Decretocracia e decretadura: pandemia de decretos coronavírus contaminando a democracia.

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06/10/2020 às 15:43
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A pandemia do coronavírus também contaminou a democracia, na medida em que todos os entes públicos (estados, Distrito Federal e municípios), além do governo federal, passaram a editar inúmeros decretos restritivos, contraditórios e com viés politico.

Síntese contextualizada jurídico-normativa.

Ainda no final do ano de 2019, 1 a Organização Mundial da Saúde – OMS foi alertada pelas autoridades chinesas do surgimento de inúmeros casos de pneumonia desconhecida em Wuhan, na Província de Hubei, na China. Após rigorosos estudos médicos-científicos, a OMS conclui trata-se do mortal “coronavírus-covid-19”. Dessa forma, diante da gravidade da doença e dos níveis alarmantes de rápida contaminação (à época com 118 mil infectados, em 114 países, e já com 4.291 mortos pela “covid-19”), em 11 de março de 2020 a OMS reconhece e declara o estado de Pandemia (Coronavírus, nome da família do vírus; Sars-Cov-2, nome oficial do vírus; Covid-19, nome da doença causada pelo vírus). 2

O Brasil, à primeira vista, não demorou a adotar providências logo após o conhecer o alerta do coronavírus recebido pela OMS, sobretudo na área legislativa, quando, em tempo recorde, aprovou, sancionou e publicou a Lei Federal n.º 13.979 de 06 de fevereiro de 2020. Esta Lei, segundo o seu artigo 1.º, dispõe sobre as medidas necessárias a serem adotadas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de relevância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Já o seu artigo 2.º deixa claro que as medidas estabelecidas pela lei visão proteger a coletividade. 

Ao editar a lei, portanto, o governo brasileiro demonstrou ter conhecimento integral e induvidoso da situação de grave saúde pública internacional alertada e orientada pela OMS, tanto que adotou no citado texto normativo as expressões apropriadas, como “emergência”, “importância internacional” e “coranavirus”. 3 Mas, infelizmente, a edição da norma, aliado ao alerta da OMS para os elevados números no mundo de contaminação e óbitos por causa da doença, até então conhecidos, não foram suficientes para impedir as festividades carnavalescas no país (também do carnaval), cujas quais duram quase quinze dias.

Com o aumento da contaminação e, sobremaneira, o óbito da primeira vítima do “covid-19”, cientificamente comprovado e ocorrido em 16/03/2020, 4 o Senado Federal, acolhendo a Mensagem n.º 93 de 18/03/2020 da Presidência da República, edita o Decreto Legislativo n.º 6 de 20 de março de 2020, 5 reconhecendo o “estado de calamidade pública”, em decorrência da pandemia.

O Governo Federal, por outro lado, regulamentando a Lei Federal n.º 13.979/2020, logo tratou editar Decretos (n.º 10.282 de 20/03/2020, n.º 10.292 de 25/03/2020), 6 para regular os serviços públicos e as atividades consideradas como essenciais. E é justamente por conta dessa “competência federal absoluta” exercida – de regular nacionalmente as medidas de distanciamento social e tais serviços e atividades para os 5.570 municípios e as 27 unidades federativas – que estes mencionados entes públicos (artigo 1.º, caput, da CF) se insurgiram para garantir a “competência concorrente” com o fim de regulamentar os serviços públicos, as atividades essenciais, medidas de distanciamento social, fechamento de comércio e outras restrições.

Essa relevante questão jurídica chegou ao Supremo Tribunal Federal - STF via Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 6.341, promovida pelo Partido Democrático dos Trabalhadores (pdt), a qual, incialmente, teve deferida a liminar em 24 de março para autorizar a competência concorrente. 7 Posteriormente, em 15 de abril, o Plenário virtual da Suprema Corte referendou a liminar deferida, aguardando-se o julgamento de mérito.

A motivação e o fundamento adotados pelo STF são no sentido de que as medidas adotadas pelo Governo Federal na Medida Provisória 926/2020, visando o enfrentamento do coronavírus, não afastam a competência concorrente nem a adoção de providência normativas e administrativas pelos demais entes públicos. A Corte Suprema asseverou ainda que a União também pode legislar sobre as disposições previstas na Lei Federal 13.979/2020, observando, contudo, a autonomia dos estados, Distrito Federal e municípios.

Oportuno também mencionar que o Parecer da Procuradoria Geral da República na ADI, datado de 04 de abril, opinando pelo indeferimento da medida cautelar – por não violar a autonomia política dos demais entes e não usurpar a competência material comum para gerir a saúde –, alertando para a existência de vários decretos estaduais já editados, por vezes até contraditórios, estabelecendo condições distintas para os serviços essenciais.

