Tráfico de pessoas para fins sexuais no contexto brasileiro.

Uma análise sobre a efetividade das medidas de prevenção e combate baseada no II plano nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas

Exibindo página 1 de 4
09/10/2020 às 11:11
Leia nesta página:

Observada a severa violência que o crime de tráfico de pessoas representa para a dignidade da pessoa humana, esse trabalho objetiva apresentar uma breve contextualização dos desafios do Brasil na construção de políticas públicas de enfrentamento.

INTRODUÇÃO

O crime de tráfico de seres humanos se trata de um problema mundial, principalmente por se configurar numa inconteste violação do princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que extingue os direitos de liberdade e segurança das vítimas, utilizando-as como objetos, mercadorias para exploração. Ademais, caracteriza-se, também, pela exploração da vulnerabilidade humana para extrair dela os seus lucros.

Primeiramente, tal violação do princípio da dignidade da pessoa humana justifica a escolha do tema do presente trabalho, por ser o tráfico de pessoas o mais grave desrespeito aos direitos humanos que pode ser perpetrado contra uma pessoa. Em segundo lugar, justifica-se o tema pela preocupação por ser, o Brasil, o país da América Latina que mais exporta mulheres, crianças e adolescentes para o tráfico sexual, além de um intenso tráfico interno.

Este trabalho, portanto, tem por objetivo central apresentar uma breve contextualização dos desafios e perspectivas do Estado brasileiro na construção de políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas, a partir de uma análise acerca da efetividade das medidas de prevenção e combate do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, com ênfase ao tráfico para fins sexuais.

Contudo, sentiu-se a necessidade de abordar questões gerais relativas ao crime de tráfico de seres humanos, em si. Desta feita, em termos de estrutura, o presente trabalho está dividido em três capítulos e as considerações finais.

O primeiro capítulo traz um panorama histórico acerca do surgimento do tráfico e, consequentemente, da criação dos primeiros tratados relacionados ao tema. Aborda-se o Protocolo de Palermo como marco internacional decisivo para atuação dos Estados membros a respeito da problemática e, também, as sucessivas alterações da legislação brasileira.

O segundo capítulo visa apresentar a análise do perfil sociológico da vítima do tráfico. Vale ressaltar que o tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual tem como principais vítimas mulheres e meninas. Além disso, outros fatores como a pobreza, a exclusão social, a desigualdade entre Estados, o crime organizado, a globalização, dentre outros, contribuem para a prática do tráfico. Sublinha-se, também, acerca da violação da dignidade da pessoa humana.

Já no terceiro capítulo, tem-se como intuito a apresentação das políticas brasileiras de enfrentamento ao tráfico de seres humanos e a análise da efetividade da política atual proposta para o enfretamento deste problema através do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, instituído pelo Ministério da Justiça, observando seus objetivos, destinados à prevenção e repressão do tráfico de pessoas no território nacional, à responsabilização dos autores e à atenção às vítimas, principalmente no tocante á sensibilização e mobilização da sociedade para prevenção da ocorrência, dos riscos e dos impactos causados pelo tráfico de pessoas.

Por fim, vale salientar que os passos e procedimentos metodológicos do presente trabalho foram estruturados a partir das análises bibliográficas, de legislações e pesquisas na internet.


1. SOBRE O TRÁFICO DE PESSOAS.

1.1. Panorama Histórico Acerca Do Tráfico De Pessoas

O tráfico de seres humanos é uma prática muito antiga, existindo desde a Antiguidade Clássica, primeiramente na Grécia e, posteriormente, em Roma. Nesse período, o tráfico se dava com o fim de se obter prisioneiros de guerra para serem utilizados como escravos (GIORDANI apud ARY, 2009, p. 22).

Consoante Curtin (apud ARY, 2009, p. 22) por volta dos séculos XIV ao XVIII, com o advento da colonização europeia nas Américas, o tráfico ganhou natureza de prática comercial, através do tráfico negreiro. Os negros eram designados como força de trabalho gratuito, de forma desumana e de uso irrestrito.

