Resumo: O presente trabalho visa analisar a recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) com o enfoque na prescrição das ações de ressarcimento ao erário, tema este de grande relevância jurídica, em especial quanto aos seus efeitos nos processos que tramitam nos Tribunais de Contas. Por tal razão, propomos responder os principais questionamentos que surgiram após essa decisão, coadunando esses institutos (prescrição e ressarcimento ao erário) com a realidade e peculiaridades nos processos de controle de externo.
Palavras-chave: Prescrição. Imprescritibilidade. ressarcimento ao erário. Dano ao erário. Tribunais de contas. Tema 899 STF.
Trata-se do Tema de Repercussão Geral nº 899, cujo assunto em discussão foi a “Prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas .” O processo que ensejou o exame de mérito da repercussão geral (leading case) é o Recurso Extraordinário nº 638.886, destacando-se abaixo a ementa do acórdão:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. REPERCUSSÃO GERAL. EXECUÇÃO FUNDADA EM ACÓRDÃO PROFERIDO PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. PRETENSÃO DE RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. ART. 37, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRESCRITIBILIDADE.
1. A regra de prescritibilidade no Direito brasileiro é exigência dos princípios da segurança jurídica e do devido processo legal, o qual, em seu sentido material, deve garantir efetiva e real proteção contra o exercício do arbítrio, com a imposição de restrições substanciais ao poder do Estado em relação à liberdade e à propriedade individuais, entre as quais a impossibilidade de permanência infinita do poder persecutório do Estado.
2. Analisando detalhadamente o tema da “prescritibilidade de ações de ressarcimento”, este SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL concluiu que, somente são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato de improbidade administrativa doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa – Lei 8.429/1992 (TEMA 897). Em relação a todos os demais atos ilícitos, inclusive àqueles atentatórios à probidade da administração não dolosos e aos anteriores à edição da Lei 8.429/1992, aplica-se o TEMA 666, sendo prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública.
3. A excepcionalidade reconhecida pela maioria do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL no TEMA 897, portanto, não se encontra presente no caso em análise, uma vez que, no processo de tomada de contas, o TCU não julga pessoas, não perquirindo a existência de dolo decorrente de ato de improbidade administrativa, mas, especificamente, realiza o julgamento técnico das contas à partir da reunião dos elementos objeto da fiscalização e apurada a ocorrência de irregularidade de que resulte dano ao erário, proferindo o acórdão em que se imputa o débito ao responsável, para fins de se obter o respectivo ressarcimento.
4. A pretensão de ressarcimento ao erário em face de agentes públicos reconhecida em acórdão de Tribunal de Contas prescreve na forma da Lei 6.830/1980 (Lei de Execução Fiscal).
5. Recurso Extraordinário DESPROVIDO, mantendo-se a extinção do processo pelo reconhecimento da prescrição. Fixação da seguinte tese para o TEMA 899: “É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas”.
(RE 636886, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 20/04/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-157 DIVULG 23-06-2020 PUBLIC 24-06-2020) (grifo nosso)
A partir de então, o julgado vicejou grande discussão no meio jurídico, principalmente de profissionais e estudiosos que atuam na seara processual das Cortes de Contas.
Os principais questionamentos que identificamos são:
De acordo com a decisão, a leitura que deve ser dada ao art. 37, § 5º da Constituição Federal é que a prescrição deve ser considerada como regra, até mesmo nos casos de pretensão de ressarcimento ao erário?
O STF definiu objetivamente a aplicação da tese da prescritibilidade das “ações” de ressarcimento ao erário que correm “dentro” dos Tribunais de Contas?
Existe prazo prescricional, definido em lei, para a busca de ressarcimento ao erário em processos de controle externo?
Segundo a decisão, não compete aos Tribunais de Contas a análise de elementos subjetivos de dolo ou culpa na conduta dos agentes?
A decisão traz algum indicativo de impacto nos processos de controle externo? Caso positivo, os Tribunais de Contas podem tomar alguma medida?
Para o melhor estudo da situação posta, analisaremos cada um dos 5 (cinco) itens da ementa de forma separada.
