos quando da criação, por parte do Conselho, de tais tribunais, os quais responderiam apenas às falhas das estruturas prévias das Nações Unidas em evitar e solucionar conflitos internacionais. Corrobora tal entendimento o internacionalista Luigi Condorelli (informação verbal) [04]. O douto professor italiano assegura que logo se percebeu ser muito alto o custo do sistema de manutenção de paz através do controle armado [05]. Assim, o Conselho de Segurança, ao perceber a impossibilidade do combate direto às infrações penais – quer seja por questões de custos, quer seja por querelas operacionais –, se direciona para o estabelecimento de uma jurisdição penal internacional, fruto de um fracasso da possibilidade de pronta ação por parte dele mesmo.

Outra crítica que se levanta diz respeito ao fato do UNSC estar ultrapassando suas competências originárias, uma vez que a Carta da ONU não faz referência alguma à dimensão penal internacional que a organização pudesse vir a assumir. Dessa feita, estaria o Conselho agindo ultra vires ao criar tribunais [06]. O Conselho replicou que poderia sim fazê-lo, já que objetivava a consecução da paz. Critica-se também o fato da justiça buscada pelas cortes estabelecidas pelo UNSC terem caráter apenas local, ou seja, olvida-se a luta por uma jurisdição mais ampla. Assim sendo, estaria o Conselho adotando uma ‘justiça seletiva’, como a denomina Cassese (2005). Observe-se o fato de não ser de interesse político das potências dominantes a instauração, com tamanha amplitude, desta jurisdição.

Dentre as várias razões das quais se pode lançar mão para explicar tal fenômeno, está o fato de todos os países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) [07] estarem intimamente ligados aos conflitos na Iugoslávia (quer seja à questão da Bósnia ou à questão do Kosovo), tendo atacado o país no afã de desmantelar o sistema supostamente perpetrador de desrespeito aos direitos humanos e de guerra. Ocorre que, agora, os Estados remanescentes da antiga Iugoslávia acusam os membros da OTAN de terem executado, em seu território, as mesmas práticas das quais os balcânicos estão sendo acusados. Dessa feita, do mesmo modo que os Tribunais de Tóquio e Nuremberg não abarcaram o conhecimento dos atos praticados pelos aliados, o TPII também não viria a englobar as supostas agressões perpetradas em território iugoslavo pelas tropas da OTAN, caso que seria levado posteriormente à Corte Internacional de Justiça.

Não obstante o sucesso atingido pelos ditos tribunais ad hoc instaurados pelo UNSC, este mesmo órgão deparou-se várias vezes importunado por problemas de ordem administrativa de suas cortes. Para Antonio Cassese,

Após a decisão de criar o Tribunal de Ruanda, que demandou muito tempo e esforço para que pudesse se estabelecer e poder funcionar, o Conselho de Segurança, de fato, chegou a um ponto de ‘fadiga de tribunais’. Assim sendo, a logística da montagem de tribunais ad hoc para a antiga Iugoslávia e para Ruanda sobrecarregou a capacidade e os recursos das Nações Unidas e consumiu o tempo do Conselho de Segurança (CASSESE, 2005, p.340, tradução nossa).

Mais uma vez, esgotou-se a vontade política que originou a nova onda de jurisdição penal internacional posterior ao final da Guerra Fria. Depois de 1994, o UNSC já não acreditava ser cabível o mesmo tipo de abordagem a outras situações que emergiam ao redor do mundo. Assim sendo, não se propôs a criação de tribunais para os conflitos surgidos, dentre outros, em Serra Leoa, no Camboja e no Timor Leste, dando-se o Conselho por satisfeito com medidas mais paliativas.


7. O CONTURBADO NASCIMENTO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

Não seria antes de 1989 que a Assembléia Geral das Nações Unidas lidaria novamente com a questão da constituição de uma corte penal internacional permanente. Para Cassese (2005), a instituição judicial vislumbrada no relatório preparado pela Comissão de Direito Internacional, em 1994, tinha em vistas atender diretamente aos anseios de alguns Estados e, em particular, das Grandes Potências. Em 1996, resolveu-se por estabelecer um Comitê Preparatório para o Estabelecimento de uma Corte Criminal Internacional (PrepCom). Após várias reuniões, chegou-se ao texto final que seria submetido à Conferência de Roma. O Estatuto provisório continha 116 artigos em 173 páginas. A implementação da justiça penal internacional é tão cercada de incertezas, receios e nuances arbitrários que, para que se tenha uma idéia, o referido texto provisório contava com algo em torno de 1300 palavras colocadas entre parênteses, guarnecidas por outras opções que as substituiriam no caso de um não-consenso quanto a seu emprego.

Durante os trabalhos do PrepCom e da própria Conferência de Roma, três principais agrupamentos de países surgiram. Pode-se asseverar que tal divisão em blocos tornou-se, seguramente, a maior e mais explícita representação da importância da vontade política nos ramos tomados pelo direito penal internacional.