 

Decretocracia e decretadora: “pandemia de decretos coronavirus” contaminando a democracia

Inicialmente, para uma melhor compreensão desse enunciado, é fundamental que expliquemos no que consiste este “poderoso” Decreto na esfera da administração pública, mesmo que de forma sintética, começando pela legislação.

Esse instrumento jurídico - que se tornou “pandemia” nacional – está previsto nos artigos 59, inciso VI, 8 e 84, inciso IV, da Constituição Federal. Da mesma forma, as constituições dos estados e as leis orgânicas dos municípios também o recepcionou. Por exemplo, a Constituição do Estado de São Paulo dispôs sobre o Decreto nos seus artigos 21, inciso IV, e 47, inciso III; 10 ao passo que a Lei Orgânica do Munícipio de São Paulo também o recepciona nos seus artigos 34, inciso III, e 69, inciso III. 11

No plano acadêmico ou da doutrina administrativista, entende-se por Decreto a forma que se revestem os atos individuais ou gerais, oriundos do Chefe do Poder Executivo, no caso, Presidente da República, Governador e Prefeito. 12  Além disso, por conta da pandemia, o Decreto produz efeitos gerais, tendo ele caráter regulamentação ou de execução no regular cumprindo da Lei de regência. Por outras palavras, o Decreto tem por fim primordial especificar e regulamentar leis gerais ou abstratas, dando-lhe maior precisão e concretude, sem, no entanto, alterar o conteúdo legal. A título de exemplo, citemos os sucessivos decretos editados pelo Governo Federal com o fim de detalhar a Lei Federal n.º 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento).

Nesse sentido, portanto, norteiam-se os decretos editados pelos nominados entes públicos, tanto que logo no início da redação desses atos administrativos são mencionadas as normas regentes da pandemia (a Lei Federal n.º 13.979/2020 e Decreto Legislativo n.º 06/2020, portarias do Ministério da Saúde) e os decretos anteriores editados pelos mesmos entes. A partir da competência corrente, segue-se a seguinte regra: em se tratando de município, inicia-se a construção textual do decreto com a citação das normativas federais e estaduais específicas, observando-se, por fim, os próprios decretos por aquele anteriormente editados. Já os estados, observam as normas federais e as próprias.           

Oportuno, ainda, salientar que a expressão “pandemia de decretos coronavirus”, sob a nossa ótica, adequa-se a todos aqueles atos administrativos editados pelos sobreditos entes públicos fundados na Lei Federal n.º 13.979/2020 e no Decreto Legislativo n.º 06 de 20/03/2020 (reconhecimento do estado de calamidade pública por causa da pandemia). E essa denominação adotada se justifica por existirem no Brasil (i) 5.570 munícipios e (ii) 27 unidades federativas, com 211 milhões de habitantes, segundo os dados oficiais do IBGE, 13  o que nos conduz a concluir: na cabeça de cada governador e de cada prefeito “existe um Decreto”.

É bem verdade que antes do evento pandemia também havia uma edição excessiva de decretos, mas nada comparável à quantidade editada nesse período pandêmico e tendo este motivo (a pandemia) como causa. Alguém poderá indagar que esses “atos administrativos em excesso eram necessários” e a resposta, na sequência, vem na forma de pergunta: todos entes públicos precisavam realmente editar decretos sobre a matéria e de forma reiterada?

É possível depreender-se, por vezes, sobretudo no período de eleição municipal – a mais importante do país, por que todos vivemos em munícipios e são estes possuem a obrigação constitucional de prestar e organizar os serviços públicos de interesse local (artigo 30, inciso V, da CF) –, que o escopo de determinados atos administrativos ganham contornos eminente “políticos”, consistente  na recepção  de interesses de grupos ou setores econômicos regionais em detrimento de outros.  

Por meio da edição de decretos, fecha-se parte do comércio e garante-se que a outra parte permaneça trabalhando, surgindo daí as inúmeras e absurdas contradições facilmente notadas e denunciadas pela imprensa. Além disso, o Poder Judiciário tem sido muito acionado para decidir sobre as ilegalidades constantes nos decretos, assim como para determinar a abertura ou o fechamento de parte do comércio e até a medida mais extrema, como, por exemplo, o “lockdawn” (confinamento), o que, igualmente, é contestável. 14