1. A regra de prescritibilidade no Direito brasileiro é exigência dos princípios da segurança jurídica e do devido processo legal, o qual, em seu sentido material, deve garantir efetiva e real proteção contra o exercício do arbítrio, com a imposição de restrições substanciais ao poder do Estado em relação à liberdade e à propriedade individuais, entre as quais a impossibilidade de permanência infinita do poder persecutório do Estado.
Este item inaugural do decisum lembra, de forma clara, que a prescrição deve ser tida como regra no Direito Brasileiro, em homenagem a princípios basilares da Constituição da República: a segurança jurídica e o devido processo legal.
A prescrição, para Pontes de Miranda2, é “a exceção, que alguém tem, contra o que não exerceu, durante certo tempo, que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação”. De acordo com Clóvis Beviláqua3, é “uma regra de ordem, de harmonia e de paz, imposta pela necessidade da certeza das relações jurídicas”.
Leonardo Carneiro da Cunha4 chama atenção que “entre os doutrinadores brasileiros estabeleceu-se o critério segundo o qual a prescrição consistiria na perda ou extinção do direito de ação. Na verdade, a prescrição apenas atinge a eficácia da pretensão e da ação .” Em complemento, o autor enfatiza que, consumada a prescrição, “o direito subjetivo mantém-se incólume, mas não pode mais ser exigido da parte contrária”.
Assim, há de se diferenciar os institutos da prescrição e da decadência, pois este consiste na perda do direito potestativo (o direito em si), fulminando também o direito a pretensão, além do que, ao contrário da prescrição, que só é admissível em virtude de lei, a decadência pode decorrer da lei, de testamento e contratos. A civilista Maria Helena Diniz traz, de forma didática, cita um rol de diferenças entre os institutos:
1) A decadência extingue o direito e indiretamente a ação; a prescrição extingue a ação e por via obliqua o direito;
2) O prazo decadencial é estabelecido por lei ou vontade unilateral ou bilateral; o prazo prescricional somente por lei;
3) a prescrição supõe uma ação cuja origem seria diversa da do direito; a decadência requer uma ação cuja origem é idêntica à do direito;
4) a decadência corre contra todos; a prescrição não corre contra aqueles que estiverem sob a égide das causas de interrupção ou suspensão previstas em lei;
5) a decadência decorrente de prazo legal pode ser julgada, de oficio, pelo juiz, independentemente de argüição do interessado; a prescrição das ações patrimoniais não pode ser, ex oficio, decretada pelo magistrado;
6) a decadência resultante de prazo legal não pode ser enunciada; a prescrição, após sua consumação, pode sê-lo pelo prescribente;
7) só as ações condenatórias sofrem os efeitos da prescrição; a decadência só atinge direitos sem prestação que tendem à modificação do estado jurídico existente.
(DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 17. ed., São Paulo: Saraiva, 2001, v. 1, p. 271)
Portanto, a ideia de prescrição, grosso modo, serve para trazer a segurança jurídica nas relações obrigacionais, de modo a evitar a eternização da pretensão de exigir e/ou punir (jus persequendi e/ou o jus punitionis).
No tema em questão, o STF apõe a tese de que a prescrição é necessária, a fim de que o Estado esteja sujeito à limitação temporal para exercer a sua ação de direito material, ou seja, cobrar, perante o órgão competente, o cumprimento da obrigação devida por outrem.
2. Analisando detalhadamente o tema da “prescritibilidade de ações de ressarcimento”, este SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL concluiu que, somente são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato de improbidade administrativa doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa – Lei 8.429/1992 (TEMA 897). Em relação a todos os demais atos ilícitos, inclusive àqueles atentatórios à probidade da administração não dolosos e aos anteriores à edição da Lei 8.429/1992, aplica-se o TEMA 666, sendo prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública.
Nesta segunda parte, o STF expôs outros temas de repercussão geral que tratam da temática da “prescritibilidade de ações de ressarcimento”.
No que concerne ao Tema 666 (STF. Plenário. RE 669069/MG, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 03/02/2016), a Suprema Corte definiu que “ é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil.”
Naquela oportunidade (2016) o STF já possuía o entendimento de que, na leitura conjunta entre os § 4º e 5º, do art. 37. da CFRB, a prescrição não atingia a pretensão de ressarcimento ao erário causado por ato de improbidade administrativa (ainda não fazendo clara distinção entre a modalidade culposa e dolosa do art. 10. da Lei nº 8.429/1992).
