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Norberto Bobbio:

perfil intelectual do jurista e do teórico da democracia

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2. Bobbio, o teórico da filosofia do direito

No tempo em que lecciona em Camerino, Sienne e Pádua e depois em Turim, Bobbio dedica-se, primacialmente, ao estudo e ao ensino da teoria geral do direito e do sistema jurídico, bem como ao jusnaturalismo e positivismo jurídicos que eram influentes nas faculdades de direito, patente, em obras como Teoria dell’ordinamento giurídico, Turim, Giappichelli (1955), Teoria della norma giurídica, Turim, Giappichelli (1958), Giusnaturalismo e positivismo giurídico, Milão, Commmunità (1965), Dalla struttura alla funzione. Nuovi studi de teoria del diritto, Milão, Commmunità (1977), Dirritto e potere. Saggi so Kelsen, Nápoles, (1992). [42]

A concentração nas questões da filosofia do direito [43] representa uma opção disciplinar relativamente à gestão da cátedra que recebe de Gioene Solari, mas responde igualmente à decisão de abandonar o comprometimento político, na sequência da dissolução do Partido de Acção, dois anos depois da Libertação, incapaz de resistir à tenaz prefigurada, à esquerda, pelo Partido Comunista e, à direita, pelo Partido da Democracia-Cristã.

A emergência do totalitarismo em países com a Itália, a Alemanha e a Espanha ao longo da década de 20 (a que se juntaria Portugal na década seguinte) veio pôr em causa as limitações conceptuais da filosofia do direito tradicional que se abstinha de questionar a «não-razoabilidade» dos regimes nazi e autoritários do Sul da Europa. O positivismo jurídico deixou colocar fora da discussão do sistema jurídico o interrogar da legitimidade de quem faz a lei e quais os critérios de estabelecimento do poder. Recusando as relações entre o direito e os fenómenos sociais, o positivismo jurídico ateve-se ao carácter lógico-formal da norma jurídica para esgotar as questões da validade e eficácia dos comandos normativos.

A ambição do positivismo jurídico foi «assumir uma atitude neutra diante do direito, para estudá-lo assim como é e não como deveria ser: isto é uma teoria e não uma ideologia». [44] Mas não o conseguiu totalmente, já que ele parece não só um certo modo de entender o direito (de destacar-lhe os elementos constitutivos) como também um certo modo de querer o direito» [45] Afirma-se, segundo Bobbio, não só como uma teoria mas como uma ideologia [46] e isso é patente desde logo em Jeremy Bentham na sua Introdução aos princípios da moral e da legislação (1823) na sua crítica radical ao sistema da common law e o apelo à sua codificação consubstanciando as suas concepções ético-políticas.

Também nos juristas franceses da escola da exegese que propugnavam uma interpretação do código napoleónico artigo por artigo em comentário, sem cuidar de saber do seu elemento sistemático, adaptando por esta via interpretativa o direito escrito ás concepções predominantes em França.

Finalmente, nos juspositivistas alemães da segunda metade do século XIX que sofreram a influência da concepção hegeliana do Estado ético, quer-se dizer o Estado que não guarda exclusivamente um valor técnico mas tem um valor ético porquanto é a manifestação suprema do Espírito no seu devir histórico e assim, é ele mesmo o fim último a que os indivíduos estão subordinados. Concepção essa que foi chamada de estatolatria já que preconiza como que uma adoração do Estado.

O desvio dos positivistas conduziu a uma reacção que se veio sentir por duas vias: a corrente do realismo jurídico que critica os aspectos teóricos do juspositivismo afirmando que não representa a realidade do direito [47]; a revigorada corrente do jusnaturalismo que critica os aspectos ideológicos do juspostivismo pondo a nu as consequências perniciosas e práticos da doutrina.

Norberto Bobbio incorpora-se na corrente dos filósofos do direito que identificam no corpo doutrinal três áreas de discussão. Uma área ontológica, da Teoria do Direito, que se preocupa com o direito com existe, procurando alcançar uma compreensão consensualizada dos resultados da Ciência Jurídica, da Sociologia Jurídica, da História do Direito e outras abordagens complementares. Uma área metodológica que compreende uma Teoria da Ciência do Direito e que recai no estudo da metodologia e dos procedimentos lógicos usados na argumentação jurídica e no trabalho de aplicação do Direito. Uma área filosófica materializada numa Teoria da Justiça como análise que determina a valoração ideológica da interpretação e aplicação do Direito, no sentido da valorização crítica do direito positivo.