Nesse contexto, é notório o prejuízo da “segurança jurídica” – enquanto princípio e garantia constitucional –, conceituado por Humberto Ávila “como sendo uma norma-princípio que exige dos três poderes da República a adoção de comportamentos que contribuam mais para a existência, em prol dos cidadãos e na sua perspectiva, de um estado de confiabilidade e de calculabilidade jurídica, com base na cognoscibilidade, por meio da controlabilidade jurídico-racional das estruturas argumentativas reconstrutivas de normas gerais e individuais, como instrumento garantidor do respeito à sua capacidade”. 15

Para Chaïm Perelman, todavia, de fato nenhum jurista, sobremaneira àqueles legitimados a dizer o direito, tal como concebido atualmente, “pode negar que a segurança jurídica constituiu um valor fundamental do direito”. 16

Entretanto, sabemos todos que o ser humano não é um ser datado de plena racionalidade, de modo que as suas ações e comportamentos do cotidiano estão para além dos motivos da razão. Sobre esse pensar, assevera Fábio Ulhoa Coelho, 17 que a decisão jurídica, seja ela proferida por juízes ou administradores humanos, “também é largamente influenciada pelas emoções, instintos ou por forças que habitam o inconsciente”. Por outras palavras, prosseguindo no pensamento do autor citado, como o interlocutor é sempre uma pessoa, as suas escolhas nem sempre estarão alicerçadas tão somente na sua capacidade intelectual, mas também por sua história psicológica, nos seus sentimentos, postura de vida e grau de autoestima.

Os expressivos números geográficos e estatísticos do IBGE permite-nos compreender a real dimensão surrealista da quantidade de decretos editados pelos entes públicos, nos últimos seis meses de vigência do Decreto Legislativo que reconhece o estado de calamidade pela pandemia/Covid-19.

 Ainda não temos como afirmar se exatamente todos estados e municípios editaram decretos com base na pandemia; no entanto, acreditamos ser indubitável que os estados, as suas capitais, as cidades das regiões metropolitanas e os grandes municípios laçaram mão desse “providencial” ato administrativo, excessivamente, inclusive quando determinado decreto estadual, por exemplo, já disciplinara a matéria.

Ora, se o decreto estadual sobre a pandemia produz efeitos jurídicos nos seus respectivos municípios, a nosso sentir, a necessidade de determinado município lançar mão de ato administrativo de mesma natureza legal e idêntica matéria deve estar racionalmente justificado, evitando-se ao máximo a edição de outro ato somente com vista a “medir forças”, no “jogo de quem pode mais” nesta competência concorrencial.

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Não se intenciona, de forma alguma, que o município renuncie ou deixe de exercer a sua prerrogativa constitucional de editar o sobredito decreto, quando realmente necessário, mas tem como finalidade alerta-lo sobre a real necessidade da edição de tal ato. Aliás, essa é uma indagação feita por Dennis Lloyde em sua obra de folego “A ideia da lei”, onde ele inicia o capítulo de abertura do livro questionando, fundamentadamente, se “A lei é necessária? 18

Produzir esses questionamentos internos, no âmbito da administração municipal, sobre a racional necessidade da edição de atos normativos, sobremaneira quando já existem outros regulamentando a matéria, é uma providência política virtuosa a ser observada por todos entes públicos, diante do princípio constitucional da Eficiência (artigo 37, caput, da CF).

Inflar juridicamente o município com “decretos coronavirus”, em especial, apenas para concorrer quanto à competência ou somente editá-los por simples demonstração de “poder/força”, como já assinalado, notadamente em ano eleitoral nos municípios, também contraria os princípios constitucionais da legalidade e moralidade, previstos no aludido artigo da Constituição Federal.            

As vaidades 19 políticas, das quais também padecem os prefeitos e governadores de variadas siglas partidárias, aliadas aos distintos interesses e ideologias, infelizmente se sobrepõe a tão desejada racionalidade ou lógica jurídica, deixando-se de lado o próprio juramento constitucional e os objetivos fundamentais da Constituição Federal, previstos no seu artigo 3.º, incisos I a IV, 20 mais especificamente, a “promoção do bem estar de todos”, “a construção de uma sociedade livre, justa e solidária”, além da “redução das desigualdades sociais e regionais”.

Percebe-se, portanto, que impera a decretocracia ou a decretadura no atual sistema jurídico, “contaminado” pelos perceptíveis reflexos da pandemia, instalando-se assim o estado de exceção durante esse período, o qual é caracterizado pela anormalidade constitucional, a partir de uma provável conjuntura de normalidade. Nas palavras de Giorgio Agamben, “segundo opinião generalizada, realmente o estado de exceção constitui um ponto de desequilíbrio entre o direito público e fato político”. Enfatiza, ainda, o mesmo autor que a sua pesquisa tem como propósito explorar “essa terra de ninguém”, situada “entre direito público e fato político e entre ordem jurídico e a vida”. 21

Nessa linha de pensamento de Agamben, a expressão “terra de ninguém” por ele adotada é apropriada para o atual cenário político-normativo do país, isso porque este vem sendo regido pelos incontáveis atos administrativos (decretos) – influenciados pela disputa eleitoral vindoura –, os quais ocasionam não só a já mencionada insegurança jurídica, mas também restringe ou reduz um conjunto relevante de liberdades constitucionais dos cidadãos.