Vale dizer: quando do julgamento que fixou o Tema 666, o relator, em seu voto, tratou do prazo prescricional de 3 anos, com base no art. 206, § 3º, V, do Código Civil, assim como havia sido firmado na decisão do Tribunal de origem (TRF 1ª Região), mas o Acórdão não se manifestou expressamente quanto ao prazo prescricional.
O Superior Tribunal de Justiça5 tinha posicionamento de adoção do prazo prescricional de 05 (cinco) anos, de acordo com o art. 1º do Decreto 20.910/1932.
No tocante ao Tema 897 (STF. Plenário. RE 852475/SP, Rel. orig. Min. Alexandre de Moraes, Rel. para acórdão Min. Edson Fachin, julgado em 08/08/2018), o STF assentou entendimento que “ são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa.”
Naquela ocasião, o STF rememorou que “a prescrição é instituto que milita em favor da estabilização das relações sociais”, mas que a própria Constituição trouxe “uma série de exceções explícitas no texto constitucional, como a prática dos crimes de racismo (art. 5º, XLII, CRFB) e da ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV, CRFB).”
Há aqui de se fazer um cotejo que nos conduz ao raciocínio aplicado pelo STF. Os dois crimes (ilícitos penais), expressos na Carta Magna como imprescritíveis, têm a característica essencial da intenção, do dolo. No mesmo diapasão, o Supremo Tribunal, em complemento ao entendimento que já vinha defendendo há um certo tempo6, no Tema 897 foi mais incisivo, fixando a tese de imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato tipificado na Lei de Improbidade Administrativa (ilícito civil), desde que, também, na modalidade dolosa.
É importante registrar que essa tese foi firmada com a maioria de somente 6 (seis)7 contra 05 (cinco)8 ministros, ou seja, com a diferença de somente 1 (um) voto, sendo que, os Ministros Luiz Fux e Roberto Barroso inicialmente votaram em favor da prescritibilidade, mas depois acabaram seguindo o Relator.
De toda sorte, nos parece claro que o dolo é, na visão majoritária do STF, um elemento fundamental à aplicação excepcional da imprescritibilidade.
3. A excepcionalidade reconhecida pela maioria do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL no TEMA 897, portanto, não se encontra presente no caso em análise, uma vez que, no processo de tomada de contas, o TCU não julga pessoas, não perquirindo a existência de dolo decorrente de ato de improbidade administrativa, mas, especificamente, realiza o julgamento técnico das contas à partir da reunião dos elementos objeto da fiscalização e apurada a ocorrência de irregularidade de que resulte dano ao erário, proferindo o acórdão em que se imputa o débito ao responsável, para fins de se obter o respectivo ressarcimento.
O item 3 da decisão traz conclusões imprecisas e equivocadas quanto às competências dos Tribunais de Contas. Segundo o STF “no processo de tomada de contas, o TCU não julga pessoas, não perquirindo a existência de dolo decorrente de ato de improbidade administrativa, mas, especificamente, realiza o julgamento técnico das contas à partir da reunião dos elementos objeto da fiscalização”.
Primeiramente, o ofício do controle externo nos ensina que, em linhas sucintas, o “julgamento de contas” (lato sensu) consiste na verificação da regularidade na atuação de “qualquer pessoa física ou jurídica , pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos 9 ”.
Ou seja, o que se analisa é a conduta de pessoas que, por força de lei, tenham o dever de prestar contas, a fim de responsabilizá-las, caso constatada a sua atuação de forma irregular. Na prática, é por esse motivo que, quando o Tribunal de Contas julga as contas dos órgãos e das entidades da administração indireta, eventual apuração de irregularidade ou imputação de débito recai sobre os seus administradores e não sobre a Administração Pública, senão resultaria em dupla punição ao erário (uma pela própria má-gestão e outra pelo julgamento das contas).
Quanto à análise subjetiva da conduta de que tem o dever de prestar contas, a decisão do Supremo foi específica quanto a impossibilidade do Tribunal de Contas aferir dolo decorrente de ato de improbidade administrativa, isso porque somente o Poder Judiciário, enquanto titular da jurisdição, pode processar e julgar (dizer em definitivo) os ilícitos previstos na lei nº 8.429/1992.