Ou seja a valorização crítica do direito implica não bastar dizer o que é o direito (raciocínio ontológico), nem como é de facto o direito positivo circunstanciado (abordagem da ciência jurídica) mas como deve ser o direito com expressão de uma eticidade jurídica imanente a qualquer sociedade equilibrada e harmoniosa patente na valorização (e referenciamento finalístico) de metavalores com a liberdade, a igualdade, a justiça, a paz ou a segurança.

Sobre o plano das escolhas metodológicas importa assinalar que Bobbio foi dos primeiros jurisconsultos a acolher a ideia kelseniana de uma «doutrina pura do direito» decantada das impurezas do real e do social, na perspectiva que sendo o Estado a organização da força monopolizada e exprimindo-se através de um ordenamento coactivo – o ordenamento específico normativo que é o Direito – Direito e Estado são unum et idem e aquilo a que se chama o poder político não é mais que um poder que torna real um ordenamento normativo e faz deste ordenamento um quadro efectivo e não imaginário.

Doutrina que segundo o ideal kelseniano deve passar a ser o centro da atenção dos filósofos do direito, libertos dos constrangimentos oriundos dos jusnaturalismo e de Kant. Recorde-se que Kant previa que o conhecimento científico do direito emanava do imperativo categórico, um postulado da razão pura prática. Esse postulado fundacionava o conceito de direito num ideal de convivência das liberdades, já que Kant pensava o homem com um ser autónomo e livre, do ponto de vista moral, para realizar uma escolha que será boa se for puramente moral. Mas como isso é praticamente impossível, já que a vontade humana sendo influenciável pela consciência moral também o pode ser pela intuição psicológica ou pelas paixões, o homem está a um passo de atingir a maioridade e libertar-se das tutelas se levar a bom termo a resolução da tensão entre o ideal (a escolha puramente moral) e a realidade (a panóplia das escolhas reais). Esta tensão corresponde no pensamento iluminista ao progresso moral do homem como membro de uma comunidade. Daí a célebre definição kantiana do direito como:

O conjunto das condições nas quais o arbítrio de cada um pode conciliar-se com o arbítrio dos outros segundo uma lei universal de liberdade. [48]

A incerteza da norma jurídica colocada pelo cepticismo dos jusnaturalistas (e neokantianos) conduziu à reacção idealista ao positivismo jurídico e ao relativismo que possibilitou a institucionalização de regimes ditatoriais.

É neste contexto que pode ser interpretada a doutrina de Kelsen e valorizada com uma reacção ao relativismo e um contributo novo para a filosofia do direito. Se o problema da fundamentação do direito é a questão central da filosofia do direito, e Kelsen acredita-o, «a norma fundamental definida pela Teoria Pura do Direito (a Reine Rechtslehre) não é um direito diferente do direito positivo; ela é apenas o fundamento da sua validade, a condição lógico-transcendental da sua validade e como tal não tem nenhum carácter ético-político, mas só teórico-gnoseológico. [49]

Mas em que se materializa a doutrina pura do direito?

Antes de tudo na identificação do Estado com o direito ou «na dissolução daquele neste»; [50] em segundo lugar na exclusão da noção de direito (e, portanto, de Estado) de qualquer referência a valores, em especial aos de justiça, tidos por irracionais; último, a elaboração de um modelo normativo geral válido para todos os ordenamentos jurídicos. Kelsen parte do pressuposto de que não existem valores absolutos que fundem o direito, logo só é possível reconhecer a validade de valores relativos porquanto a validade do direito positivo – ao contrário do que pretendem os neo-jusnaturalistas – não pode estar dependente da sua relação com a justiça (e seus princípios) para ser eficaz, isto é sancionatória e coactiva. Não há, nem pode haver, justiça absoluta para um conhecimento racional uma vez que se trata de um problema insolúvel para o conhecimento humano e como tal deve ser eliminado do domínio do conhecimento.