Isto posto, essa relação de domínio de uns sobre outros embasou o processo evolutivo da história das grandes civilizações, as quais usaram o trabalho escravo e dependeram dele para a execução das mais diversas tarefas. De acordo com Bonjovani (apud PINTO, 2016, p. 15), o regime escravocrata se fortaleceu fundamentado pela violência exploratória, de modo a sustentar dominações e montagem de comércio, que justificava o lucro ou a exploração em escala progressiva ampla e globalizante.

No ano de 1807 o tráfico negreiro foi caracterizado pelos ingleses como ilegal. No ano que se seguiu, essa prática degradante, devido a um ascendente movimento humanitário, passou a ser considerada um crime contra a humanidade. Aproximadamente no ano de 1900 surgiu a utilização da expressão “tráfico” como uma referência ao que ocorria quando havia uma “troca de escravos brancos”. (PEARSON apud FÉLIX e LORO, 2015, p. 652).

No Brasil, a escravidão foi marcada principalmente pelo uso de escravos vindos da África, porém, antes disso, é preciso ressaltar que muitos indígenas foram vítimas desse regime. Os Portugueses utilizavam a escravidão dos índios para garantirem mão de obra farta, produtiva e barata, além de viabilizar a exploração do agressivo ambiente, como ensina Freyre (2002, p.166 apud MORAES, 2008, p. 25).

A mão de obra indígena foi um fator de contribuição decisivo no desenvolvimento econômico da colônia e o escravismo praticado levou a um efetivo genocídio do indígena de proporções incomparáveis (CUNHA apud MORAES, 2008, p. 28). Diante disto, a solução encontrada pelos colonizadores foi buscar a mão de obra no continente africano.

Capturados nas mais diversas situações, como guerras tribais e escravização por dívidas não pagas, os escravos africanos provinham de lugares como Angola e Guiné. Eram negociados com os traficantes (negros, também) em troca de produtos como: fumo, armas e aguardentes e transportados nos chamados navios negreiros (MORAES, 2008, p. 29).

Quando se fala em tráfico negreiro, a referência é sempre o trabalho forçado, seja doméstico, seja na agricultura, ou outra forma de esforço braçal.

A partir dessa espécie de tráfico (escravidão), surge uma perspectiva diferente do trabalho braçal: a violação sexual das negras, que se dava especialmente por parte dos seus senhores.

Freyre (apud RODRIGUES, 2012, p. 50) apresenta alguns aspectos da prostituição das escravas.

Havia os senhores que enfeitavam as negras com joias de ouro, rendas e roupas finas e as ofereciam aos clientes. Outros obrigavam as negras, muitas delas ainda crianças, a se oferecer nas ruas e nos portos, onde desembarcavam marinheiros com toda espécie de moléstia, sobretudo a sífilis. Havia ainda as que ficavam expostas nas janelas, seminuas, nas zonas de meretrício. Comum a todas elas era que a receita dos serviços prestados pertencia aos senhores. Alguns tiravam a própria subsistência desse mercado. Outros o tinham como mais uma fonte de renda.

Conforme afirma Gorender (apud RODRIGUES, 2012, p. 51), a prostituição das escravas era uma prática comum no Brasil. Com a expansão do sistema escravista, houve também o aumento da exploração de negras como prostitutas.

A Lei Áurea foi assinada no dia 13 de maio de 1888, extinguindo oficialmente a escravidão no Brasil. Porém, apesar da garantir o direito de liberdade, a abolição da escravidão não modificou as condições socioeconômicas dos ex-escravos, que continuaram na pobreza, sem escolaridade, sofrendo com as discriminações, conta Moraes (2008, p. 36).

Isto posto, Moraes (2008, p. 39) deslinda que ex-escravas negras e filhas de brancos pobres subsistiam através do comércio de seus próprios corpos, satisfazendo jovens brancos e o sistema de castas, adotado pela forma de colonização, onde a mulher branca só poderia ter relações sexuais após o casamento e, além disso, cabia-lhe, apenas, o papel de esposa e mãe da prole legítima.