No que se refere aos processos de controle externo, basta verificar que a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, em seu art. 22, versa que “na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”. Mais adiante, em seu art. 28, a LINDB dispõe expressamente que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro .”
Desta feita, sendo a “norma das normas” (LINDB) de aplicação geral, não restam dúvidas que o Tribunal de Contas não está impedido de avaliar a responsabilidade, sob o prisma subjetivo. E nem poderia estar, pois, em Direito Público, a regra da responsabilidade objetiva é fruto da noção de danos causados pela Administração a um particular10.
Outra justificativa utilizada pelo Relator, Min. Alexandre de Moraes, é que os processos de contas não são cobertos por um completo devido processo legal. Citamos as passagens do julgado:
Em face de sua própria natureza, esses exames e análises das contas não observam as mesmas garantias do devido processo judicial, além de não preverem e não permitirem o contraditório e ampla defesa efetivos, anteriormente à formação do título executivo. (...)
(...) o TCU não perquire nem culpa, nem dolo decorrentes de ato de improbidade administrativa, mas, simplesmente realiza o julgamento das contas à partir da reunião dos elementos objeto da fiscalização e apurada a ocorrência de irregularidade de que resulte dano ao erário, proferindo o acórdão em que se imputa o débito ao responsável, para fins de se obter o respectivo ressarcimento. Ainda que franqueada a oportunidade de manifestação da outra parte, trata-se de atividade eminentemente administrativa, sem as garantias do devido processo legal.
No procedimento instaurado pelo TCU, não se imputa a existência de ato de improbidade, nem tampouco se abre a possibilidade do fiscalizado defender-se, com todas as garantias do devido processo judicial, no sentido de eximir-se de dolo ou mesmo culpa.
(...) não se apurou, mediante o devido processo legal com a presença de contraditório e ampla defesa a existência de ato doloso de improbidade administrativa.
(...)
Em face da segurança jurídica, portanto, nosso ordenamento jurídico afasta a imprescritibilidade das ações civis patrimoniais, quanto mais, na presente hipótese onde o título executivo foi formado perante a Corte de Contas, sem a realização do devido processo legal perante órgão do Poder Judiciário. (grifo nosso)
Esse entendimento, concessa venia, é equivocado e, com base nas razões expostas no voto, despido de comprovação fática. Acreditamos que não há a necessidade, nesse trabalho, de aprofundarmos conceitualmente esse tema da cláusula do devido processo legal, insculpida no art. 5º, LIV e LV da CRFB11.
Com relação à sua aplicação aos processos submetidos aos Tribunais de Contas, basta dizer que, como muito bem esclarecido por Valdecir Pascoal12, nos processos de controle externo a ampla defesa e o contraditório devem ser observados, salvo na primeira fase de instrução processual, uma vez que se trata da fase de fiscalização e levantamento de informações pela Unidade Técnica (mediante auditorias e inspeções) para a elaboração de um Relatório Técnico. Vale dizer: as Unidades Técnicas não se prestam a acusar, ou a defender, ou, muito menos, a julgar quem quer que seja, mas tão somente para instruir os autos, com base num procedimento de fiscalização (=investigação) realizado com independência e autonomia.
Tal procedimento é semelhante a um inquérito policial, já tendo o STF se manifestado que “o inquérito policial é peça meramente informativa, não suscetível de contraditório, e sua eventual irregularidade não é motivo para decretação de nulidade da ação penal 13 ”. Ainda como explica Pascoal14, após exarado o Relatório Técnico, com a “sugestão” de ter havido qualquer tipo de irregularidade e apontados os responsáveis, aí, sim, dá-se início à ampla defesa e ao contraditório, com a possibilidade de produção de provas, de requerer diligências e perícias, e de interpor recursos das decisões do Tribunal.
Como podemos ver, não há o que se falar em incompletude do devido processo legal nos processos de controle, a não ser que a justificativa fosse a sua aplicabilidade tão somente aos processos judiciais, o que contraria o firme posicionamento da doutrina e da jurisprudência, inclusive do STF. Outrossim, os Tribunais de Contas são plenamente competentes para verificar a existência de dolo na conduta dos agentes sujeitos aos processos de controle externo, sendo tal elemento fundamental para o julgamento, principalmente enquanto parâmetro para responsabilização e dosimetria de penalidades.