O maior reconhecimento da posição estratégica assumida pela teoria pura do direito na história da «jurisprudência teórica» veio dos adversários mais irredutíveis. [51] Para os jusnaturalistas a tese de Kelsen havia-se transformado no protótipo do positivismo jurídico; para os realistas, a essência do formalismo hipócrita; para os juristas soviéticos a essência da jurisprudência burguesa.

Bobbio revê-se, parcialmente, no positivismo kelseniano, na cientificidade da estrutura dos sistemas jurídicos, na sua força coactiva como característica fundacional a um mesmo tempo do Direito e do Estado. É por essa via e através de Hobbes que Bobbio se conduzirá, mais tarde, à procura de uma teoria geral do poder e da política e chegará a Carl Schmitt. Mas em segundo lugar, Bobbio revê-se na filosofia da história kantiana, na Metafísica dos Costumes, na Constituição para uma Paz Perpétua, que funciona para ele como uma referência crítica como um indicativo para a reformulação dos sistemas jurídicos isto é para apresentar a sua Teoria da Justiça. Bobbio procura assim, como fará outras vezes noutros domínios da reflexão, encontrar uma solução sincrética, mais que sintética, para a revitalização de uma filosofia do direito adequada aos problemas do século XX e que é estrutural à sua teoria procedimental da democracia.

Bobbio é, ainda, dos primeiros autores da Europa do Sul a dedicar especial atenção à análise da linguagem [52], da lógica e da filosofia analítica e ao seu impacto nas ciências sociais e no direito, seguindo uma corrente que será importante não só na Alemanha mas também em Itália.

Mas já implicitamente no seu primeiro campo de análise [53], a teoria do direito, desenha-se o seu interesse por uma intrínseca - primeiro pedagógica, depois científica – ligação do direito à filosofia [54] e à análise da problemática da justiça que esmiuça mais tarde na releitura comentada dos grandes clássicos da filosofia e especialmente de Kant, Hobbes, Locke, Rousseau e Hegel.

Sublinha, a propósito, Alfonso Ruiz Miguel em Filosofia de Direito de Norberto Bobbio: [55] «as preocupações filosóficas de Bobbio, como tudo, não se centram nunca de forma perdurável na filosofia pura, em sentido estrito. Exercitam-se mais numa filosofia aplicada ao direito e à sociedade – tanto nos aspectos epistemológicos como nos metodológicos e os de conteúdo – extraída de certas filosofias genéricas em voga na época. Tal é o caso das suas tentativas de aplicação ao estudo do direito e da sociedade, da filosofia idealista italiana de Croce e Gentile [56] ou da fenomenologia de Husserl [57] e, mais tarde, a recepção crítica do existencialismo como filosofia social. De facto, estas três grandes correntes filosóficas – idealismo italiano, fenomenologia e existencialismo – constituem as principais influências sentidas por Bobbio no primeiro decénio da sua actividade académica, que começa em 1934.»

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3. Bobbio e o debate da história das ideias

A segunda dimensão do seu trabalho intelectual é o seu contributo para a história das doutrinas políticas, que parte de uma revisita dos grandes clássicos da filosofia [58], especialmente Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, Hegel, mas também Platão, Maquiavel, John Stuart Mill, através da qual palmilha o percurso principal do seu trabalho intelectual que é a definição de uma Teoria Geral da Política, tentada fragmentariamente em ‘’Estado, governo e sociedade. Para uma Teoria Geral da Política’’ e por razões não totalmente perceptíveis, não continuada [59].

Bobbio sublinha logo a abrir o texto ‘’Estado, poder e governo’’ que reproduz o verbete «Estado» que escreveu para a Enciclopédia Einaudi, que as duas principais fontes para o estudo do Estado são a história das instituições políticas e a história das doutrinas políticas, sendo a primeira a que tem uma projecção mais tardia e a segunda a adoptada desde sempre por filósofos e cientistas políticos «tanto que os ordenamentos dos vários sistemas políticos se tornam conhecidos através da reconstrução que deles fizeram os escritores». Hobbes – afirma - foi identificado com o Estado absoluto, Locke com a monarquia parlamentar, Montesquieu com o Estado limitado, Rousseau com a democracia, Hegel com a monarquia constitucional [60]. Poderíamos talvez acrescentar Marx e Lenine com o socialismo, Gramsci com o socialismo italiano, Tocqueville, Kelsen, Schmitt, Russell, ou Dahrendorf com a democracia representativa contemporânea.