Passado o período de abolição dos escravos, no final do século XIX, uma nova preocupação surge, dando início a discussões políticas sobre a recente espécie de trafico de pessoas: a questão do tráfico de escravas brancas, visando a prática da prostituição.

Segundo explica Lená Medeiros de Menezes (apud RODRIGUES, 2012, p. 54), a exploração sexual de mulheres não era uma atividade nova durante o século XIX e início do século XX, mas havia adquirido uma nova caracterização “à medida que o capitalismo e a expansão europeia haviam redesenhado o mundo e a vida urbana, promovendo a internacionalização dos mercados e a expansão dos prazeres”. Nesse cenário, a mulher transformou-se em produto de exportação da Europa para outros continentes.

Os Estados se viram obrigados a se reunirem para a elaboração de acordos, objetivando medidas preventivas e punitivas acerca da crescente prática do tráfico internacional e nacional de mulheres visando a exploração sexual.

O reflexo disso foi o surgimento dos primeiros tratados e convenções acerca do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual. Em 1904, a mulher tornou-se objeto das questões políticas e sua vulnerabilidade deu ensejo ao Acordo para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas. Hoje bastante criticado por se limitar a um gênero – feminino – e a um segmento único – mulheres brancas. O século XX deixou um legado inegável de injustiças e desigualdades (HOBSBAWM apud PINTO, 2016, p. 17). Tal acordo foi promulgado no Brasil pelo Decreto n. 5.591, de 13-7-1905.

Após a Primeira Guerra Mundial, foi assinada, em 1921, a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças, promulgada no Brasil pelo Decreto n. 23.812, de 30-1-1934. (RODRIGUES, 2012, p. 56).

Durante as três décadas seguintes diversos tratados foram assinados, todos com o mesmo objetivo: a punição acerca do tráfico de mulheres e crianças.

Em 1949, foi assinada a Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio, promulgada no Brasil pelo Decreto n. 46.981, de 8-10-1959. Castilho (2008), em sua pesquisa, clarifica que a Convenção de 1949 veio valorizar a dignidade e o valor da pessoa humana, como bens afetados pelo tráfico, o qual põe em perigo o bem-estar do indivíduo, da família e da comunidade, onde a vítima pode ser qualquer pessoa, independentemente de sexo e idade.

Uma atuação positiva é observada, a partir da década de 90, na tentativa de pôr a termo a ação do crime organizado transnacional, advinda da sociedade civil, da Organização das Nações Unidas (ONU) bem como de diversos países.

Em 1994, Resolução da Assembleia Geral da ONU definiu o tráfico como o movimento ilícito ou clandestino de pessoas através das fronteiras nacionais e internacionais, principalmente de países em desenvolvimento e de alguns países com economias em transição, com o fim de forçar mulheres e crianças a situações de opressão e exploração sexual ou econômica, em benefício de proxenetas, traficantes e organizações criminosas, assim como outras atividades ilícitas relacionadas com o tráfico de mulheres, por exemplo, o trabalho doméstico forçado, os casamentos falsos, os empregos clandestinos e as adoções fraudulentas (CASTILHO, 2008).

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Discorre, novamente, Castilho (2008) que uma Plataforma de Ação foi aprovada, em Beijing (1995), através da Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, em que um dos objetivos, além da eliminação do tráfico de mulheres, era prestar assistência às vítimas da violência derivada da prostituição e do tráfico. Igualmente, foi reconhecido o conceito de prostituição forçada como forma de violência e violação aos direitos humanos, diferentemente da prostituição livremente exercida.

Conforme dados da OIT (2005), na década de 90, o tráfico de pessoas passa a ter visibilidade, sobretudo quando, através de relatórios e pesquisas, denuncia que 700 mil pessoas estavam sendo traficadas no mundo, em sua maioria mulheres, adolescentes e crianças para fins de exploração sexual comercial, laboral e tráfico de órgãos. Trata-se, portanto, segundo as Nações Unidas, da “epidemia do século XXI”; o mundo foi desafiado a buscar possíveis soluções.