A denominada “terra ninguém” se caracteriza ainda pela quantidade absurda de decretos (federal, estadual e municipal), cujos quais o cidadão precisa observar e cumprir para não ser sancionado na esfera administrativa, cível e até penal, em caso de “crime de desobediência” (artigo 330 do Código Penal). 22 Portanto, sobre a mesma matéria, coronavirus/Covid-19, o cidadão tem sido regido pelos decretos dos três níveis de governos sobreditos. E isso se agrava muito mais quando ele mora em um município e trabalha em outro.

Mas, o que fazer então quando os decretos são conflitantes acerca da mesma matéria? Um autoriza e outro desautoriza. Qual deve ser aplicado ou prevalecer? Segue-se a regra federativa, hierárquica ou as reais condições sanitárias descritas no decreto da municipalidade são predominantes? Prevalece, mesmo na dissonância normativa, a competência dos munícipios em detrimento dos demais entes? O cidadão brasileiro, em regra, ainda não possui, minimamente, um conteúdo jurídico-argumentativo para desvendar ou impugnar o conflito entre atos normativos, sendo, por isso, obrigado a cumpri-los.

E, diante da conflitância entre os decretos federal e estadual, muitos municípios tem optado por seguir ou acolher, no todo em parte, o conteúdo daqueles que lhes convém, principalmente quando se trata da retomada das atividades econômicas, como ocorreu, por exemplo, no Estado São Paulo. 23 Aliás, tem sido uma constante o decreto estadual vedar a abertura do comércio não essencial e o decreto municipal permitir a abertura de todas as atividades comerciais, desde que observem as conhecidas cautelas sanitárias mínimas (álcool em gel, medição da temperatura corporal, observância de determinada porcentagem de pessoas no interior da loja) .

O Poder Judiciário, todavia, tem sido acionado para dirimir não só o conflito e a legalidade dos conteúdos de cada decreto – exceto a questão da competência concorrente dos entes públicos, já decida pelo STF – como também para corrigir os excessos e as omissões. A título de exemplo, a Justiça estadual de Paulista suspendeu, liminarmente, os efeitos dos “decretos de reabertura gradual do comércio” nos municípios de São Bernardo do Campo e Diadema, justificando que (i) tais entes públicos descumpriram orientações do decreto estadual, no caso o “Plano São Paulo” do Governo do Estado 24 (“estratégia para vencer a Covid-19, com base na ciência e na saúde”), (ii) e que eles não podem impor medidas menos restritivas ao enfrentamento da pandemia. 25

Dessa forma, observando-se também esses exemplos citados acima, é evidente que a decretocracia e a decretadura estão regendo, predominantemente, a República Federativa do Brasil, em absoluta substituição e paulatina desconstituição do regime democrático vigente. Aliás, durante a vigência do estado de calamidade pública, as ações de muitos dos representantes eleitos e demais agentes públicos, em regra, deixam transparecer que a Democracia não é mais o “Poder do Povo” (demos + kratos), como leciona Simone Goyard-Fabre, 26 consistente em um regime fundado na autoridade do governo popular, garantindo assim a presença dos governados no exercício do poder.       

O Decreto não foi instituído pelo legislador constituinte para substituir a Constituição, a leis e a vontade popular, sobremodo durante o período oficial de calamidade pública. O reconhecimento, por lei, do atual estado de calamidade obriga os governantes e todos agentes públicos a nortearem-se pela Constituição Federal e seus princípios e não a ignorarem, com o fim antidemocrático de constituir seus “microssistemas normativos internos” locais ou regionais, acreditando que tudo podem com o poder de editar decreto.

É a Constituição quem nos rege, direciona e nos conduz no enfrentamento e superação também dessa crise pandêmica. Esse pensamento constitucional, no entanto, foi muito bem aplicado pelo o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, 27 ao afirmar que “não há saída para a crise do país fora da Carta Magna”, além de ter, novamente, asseverado que a Constituição do Brasil “é a mais civilizada, a mais humanista e a mais democrática do mundo”.