É esta, aliás, a via escolhida para a explicitação do seu próprio pensamento filosófico. Bobbio não reclama para si uma originalidade pioneira dos seus escritos teóricos à custa do pensamento filosófico anterior como era tradicional nos clássicos. [61] Considera-se mais um continuador, um exegeta do melhor que existe na tradição liberal e humanista, mais que o fundador (ou descobridor) da teoria definitiva (desconfia, aliás, das teorias e teorizadores originais) A cuidadosa exegese dos clássicos para dos seus comentários extrair ilações para o presente desenvolve-a, cautelosa e sistematicamente, em Locke e il diritto naturale, Turim, Giappicheli (1963) [62], Diritto e Stato nel pensiero di Emmanuel Kant, Turim, Giappichelli (1969) [63], Thomas Hobbes, Turim, Einaudi (1989) [64], Studi Hegeliani, Turim, Einaudi (1981) [65] e paulatinamente densifica o seu pensamento e estrutura-o. Acresce-lhe uma compilação Scritti su Gramsci, Milão, Feltrinelli (1990) [66] que é conjuntamente com os seus escritos avulsos dedicados a Marx e ao socialismo [67], uma espécie de ajuste de contas com Marx. Não nega ao filósofo judeu os contributos para a teoria historicista da história ou para a análise do papel das classes sociais. Recusa-lhe, contudo, a inevitabilidade dos seus prognósticos, a sua distorção da Filosofia da História de Hegel (e no fundo, a maioridade perante o grande autor alemão), a incapacidade de teoricizar uma sociedade cujo nascimento sobre os escombros da anterior anuncia apocalípticamente. Caustica, também, a subserviência dogmática e cega que vislumbra nas fileiras socialistas, nos pretensos ‘’salvadores de Marx’’ [68].

Como Charles S. Maier sublinha no seu preâmbulo às séries da Giovanni Agnelli Foundation para a Princeton University Press, [69] o trajecto de Bobbio no estudo das ideias políticas exemplifica um percurso tipicamente europeu: Bobbio começa como estudante de filosofia e direito, o que significa para «a sua geração que completou os estudos durante as guerras, uma educação muito menos técnica que a conduzida nas universidades americanas». As faculdades de direito acolhiam os historiadores das instituições públicas e os filósofos políticos e os departamentos de ciência e história política enquadravam os especialistas na história das doutrinas políticas e dos partidos. Norberto Bobbio combina estas diferentes perspectivas com um comentário geral, circular, fortemente moral, dos temas que escolhe para analisar, designadamente à luz da experiência democrática italiana do pós-guerra de que ele é, ao mesmo tempo «um crítico público» e um «divulgador», mas, sobretudo, do apelo chão aos clássicos.

Neste ponto, há uma continuidade de estilo – afectiva chama-lhe Bobbio [70] – em relação ao seu mestre e antecessor na cátedra de Turim, Giele Solari. Solari era, reconhece Bobbio, um historiador de filosofia, as suas obras principais – L’idea individuale nel diritto privado (1911) e Storicismo e diritto privato (1915) – foram de introdução histórica. [71] São várias as monografias sobre filósofos que aquele faria publicar: Grócio, Espinosa, Locke, Kant, Hegel, Rosmini. Se Bobbio, como referimos, segue na sua senda, revisitando Kant, Hobbes, Locke, Hegel, a certo ponto como na encruzilhada das veredas o caminho de ambos diverge: Bobbio seguindo as tendências mais vangardistas do seu tempo, designadamente dos estudos jurídicos anglo-saxónicos, abraça durante quase toda a década de 50 à temática da natureza da ciência do direito e dos problemas metodológicos e da linguística, aquilo que designa na sua Autobiografia, como a lógica das proposições normativas ou uma lógica deôntica e fica «marcado» durante o resto da sua vida intelectual por essa escolha.