A Assembleia Geral da ONU criou um comitê intergovernamental para elaborar uma convenção internacional global contra a criminalidade organizada transnacional e examinar a possibilidade de elaborar um instrumento para tratar de todos os aspectos relativos ao tráfico de pessoas, em especial de mulheres e crianças. O comitê apresentou uma proposta intensamente discutida durante o ano de 1999, que foi aprovada como Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Palermo, 2000) (CASTILHO, 2008).

Nesse diapasão, a ONU objetivou compromissar os Estados membros para a criação de políticas públicas que visassem o enfrentamento ao tráfico nacional e internacional de pessoas.

1.2. A Convenção de Palermo e o Tráfico De Pessoas Para Fins de Exploração Sexual.

A Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional (mais conhecida como Convenção (ou Protocolo) de Palermo) define, em um de seus Protocolos Adicionais, o Tráfico de Pessoas como:

o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos (OIT, 2006).

Analisando tal definição, insta destacar que, inicialmente, o controle jurídico internacional tinha como objeto de proteção (vítimas) as escravas brancas e, posteriormente, as mulheres e crianças. Após a criação do Protocolo de Palermo, as vítimas são consideradas todos os seres humanos. Ademais, o Protocolo buscou garantir que as vítimas fossem tratadas como pessoas que sofreram graves abusos, obrigando os Estados membros a criação de serviços de assistência e mecanismos de denúncia.

Até 1949 as Convenções tinham como preocupação a repressão do tráfico para fins de prostituição. O Protocolo admite a cláusula para fins de exploração, o que engloba qualquer forma de exploração da pessoa humana, com propósitos ilícitos.

Houve intenso debate sobre o tema do consentimento da vítima, mas chegou-se a conclusão que configurada a finalidade de exploração de uma pessoa, há violação à dignidade humana como expresso na Convenção de 1949. O Estado não pode chancelar o consentimento (CASTILHO, 2008).

Nesse sentido, o Protocolo definiu o consentimento como irrelevante para a configuração do tráfico, em se tratando de crianças e adolescentes (com idade inferior a 18 anos). Nos demais casos, o consentimento só deverá ser considerado como relevante (ou seja, capaz de excluir a imputação do crime), em casos em que comprovadamente não tenha ocorrido “ameaça, coerção, fraude, abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade” ou nos casos em que haja “a oferta de vantagens para quem tenha autoridade sobre outrem” (BRASIL, 2013d).

Como se pode perceber, apesar do Protocolo de Palermo não ter iniciado as ações e o esforço de regulação do tráfico de pessoas, certamente é um marco internacional decisivo no tema, por ser o mais completo, e também o que melhor oferece diretrizes para os Estados membros elaborarem legislações internas. Contudo, é possível apontar alguns pontos falhos no Protocolo ao observar que não especifica nenhum mecanismo de enforcement – capacidade de obrigar as partes a seguir o acordo estabelecido. Não há, por exemplo, nenhum sistema de monitoramento do cumprimento do Protocolo estabelecido pela Convenção de Palermo (ARAÚJO, 2015, p. 50).

Acerca do tráfico de seres humanos, insta salientar a contribuição da globalização para o aumento do fluxo migratório, ao longo da história da humanidade, e, consequentemente, o crescimento do tráfico.

Em conformidade com os estudos elaborados pelo Ministério da Justiça (BRASIL, 2013e), o movimento de pessoas entre países e continentes se apresenta como uma característica marcante ao longo dos séculos. Tal fluxo apresenta crescimento diante do modelo de globalização instituído mundialmente, sendo esta uma das causas do tráfico de pessoas.

Hoje a globalização põe à disposição dos traficantes aspectos como a infra-estrutura dos transportes e das comunicações, influenciando, decisivamente, para a estruturação e caracterização dos fluxos migratórios internacionais, permitindo uma modificação no alcance espacial e temporal das sociedades, que passaram a se conectar facilmente com comunidades distantes, em curtos espaços de tempo.