A pandemia do coronavirus/Covid-19, infelizmente, também tem sido muito utilizada para justificar a edição de decretos e demais atos administrativos –  monocráticos e próprios do Poder Executivo – para se atingir outras finalidades, indiretas ou diversas e nada democrática, como se tivesse sido suspensas as funções constitucionais do Poder Legislativo e o regular e detalhado processo democrático de produção das leis.

Constata-se essa “intenção” de ilegalidade e imoralidade, em especial, na fala do atual Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em reunião do Presidente da República com os seus ministros, em 22/04/2020, quando ele disse: “Precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa porque só fala de Covid, e irmos passando a boiada e mudando todo regramento e simplificando normas”. 28

Outro ato administrativo, aliás, que também tem sido muito editado pelos entes públicos, sobretudo para dispensar o processo licitatório, é justamente o “Aviso de Dispensa de Licitação”, ante o decreto emergencial reconhecedor do estado de calamidade pública, o que torna célere a contratação de serviços e aquisição de produtos específicos para o combate ao Covid-19, efetuando prontamente os entes públicos o pagamento dos valores vultosos dessas compras públicas.

Por isso, certamente será preciso analisar os eventuais casos suspeitos para se verificar a suficiência ou não do “fato que gerou a situação emergencial” alegada para a consequente dispensa da licitação, consoante já decidido pelo Tribunal de Contas da União ao afiram que: “a mera existência de decreto municipal caracterizando a situação do município como emergencial não é suficiente para enquadrar as contratações nos requisitos da Lei 8.666/1993 para dispensa de licitação. Era de se esperar que os pareceristas verificassem, no caso concreto, se os fatos que permeavam as dispensas de licitação se amoldavam, realmente, a alguma das hipóteses de dispensa da Lei de Licitações, o que não ocorreu”. 29

     

Conclusão

O reconhecimento pelo STF da competência concorrente entre os entes públicos, sobremodo para adoção de providências normativas e administrativas no combate ao coronavírus, não pode ser interpretado pelos governantes e agentes públicos como uma “licença ilimitada” que a tudo normatiza e regular por decreto”, completamente desvinculada dos princípios, direitos e garantias constitucionais.

Entretanto, a edição de decretos, especialmente, pelos 5.570 municípios e as 27 unidades federativas, além do Governo Federal, resultou na “pandemia de decretos coronavírus” contaminador também da Democracia, na medida em que foram instalados “microssistemas normativos decretocráticos”, temporários e regionais, com o escopo primordial de alijar da discussão os parlamentos dos três níveis de governos.

Do outro lado, a decretadura se reveste justamente dessa “ausência ou suspensão democrática provisória”, provocada pela torrencial edição (sempre monocrática) de decretos restritivos ou impeditivos do exercício de direitos dos cidadãos (liberdade de locomoção, exercício do trabalho, direito ao lazer, etc.) e conflituosos com outros decretos emanados dos demais entes da Federação.      

Novamente, é necessário enfatizar que a crítica aqui exercida não é contrária à edição de decretos pelos aludidos entes públicos com o fim legal e humanitário de enfrentar o coronavírus/Covid-19, como tem sido justificado, senão trazer a lume os excessos, as incongruências e as instabilidades provocados pela “pandemia de decretos coronavírus” com relação à Democracia.

O cidadão chega à condição surreal de consultar o conteúdo e a vigência do decreto editado para sair de casa e até mesmo trabalhar, pois o que é permitido num determinado município ou estado é proibido em outro (aberturas de escritórios e de atividades comerciais, por exemplo), alegando-se, em regra, o estado de calamidade pública decorrente da pandemia.

Dialogar é a essência vital da Política, com o intuito precípuo de melhorar a vida na pólis (a busca da vida boa/feliz) e a própria condição humana. É a hegemonia do interesse público global, regida pela racionalidade, em manifesto detrimento do individualismo administrativo e o do interesse grupal ou partidário retrogrado.

Jugar ou decidir com razoabilidade e proporcionalidade, observando, obrigatoriamente, todos os princípios constitucionais regedores da administração pública, é o ideal perseguido e a ser alcançado, incessantemente, pelos governantes, assim como é o dever dos entes públicos promover o bem estar de todos.           

A pandemia que ameaça as nossas vidas, tendo a Covid-19 matado quase um milhão de pessoas, logo será superada pela Ciência. É o que afirmam, com segurança, os cientistas que trabalham na invenção de uma vacina. Mas todos os brasileiros e agentes públicos precisam ter em mente que, até que seja descoberta a vacina adequada, a devida observância da Constituição Federal é o nosso exclusivo referencial de segurança jurídica e manutenção do Estado Democrático e de Direito.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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