O primeiro grupo se constituía de um bloco de interesses comuns, liderado basicamente por Austrália e Canadá, mas que incluía países de todas as regiões do mundo. Este grupo defendia que a corte deveria possuir ampla e automática jurisdição, promotoria independente e apta a iniciar procedimentos, além de uma larga definição do que fossem crimes de guerra. O segundo era encabeçado pelos membros permanentes do UNSC (à exceção do Reino Unido e da França, os quais se juntaram ao primeiro grupo) e, particularmente os EUA, se opunham à jurisdição automática da corte e ao poder da promotoria de iniciar, quando desejasse, os procedimentos. Não obstante, os membros deste grupo buscavam conceder extensos poderes ao Conselho de Segurança. Tal órgão deveria possuir autoridade tanto para submeter como para impedir a corte de conhecer determinados casos. Um terceiro grupo se denominou de "movimento dos não-aliados". Os países componentes deste pregavam a inclusão do ‘crime de agressão’ na jurisdição da corte vindoura, bem como, por parte de alguns, a previsão do crime de tráfico de drogas e, por parte de outros, o crime de terrorismo. Além disso, este grupo se opunha veementemente à concessão de demasiados poderes ao UNSC no tocante ao controle da corte em foco. Opunham-se ainda à ingerência da corte em assuntos relativos a crimes cometidos no âmbito de conflitos internos, além de insistir na previsão da pena de morte no estatuto da futura corte.

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Em suma, não fosse a engenhosidade dos diplomatas presentes à convenção, em especial o canadense Philippe Kirsch, não teria sido possível à Conferência adotar, por 120 votos a favor, 7 contra (EUA, Líbia, Israel, Iraque, China, Síria, Sudão) e 20 abstenções, o Estatuto do Tribunal. Visível se faz a homogeneidade do bloco de países os quais votaram contra a proposta acatada pela maioria das demais nações: de um modo ou de outro, são todos países receosos de ter seus oficiais ou mandatários-chefes enquadrados nos tipos penais da nova corte, o que se deve a atos, de conhecimento público e um tanto questionáveis, de sua política externa.


8. OS MAIS NOVOS DESAFIOS ENFRENTADOS PELA JUSTIÇA PENAL INTERNACIONAL

Finalmente foi instalado o Tribunal Penal Internacional (TPI), após a 60º ratificação de seu Estatuto pelas partes que assinaram o tratado criador do mesmo. A corte, que promete garantir maior segurança às sociedades do mundo ao assegurar a aplicação de justiça penal sem barreiras e intransigências nacionais, já encontra diversos obstáculos em seu funcionamento. Todos estes empecilhos estão, naturalmente, ligados a nuances da vontade política dos diversos atores da sociedade internacional, principalmente as grandes potências. A efeito de exemplo, os EUA, além de não ratificarem o Estatuto de Roma, colocaram em campo uma política de desmoralização do tribunal, ao ponto de exigirem, por parte do Conselho de Segurança, imunidade a todas as suas tropas em Missões de Paz das Nações Unidas (Peacekeeping Operation Troops). Dessa feita, nenhum nacional americano membro de tropas de paz das Nações Unidas poderá ser processado pelo TPI enquanto houver imunidades concedidas pelo UNSC. Como se não bastasse, os EUA ainda estão, gradualmente, implementando uma política de acordos bilaterais com os mais diversos Estados já membros do TPI, segundo a qual estes, ao assinarem tratados com os EUA, se tornam impossibilitados de entregar, à corte em foco, cidadãos americanos que tenham cometido crimes internacionais em seus territórios.

Para Stojanka Mirceva, o problema reside fundamentalmente na celeuma da ‘cooperação’ no âmbito das relações internacionais.

O TPI, apesar de baseado em tratado e voltado fundamentalmente para o fortalecimento da aplicação do direito internacional, enquanto priorizando e facilitando as jurisdições nacionais, [...] poderá encarar obstáculos relativos à cooperação dos Estados. Enquanto Estados que cooperam estarão aptos e desejosos de levar a cabo o processo de crimes internacionais em cortes domésticas, os Estados não-cooperativos recusar-se-ão a extraditar, processar e prover de evidências. Um elemento essencial para a operação eficiente da Corte será a cooperação dos Estados, uma vez que ordens e pedidos do TPI devem ser executados através de jurisdição nacional. Como todos os tratados internacionais, a implementação do Estatuto do TPI dependerá da vontade política dos Estados. Além disso, a falta de apoio universal comprometerá seriamente a Corte. Sem a cooperação de alguns dos mais poderosos Estados, não somente a eficácia desta será comprometida, mas será afetada, também, sua legitimidade internacional. Se o TPI se tornará um importante instituto na aplicação do direito internacional e se irá afetar o desenvolvimento de padrões universais e sua implementação nas legislações internacionais, ainda é questão a ser respondida pelo futuro (MIRCEVA, 2004, tradução nossa).

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Sobre o autor
Rafael Rodrigues Soares

advogado em Natal(RN)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Rafael Rodrigues. Vontade política:: determinante da evolução da jurisdição e do direito penal internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1082, 18 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8542. Acesso em: 28 mar. 2024.

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