No Brasil, conforme Leal e Leal (2002) explicita, o tráfico de pessoas para fins sexuais nunca foi considerado um problema de governo, até que a Organização dos Estados Americanos recomendou uma Pesquisa sobre o Tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil (PESTRAF), a partir da qual ficou evidenciada a existência deste problema em todo território brasileiro.

No entanto, tal problemática começa a ser tratada como política pública no Brasil após o Congresso Nacional aprovar, por meio do Decreto Legislativo nº 231, de 29 de maio de 2003, o texto do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças – Protocolo de Palermo, que entrou em vigor para o Brasil em 28 de fevereiro de 2004 (BRASIL, 2004).

A participação do Brasil nas redes internacionais do tráfico de pessoas para tais fins é favorecida pelo baixo custo operacional, pela existência de boas redes de comunicação, de bancos e casas de câmbio e de portos e aeroportos, pelas facilidades de ingresso em vários países sem a formalidade de visto consular, pela tradição hospitaleira com turistas e pela miscigenação racial (OIT, 2006).

Destarte, um ambiente que favorece o livre e rápido trânsito de capitais, bens e serviços, também propicia e facilita o comércio de seres humanos, em escala global.

Implica, ainda, considerar o crescente volume de ofertas e oportunidades amplamente divulgadas em uma sociedade que se vê crescendo de maneira gritante os níveis de desigualdade. Este processo torna os mais pobres objetos de consumo dos mais ricos. No caso do tráfico de pessoas em particular, essa relação é verificada na análise dos indicadores sociais dos países receptores de pessoas traficadas e daquelas onde ocorre o aliciamento, notadamente diverso quanto a seus processos de desenvolvimento econômico, social e cultural.

Além disso, o tráfico mundial de pessoas para exploração sexual é uma indústria muito lucrativa. Segundo o relatório da ONU, este tipo de tráfico movimenta anualmente US$ 32 bilhões em todo o mundo. O UNODC estima que apenas o tráfico internacional de mulheres e crianças movimente, anualmente, de US$ 7 bilhões a US$ 9 bilhões, perdendo, em lucratividade, somente para o tráfico de drogas e para o contrabando de armas. (BUENO, 2014)

O quadro desolador que configura a prática do tráfico de pessoas representa uma grave ameaça à paz e à prosperidade o que fomenta a necessidade cada vez mais intensa de reunião de esforços institucionais de enfrentamento ao problema.

Como resultado disso, após o advento do Protocolo de Palermo, vários países alteraram a sua legislação sobre o tráfico de pessoas, ou criaram novos dispositivos ou mesmo normas inteiras para tratar da matéria (RODRIGUES, 2012, p. 74).

1.3. Legislação Brasileira

O Código Penal de 1890 foi o primeiro a contemplar o tráfico de pessoas para fins sexuais, porém de forma equívoca. O dispositivo que tratava da matéria era o art. 278, localizado no Capítulo III – Do lenocínio do Título VIII – Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor:

Art. 278. Induzir mulheres, quer abusando de sua fraqueza ou miséria, quer constrangendo-as por intimidações ou ameaças a empregarem-se no tráfico da prostituição; prestar-lhes, por conta própria ou de outrem, sob sua ou alheia responsabilidade, assistência, habitação e auxílios, para auferir, direta ou indiretamente, lucros desta especulação: Penas – de prisão celular por um a dois anos e multa de 500$000 a 1:000$000 (RODRIGUES, 2012).

Costa (2008, p. 96) ilustra que o dispositivo penal do Código de 1890 faz menção ao tráfico de mulheres e não de pessoas, como o atual, isso porque na época em que esse diploma legal estava em vigor, o Brasil apresentava um alto índice de caftismo, nome que foi dado ao tráfico de mulheres brancas.