Esta percepção da imperatividade do método e do raciocínio analítico e linguístico sobre a substancialidade das ciências sociais (e desde logo da ciência do direito) é um alicerce estrutural do seu método de análise e de escrita e um dos passadiços na conversação com os clássicos e consigo próprio (e com os leitores) que marcam, de forma inconfundível, o estilo de Bobbio, relembrando a conhecida máxima de Ionesco: só as palavras contam o resto é só conversa.

Se a década de 50 é marcada pelos estudos metodológicos, a década seguinte tem como marco essencial o início das suas aulas de Ciência Política, em 1962, que o vão levar uma década depois a substituir Alessandro Passerin d’Entrèves na cátedra de Filosofia Política na inaugurada Faculdade de Ciência Políticas de Turim. É desses tempos o trabalho de sistematização de alguns dos seus livros mais interessantes sobre os filósofos clássicos (Kant, Hobbes, Locke, Hegel) como também um intenso trabalho ensaístico e de comentário sobre autores italianos como Mosca, Pareto, Gramsci, Croce, Gobetti, ou mesmo condiscípulos como Capitini.

De entre todos estes autores e filósofos, três o influenciam de forma determinante e serão decisivos para o trabalho intelectual que empreende nas décadas seguintes, nomeadamente no campo da teoria do Estado e da democracia e da análise dos problemas da guerra e da criação de um direito cosmopolita: Kelsen, Hobbes e Kant. Afirma expressamente, a dado passo, da Autobiografia: [72]

Dois pensadores marcaram em particular o meu percurso de estudos: o jurista Hans Kelsen e o filósofo Thomas Hobbes. Quando em 1994 recebi o Prémio Balzan, declarei que foi a leitura de Kelsen que inspirou a concepção de democracia como um sistema de regras que permitem a instauração e o desenvolvimento de uma consciência livre e pacífica. O meu primeiro escrito sobre Kelsen data de 1954: La teoria pura di diritto e i suoi critici. (…) Dediquei-lhe entradas enciclopédicas, artigos e recensões e um livro Diritto e Potere. Saggi su Kelsen. (…) Kelsen ocupa um lugar fundamental não só nos meus estudos de direito como também nos de teoria política. A Kelsen devo o ter-me tornado um defensor da chamada concepção processual da democracia, que remonta à ideia da democracia proposta por Schumpeter como competição entre elites que se apoderaram do consenso através de eleições livres. (…) Thomas Hobbes é o filósofo com maior número de citações na Bibliografia dos meus escritos (…) Dele ocupei-me pela primeira vez em 1939, ao recensear o ensaio de Carl Schmitt dedicado ao Levianthan. Depois em 1948 organizei para a UET a edição de De Cive na colecção de «clássicos políticos» dirigida por Luigi Firpo. Do meu amor pelo filósofo inglês falei em 1989, por ocasião das comemorações dos oitenta anos da Universidade de Turim.

Se há uma manifesta identificação de Bobbio com Kelsen ele existe desde logo na adopção (pelo menos parcial) da teoria pura do direito de que o primeiro se serve para questionar a natureza científica do direito, enquanto ciência do conhecimento, mas que passa também pela identificação com a teoria da democracia do autor alemão, nos importantes estudos que este dedica à república de Weimar. Ambos partilham – com Schumpeter – uma concepção procedimental de democracia – fundada na prevalência de regras do jogo, consensualmente estabelecidas no contrato societário implícito e materializadas no edifício constitucional e nos checks and balances entre poderes legislativo, executivo e judicial – e amiúde e repetidamente usada por Bobbio em obras como Liberalismo e Democracia e O Futuro da Democracia, para «marcar o terreno» quer em relação aos partidários de um autoritarismo centralista que na linha de Vico ou Pareto sublinham a vontade de potência, quer os partidários da democracia directa, da apologética da crise da democracia e da sua refundação que ganham auditório na sequência da crise estudantil e social do Maio de 68. [73]

A relação intelectual com a obra de Hobbes é mais exigente: é por via dela que Bobbio trabalha na noção política de Estado, como monopolizador da força organizada, grande entidade territorial moderna, guardião da soberania no plano externo, embora se refugie no argumento que o seu «encantamento» é uma vez mais pela questão do método:

A importância de Hobbes foi-me revelada pelo estudo que fiz nos anos anteriores do sistema jurídico de Samuel von Pufendorf, que é à sua maneira um hobbesiano. Impressionou-se sobretudo a novidade de Hobbes em relação ao método. O discurso de Hobbes já não estava assente no princípio da autoridade, histórica ou revelada, mas exclusivamente no raciocínio em argumentos racionais. [74]

Mas a influência de Hobbes no seu pensamento político incide em outros quatro pontos «mais substanciais»: o reconhecimento do individualismo, do contratualismo e da paz na organização e mandato do poder soberano, a percepção de um certo pessimismo na natureza humana e nas lições a extrair da história. É por via desse pessimismo consistente que se agiganta com o passar dos anos que Bobbio não deixando de reconhecer-se como um iluminista e finalisticamente defensor moderado do progressismo humano comtiano [75], se procura precaver (alertando os seus leitores) quanto aos abusos que decorrem da conspícua relação do homem com o poder e da sua contraditória natureza. [76]

Este é o ponto que liga Bobbio a um dos mais controversos autores da contemporaneidade – Carl Schmitt – e por onde passa parte do intercâmbio epistolar efectuado entre os dois intelectuais, entre 1948 e 1953, isto é no day-after da 2ª Guerra Mundial. [77] É pelo reconhecimento do carácter, ao mesmo tempo estrutural e instrumental, da relação do homem com o poder que se podem compreender as instituições de um governo legítimo e transparente, o mandato dos governantes, o papel dos partidos, a importância fundamental da engenharia constitucional e a malha de controlos múltiplos e diversificados do governo representativo, que Bobbio retira do 2º Tratado do Governo de Locke.

A relação com Kant, parecendo menos assumida, não é menos fundacional. Isso ocorre por duas vias. Em primeiro lugar e ainda no domínio da filosofia do direito na forma como Bobbio, assumindo-se como um neopositivista (na linha de Kelsen) defende um depuramento do direito, enquanto ciência normativa, dos resquícios do social e do moral, mas contemporizando com a tradição jusnaturalista da escola do direito natural, [78] alerta que não há direito (justo) sem princípios da justiça, da liberdade e da igualdade. [79] Em segundo lugar, no domínio das relações entre Estados soberanos, na necessidade de perseveração da paz e na criação a nível internacional de mecanismos permanentes de diálogo e formação de consenso, na condenação do armamentismo e da política do confronto sistemático [80].

A concluir este ponto, importa tocar num aspecto particular no método analítico e de associação conceptual e ideográfico empregue por Bobbio que lhe marca, de forma muito própria, o estilo: a revisita dos clássicos, o estudo dos problemas da filosofia e da normatividade do direito serve para evidenciar as ligações inquebrantáveis entre a história do pensamento político e jurídico e a teoria geral da política, diversamente da tradição isolacionista da escola jurídica que recusava a segunda ou a subsumia às estritas questões do constitucionalismo; ou da nova ciência política anglo-saxónica que minimiza as relações entre direito e filosofia em nome da autoridade disciplinar e científica dos estudos de ciência política.

Existe em Bobbio, ao longo de uma obra ensaística de mais de quarenta anos, uma grande unidade de método, uma grelha conceptual e de interpretação comum, uma pluridisciplinaridade [81] que não pode, sob pena da quebra da coerência interna, ser fragmentada, compartimentada ou sujeita a etiquetas tão em uso nas ciências sociais. É essa meu ver uma das suas originalidades.

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Sobre o autor
Arnaldo Manuel Abrantes Gonçalves

mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela IEP-UCP, licenciado em Direito pela FD-UNL, professor convidado do Instituto Politécnico de Macau (China)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Arnaldo Manuel Abrantes. Norberto Bobbio:: perfil intelectual do jurista e do teórico da democracia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1102, 8 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8615. Acesso em: 30 nov. 2024.

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