Diante das contradições e erros presentes no Código Criminal de 1890, como exemplo a expressão “Induzir mulheres [...] a empregarem-se no tráfico da prostituição”, que na verdade quem se empregava no tráfico não era a mulher, que era a vítima ou objeto deste, mas sim o traficante; entre outras, provocaram a atualização do texto penal brasileiro referente ao combate ao tráfico de mulheres, declara Rodrigues (2012, p. 95).

Nesse espeque, a Lei n. 2.992, de 25-9-1915, conhecida como Lei Mello Franco, alterou a redação do art. 278. do Código Penal de 1890, passando o delito a ser tratado em seu § 1º, sem a utilização do vocábulo “tráfico”. Além de aumentar a pena de prisão para o delito, de 1 a 2 anos para de 1 a 3 anos, essa lei é expressa na questão do consentimento, ignorado apenas no caso da menor. O texto foi ratificado pela Consolidação das Leis Penais de 1932 (RODRIGUES, 2012, p. 96).

Acrescenta Costa (2008, p. 99) que o Congresso Nacional da República dos Estados Unidos do Brasil resolveu modificar o nome do Título VIII para “Da Corrupção de Menores; Dos Crimes contra a Segurança da Honra e Honestidade das Famílias e do Ultraje Público ao Pudor”, acrescentando, portanto o crime de corrupção de menores.

Somente no ano de 1940, o Código Penal de 1890 saiu de cena, dando lugar a um novo diploma legal, o Código Criminal de 1940 (Decreto-Lei n° 2.848/40), que continua, ainda hoje, sendo utilizado, contudo o número de alterações sofridas é grande. De acordo com a versão original do Código de 1940, tráfico seria:

Tráfico de mulheres

Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro:

Pena - reclusão, de três a oito anos.

§ 1º Se ocorre qualquer das hipóteses do parágrafo 1º do art. 227: Pena - reclusão, de quatro a dez anos.

§ 2º Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude, a pena é de reclusão, de cinco a doze anos, além da pena correspondente à violência.

§ 3º Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa de cinco contos a dez contos de réis (COSTA, 2008).

O Código Penal de 1940 manteve sua redação original até o ano de 2005, quando foi alterado pela Lei n. 11.106, modificando o Capítulo V, do Código Penal, tratando de tráfico internacional de pessoas (e não de mulheres) e adicionando disposições relativas ao tráfico interno (isto é, no âmbito do território nacional) de pessoas (BRASIL, 2005). Em 2009 sofreu outra alteração, agora pela Lei n. 12.015.

No título dedicado aos crimes contra a dignidade sexual, com nova redação dada pela Lei 12.015/2009, tipifica o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual: no art. 231, trata do tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual e no art. 231–A trata do tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual (BRASIL, 2013a, CAPEZ, 2012).

Após a supracitada Lei, o crime de Tráfico de Pessoas passou a ser considerado crime contra a Dignidade Sexual, de modo que, no Brasil, o consentimento da vítima para o tráfico não exclui a responsabilidade dos agentes. Destarte, a vítima não pode dispor desta esfera, visto serem direitos indisponíveis e inalienáveis, pois representam a proteção da própria dignidade humana (CASTILHO, 2006).

Ante o exposto, o Código Penal brasileiro, de 1940, vem sofrendo sucessivas alterações, de tal forma que afetaram seu caráter orgânico. Resultado disso é o número de infrações penais definidas em leis especiais, as quais superam as do Código Penal.

Nesta monta, frente à dimensão do problema (tráfico), tais mudanças, ainda que relevantes, são pequenas. Isto é deduzido diante das dificuldades obtidas pelos legisladores brasileiros para implementar uma norma que reitere os termos definidos no Protocolo de Palermo, ou ainda que cubra juridicamente as práticas relacionadas ao tráfico, de forma a intensificar as ações de prevenção e combate, visto que esta prática vem sendo cada vez mais observada.

Sobre a autora
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Monografia apresentada à Sociedade de Ensino Universitário do Nordeste - SEUNE, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos