Capa da publicação Norberto Bobbio: o teórico da democracia
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Norberto Bobbio:

perfil intelectual do jurista e do teórico da democracia

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6. Bobbio: a inexorável dimensão ética de um homem de cultura

Intelectual comprometido, compagnon de route da esquerda italiana não-comunista, recusa o radicalismo gratuito e estéril mas não foge ao combate intelectual quando o momento o exige ou a gravidade da sua avaliação legitima a incomodidade. Nesse aspecto é o polemista, o panfletário sóbrio, que lembra, em muitos aspectos os escritores dos Federalist Papers. Guarda com eles a mesma hostilidade ao radicalismo, ao espírito de fracção, mas distingue-se deles porque como filósofo da Razão e último iluminista aceita a inevitabilidade (e a importância) do antagonismo na esfera do político, a importância do dissenso como outra face do pluralismo. Guarda a mesma dimensão ética da acção política, recusa a separação maquiavélica dos dois domínios, mas interroga-se sobre a valência da Providência Divina e o nexo entre sofrimento e culpa face à procissão de horrores, perseguições, morticínios. Lembra Auschwitz, os seus mortos e os seus perpetradores, a propósito de Sarajevo, num dos seus escritos éticos mais notáveis incluídos em Elogio della mitezza e altri scriti morali [98]:

Não só não é de maneira nenhuma demonstrável que por trás de uma pena haja culpa, como também não é demonstrável que na economia geral do universo quem sofra mais seja o malvado. As vicissitudes da história humana vêm demonstrar, para quem quiser observá-las sem preconceito, exactamente o contrário: o tirano Estaline morre no seu leito, Anne Frank, imagem da inocência, morre num campo de extermínio.(…) Tem sentido fazer a pergunta, que todavia naquele dia nos perturbou tanto? Porque foi que, no último momento, um oficial do séquito de Hitler deslocou inconscientemente a bomba que o coronel von Stauffenberg tinha levado consigo para atentar contra a vida de Hitler, e Hitler se salvou e não só não morreu como pôde pôr em acção as suas ferozes vinganças? Não, não tem nenhum sentido. Esta é uma pergunta sem resposta. Mas desde sempre o homem simples já deu a resposta. ‘’Neste mundo não há justiça’’.

Os temas que pontuam os seus artigos e comentários nos jornais incluem questões como a emergência e a resistência ao fascismo, o diálogo difícil com os comunistas em plena expansão do estalinismo, a construção da democracia, a valência do socialismo para responder aos problemas dos cidadãos, a guerra e a paz mas também «o crescente desinteresse pelos acontecimentos políticos quotidianos» da parte dos seus concidadãos e as responsabilidades dos políticos no défice de cultura cívica.

O seu contributo para a cultura política contemporânea e europeia passa também por outros domínios. Em 1944, Bobbio publicara um dos primeiros livros sobre o existencialismo, ‘’La filosofia del decadentismo’’. Em 1969 escrevera um magistral ‘’Profilo ideológico del Novecento’’ (com tradução inglesa), em que deixa inventariados os traços mais significativos da história italiana do século, nas diversas facetas da evolução do pensamento filosófico, político, social e cultural.

Cabe uma última referência aos seus escritos autobiográficos, entre os quais se encontram ‘’De Senectute’’ publicado pela Einaudi em 1996 (com tradução no Brasil, pela Editorial Campus, sob o título ‘’O Tempo da Memória: De Senectute e outros escritos autobiográficos)

No início deste novo século, Norberto Bobbio é seguramente o intelectual italiano mais conhecido no estrangeiro, tanto quanto Benedetto Croce o foi na primeira metade do século que findou.

Testemunha do seu tempo, franco-atirador, espírito independente e irrequieto atento aos sinais do tempo e dos Deuses, o seu pensamento constitui uma referência na esquerda europeia e a tentativa de reconstrução dos seus pressupostos teóricos no contexto de uma tradição liberal e laica sobre que confessa em vários passos da sua obra uma profunda admiração, no apego às liberdades individuais, na preservação da democracia como bases de uma concepção de justiça social e de igualdade, numa compreensão do divino e das opções religiosas de cada um, mas rejeitando a confusão entre o espiritual e o temporal.


7. Posfácio.

Norberto Bobbio é pela importância que revela a multiplicidade, diversidade e enraizamento da sua obra e pensamento na cultura europeia contemporânea um desses casos de uma síntese denodada, nem sempre fácil e transparente, mas sempre filosoficamente complexa entre os dois apelos, o da liberdade e da igualdade, que a cidadania europeia é hoje, talvez mais que no passado, largamente tributária.

Personagem invulgar pelo seu espírito livre, tolerante, não-sectário, pela sobriedade e acutilância com que observa e opina sobre os problemas do seu tempo e a luta política em Itália e na Europa, sem deixar de polemizar com os adversários políticos da democracia e do constitucionalismo, é um dos exemplos mais relevantes de uma geração de intelectuais, de senadores da República, que soube estar na política e no debate de ideias, sem cair na banalidade da questiúncula partidária e da luta de fracções. Geração que é a meu ver responsável pela qualidade das formulações doutrinárias e contributos para a filosofia política contemporânea e para o debate de muitas questões que durante algum tempo foram consideradas espúrias por uma classe política que crê esgotar-se em si a renovação do sistema político e a continuidade dos princípios democráticos.

Sendo a questão do diálogo-oposição entre liberalismo e socialismo um dos pontos sempre em aberto no pensamento político contemporâneo, pareceu-me interessante a abordagem do pensamento político do filósofo italiano, entendendo-o como afirmação de uma identidade cultural europeia (e não exclusivamente italiana) que é também nesta matéria singular e estimulante. Tenho sempre presente que nos momentos de radicalização política do discurso da esquerda durante os anos difíceis da Guerra Fria, em que a virtualidade de ser instrumentalizado pela lógica aglutinadora dos dois blocos político-ideológicos e militares foi real, foi precisamente de Itália mais que de França, que provieram os projectos de renovação política do pensamento intelectual europeu, mesmo no campo comunista, contra essa mesma lógica bipolarizadora.

São ainda raras as obras de recensão e análise do pensamento do Mestre italiano fora do Itália, embora ele venha a despertar uma crescente atenção da comunidade académica brasileira, espanhola e mais recentemente da anglófona..

Há quem entenda a discussão das várias vias do socialismo despicienda – que a temática da validade de uma concepção ideológica liberal-socialista suscita - até porque se vulgariza uma communis opinio que a crê caduca face ao implodir do comunismo e à transição para o capitalismo [99] do conjunto de países de economia colectivizada que integravam o bloco comunista.

Trata-se uma ideia errada, feita de muita simplificação e que é consistente com a ilusão dominante que a história se desenvolve por um processo rectilínio em direcção ao progresso e à modernidade, de que só existem transitórias inflexões [100]. Os conflitos etno-raciais recentes em África, na Europa Central, mas também no Médio Oriente mostram à saciedade que o processo histórico – como a história das ideias – é circular, que eventos e ideias antigas renascem sob novas facies e colocam novos desafios de interpretação [101]. Com isto quero afirmar que é perigosa a ideia dominante na ciência política que o socialismo, como concepção de vida e do mundo, está moribundo ou se converteu à universalidade do liberalismo e da economia de mercado num espaço de uma geração [102].

É minha convicção profunda que sempre que as condições de exclusão, de desigualdade, de competição económica, conduzam os povos e os homens ao desespero (ou à descrença) há sempre condições para o regresso de doutrinas pan-teológicas (embora laicas na sua aparente formulação doutrinal), que predicam a luta contra os poderosos e a instituição revolucionária de uma sociedade igualitária sobre os escombros da existente.


Notas

02 Luigi Bonanate, Profil bio-bibliographique, www.erasmo.it/bobbio/copertine/norbertobobbioprofil.html

03 In BOBBIO, Norberto, De Senectute e altri saggi autobiografici, Turim, Einaudi, 1996.

04 Registo a edição das suas principais obras em língua portuguesa no Brasil pela editora Campus.

05 GREPPI, Andrea, Teoria e Ideologia en el pensamiento político de Norberto Bobbio, Marcial Pons, Madrid, 1998.

06 A republicação dos seus ensaios e obras mais importantes no domínio da filosofia política tem sido possível graças aos trabalhos dos seus seguidores Lydia G. Cochrane, Teresa Chataway, Alan Cameron, Alfonso Ruiz-Miguel, Andrea Greppi, Michelangelo Bovero ou Nadia Urbinati.

07 BOBBIO, Norberto, Autobiografia,(com a colaboração de Alberto Papuzzi), Editorial Bizâncio, Lisboa, 1995, p. 13.

08 Idem, p. 14.

09 Idem, p. 14.

10 Idem, p. 15.

11 Idem, p. 17.

12 Com ele recorda aprende a função cívica da filosofia do direito: a função cívica desta cadeira consistia precisamente em manter desperta a atenção dos jovens para os problemas gerais do Estado e do Direito que eram bastante mais complexos e profundo do que a pública ortodoxia dava a entender, ao elevar o problema político a problema filosófico e, portanto, em última análise, a problema de consciência. BOBBIO, Autobiografia , p. 21.

13 Interesse que continuará com a publicação em 1935 do seu primeiro ensaio académico, La filosofia di Husserl e la tendenza fenomenologica, publicada na «Rivista di Filosofia», XXVI, Jan-Março de 1935.

14 Ver Autobiografia p. 31-6.

15 ZANGRANDI, Ruggero, Il lungo viaggio attraverso il fascismo, feltrinelli, Milão, 1964, pp. 193-4.

16 BOBBIO, Norberto, Maestri e compagni, Passigli, Firenzi, 1984, p. 279-280.

17 Para uma análise circunstanciada da formação, orientação e trajecto do Partito d’Azione ver BOBBIO, Norberto, Ideological Profile of Twenty Century Italy, Princeton, Princeton University Press, 1995, pp. 143, 147-154, 157-158, 168,183. Uma síntese da inserção do Partido na tradição liberal-socialista italiana e o seu envolvimento partidário é feita por Bobbio em Autobiografia,(com a colaboração de Alberto Papuzzi, Editorial Bizâncio, Lisboa, 1995, p.44-54.

18 Benedetto Croce (1866-1952), filósofo italiano, historiador e político. Funda em 1903 o jornal anticlerical La Critica, onde publica parte significativa dos seus escritos. Torna-se membro do Senado italiano em 1910, Ministro da Educação entre 1920 e 1921. Opositor ao fascismo e a Mussolini. Em 1947, funda o Instituto Italiano de Estudos Históricos. Muito influenciado por G. W. F. Hegel explicita o seu pensamento filosófico como uma «filosofia do espírito». Nela compreende estética, lógica, ética, filosofia da história num sistema unificado dominado pela sua ideia do poder criativo humano. A sua teoria estética funda-se na ideia que a arte como forma da criatividade é um critério mais revelador que as ciências. Na sua análise da lógica, Croce contrasta o pensamento lógico como um sistema de relações universais com as formas mais específicas da intuição individual. Acredita no livre arbítrio e num modo de vida baseado na apreciação da beleza, vendo a história como a filosofia em movimento, uma interpretação do passado em termos do presente e os filósofos como os verdadeiros historiadores. Entre as principais obras de Croce estão Ariosto, Shakespeare, e Corneille (1920); História da Europa no Século XIX (1932) e Croce, o Rei e os Aliados (1951). Bobbio dedica-lhe o capítulo VI de Ideological Profile of the Twentieth Century Italy, p. 69-80 e recorda o velho Mestre artigo em citações frequentes da História da Europa.

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19 Professor Universitário, Ministro do Governo italiano, autor de História del Liberalismo Europeo, Ediciones Pegaso, Madrid, 1944 e grande referência do liberalismo europeu deste século.

20 Carlo Cattaneo viveu entre 1801 e 1869 em Milão e desempenhou um papel proeminente no Risorgimento italiano. Democrata e federalista europeu, Cattaneo, reconhece Bobbio na sua Autobiografia, p. 83-84 exerceu uma influência determinante no «arranque dos meus estudos do pensamento político, quási sempre ligados à actualidade». Bobbio considera-o um dos pouquíssimos intelectuais do Risorgimento que nunca puderam ser utilizados pelo fascismo, na medida em que a sua concepção de Estado como «grande transacção» está nas antípodas da doutrina fascista do Estado ético. Bobbio organiza entre 1944 e 1945 uma colectânea de escritos de Cattaneo que sai sob o título Stati Uniti d’Italia, a cura di Norberto Bobbio, Turim, Chiantore, 1945. A colectânea mantém-se inédita fora de Itália.

21 LAFER, Celso, Um professor: a autobiografia de Bobbio, incluído em Bobbio no Brasil, colecção de comunicações presentes a um Encontro sobre Bobbio, organizado pela Universidade de Brasília em 1983 e publicadas em 2001, pela editora UnB, sob coordenação de Carlos Henrique Cardim.

22 BOBBIO, Norberto, Qual Socialismo ?, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

23 Que é também um tema fundamental no pensamento filosófico de Hannah Arendt.

24 Sobre a turbulenta relação com Craxi ver Autobiografia, ibid, pp. 173-174, 176-177 e 179-182.

25 Na verdadeira revolução que atravessa a política partidária italiana a partir dos anos 90 e que conduziu à transformação ou pulverização dos partidos históricos italianos, seria interessante conhecer como o nosso autor a comenta, sobretudo do ponto de vista da unidade da esquerda, «utopia» que nunca abandona. Só a organização da correspondência e escritos avulsos de Norberto Bobbio a cargo do Centro Studi Piero Gobetti (via Fabro, 6 – 10122 Torino) dirigido por Pietro Polito poderá fazer alguma luz, no futuro.

26 BOBBIO, Norberto, Libéralisme et démocratie , Paris, Les Éditions du Cerf, 1996.

27 BOBBIO, Norberto, L’utopia capovolta, Turim, La Stampa, 1990.

28 Segundo a Constituição italiana são cinco os senadores vitalícios que podem ser nomeados por cada Presidente. Bobbio fez companhia conjuntamente com Carlo Bo a Amintore Fanfani, Cesare Mrezagora, Leo Valiani, Eduardo De Filippo e Camilla Ravera que já eram senadores vitalícios.

29 BOBBIO, Norberto, As ideologias e o poder em crise, Brasília, Editora UnB, 1988.

30 BOBBIO, Norberto, L’utopia capovolta.

31 Aldo Moro é raptado pelas Brigadas Vermelhas (Brigate Rosse) na Via Fani em Roma em 16 de Abril de 1978. O seu corpo é encontrado em 9 de Maio na Via Caetani, também em Roma. Os quarenta e cinco dias do seu encarceramento são o ponto mais alto dos ataques terroristas ao Estado italiano, um anátema segundo Bobbio da história recente de Itália. Que regressariam vinte e um anos mais tarde com a morte de consultor do Ministro de Trabalho, Massimo D’Antona e a 19 de Março de 2002 com o assassinato de Marco Biagi mostrando que se trata de algo que a democracia italiana ainda não conseguiu resolver e conjurar.

32 MARTINEZ, Gregorio Peces-Barba, Los noventa anos de Bobbio – un gigantesco depósito de razón, Ideas Políticas.

33 BOBBIO, Norberto, Entre duas Repúblicas, às origens da democracia italiana, Brasília, Editora UnB, 2001.

34 O período de 1945-6 do fim do fascismo e transição para a democracia e o período que se inicia em 1996 com aquilo que Bobbio designa pela introdução dos partidos-pessoa e a transfiguração da própria democracia no hedonismo do poder mediático e político-empresarial de Berlusconi.

35 PERRONE-MOISÉS, Cláudia, A política de cultura de Norberto Bobbio http://www.jt.com.br/noticias/98/01/24/sa8htm

36 Ver TAMBOSI, Orlando, Norberto Bobbio e o século XX,http://www.prw.com.br/prw/resenhas/bobbio.htm

37 Neste sentido, CHATAWAY, Teresa, In Praise of Meekness, Cambridge, Polity Press, 2000.

38 BOBBIO, Norberto, Maestri e compagni, Passigli, Firenze, 1984.

39 DI CASTRO, Elizabeta. Razón y política; la obra de Norberto Bobbio, México, UNAM/Fontamara, 1998, pp. 21-32.

40 Como por exemplo no conjunto de artigos e intervenções que publica no Mondoperaio – editados posteriormente sob o título Quale Socialismo, pela Einaudi, em Turim (1976) - em polémica com as principais figuras do Partido Comunista Italiano e em que questiona duas questões fundamentais: a inexistência de uma análise do Estado e das suas instituições no pensamento marxista, designadamente no chamado período de transição para o socialismo; a incompatibilidade entre democracia e socialismo na sociedade «socialista»de leste e, portanto, a sua inadequabilidade á evolução da democracia para o socialismo.

41 ‘’Norberto Bobbio e la Teoria generale del diritto. Bibliografia regionata 1934-1982’’, Quaderni di Filosofia Analitica di Diritto, nº 4, Milano, Giuffré, 1982.

42 Existe uma recolha francesa de excertos de alguns destes textos como ‘’Essais de Théorie du Droit’’, publicada em Paris, em 1998, pela Librairie Générale do Droit et de la Jurisprudence.

43 Falamos aqui em filosofia do direito, também chamado no mundo anglo-saxónico como jurisprudence, querendo referir o estudo de problemas conceptuais e teóricos relativos à natureza do Direito propriamente dito ou comuns aos vários sistemas jurídicos. Os problemas que se colocam nesta disciplina pertencem, fundamentalmente, a dois grupos: primeiro, os problemas internos ao direito e aos sistemas jurídicos enquanto tal e que incluem, por exemplo, a natureza das normas jurídicas, as condições em que podem existir e produzir efeitos, a estrutura e carácter lógico das mesmas normas, as condições estruturais dos sistemas jurídicos, etc; segundo, os problemas das relações entre a lei como instituição social específica numa dada sociedade e as condições políticas, morais dessa mesma sociedade e que integram temas como a natureza da obrigação jurídica, a coercibilidade da lei, as suas funções, o conceito legal de responsabilidade, a análise e justificação das penas coarctivas, a relação entre sistemas jurídicos, morais e políticos, etc. Ver philosophy of law in The Cambridge Dictionary of Philosophy, second edition, Editor Robert Audi, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, p 676-7.

44 BOBBIO, Norberto, O Positivismo Jurídico – Lições de Filosofia do Direito, S.Paulo, Ícone Editora, 1995, pp. 223-4.

45 BOBBIO, idem. p 224.

46 Bobbio distingue muito claramente entre uma teoria e uma ideologia. A primeira é a expressão da atitude puramente cognoscitiva que o homem assume perante uma certa realidade, sendo preenchida por juízos de facto, que têm a finalidade de informar os outros acerca de tal realidade. A segunda é a expressão do comportamento avaliativo que o homem assume face a uma dada realidade configurando um conjunto de juízos de valor relativos a ela, «juízos estes fundamentados no sistema de valores acolhido por aquele que o formula e que tem como objectivo influírem sobre essa mesma realidade». Ou seja não faz sentido apregoar o sentido verdadeiro ou falso de uma ideologia (como o faríamos quanto a uma teoria) mas exclusivamente se é conservadora ou progressiva, se é reformista ou revolucionária. BOBBIO, O positivismo jurídico, p. 223.

47 BOBBIO, idem, p. 225.

48 TRUYOL Y SERRA, Compêndio da História da Filosofia do Direito , Lisboa, Faculdade de Direito de Lisboa, 1954, p. 106-7.

49 KELSEN, Hans, O problema da Justiça, S. Paulo, Edições Martins Fontes, 1996.

50 GAVAZZI, Giacomo, Introdução- Kelsen e a doutrina pura do Direto, in A Democracia compilação de cinco ensaios de Kelsen, S. Paulo, Edições Martins Fontes, 1993, p. 1-2.

51 RUIZ MIGUEL, Alfonso, Contribucion a la teoria del derecho- Norberto Bobbio, Madrid, Universidad Autónoma de Madrid, 1980, p 242.

52 Entendida como o estudo filosófico da linguagem e das suas manifestações, particularmente os sentidos linguísticos e o uso da linguagem. Há uma profusão de teorias integráveis nesta perspectiva de análise linguística com aplicação ao domínio das Ciências Sociais, mas existe uma preocupação de através de uma rigorosa análise semântica reconstruir sentidos e relações entre as palavras e o mundo não-linguístico. Ver philosophy of language, in The Cambridge Dictionary of Philosophy, ibid, p 673-6.

53 Diz Alfonso Ruiz Miguel «em Bobbio como em tantos outros intelectuais – penso sobretudo em Bertrand Russell ou em Hans Kelsen – a tendência filosófica analítica e para o empirismo acompanha uma concepção relativista mas não céptica da moral e uma ideologia democrático-liberal firmemente enraizada» ob, cit, p. 14.

54 Diz Bobbio na sua Autobiografia, p. 21 «a função cívica desta cadeira (filosofia do direito) consistia precisamente em manter desperta a atenção dos jovens para os problemas gerais do Estado e do Direito, que eram bastante mais complexos e profundos que a pública ortodoxia dava a entender, ao elevar o problema político e, portanto, em última análise, o problema da consciência, ao tornar afinal dramático o que no comportamento da maioria se tornara um exercício de cómodo conformismo»

55 RUIZ MIGUEL, Alfonso, Contribucion a la teoria del derecho- Norberto Bobbio, idem. .

56 Filósofo italiano que viveu entre 1875 e 1944 sendo o teórico da restauração da ordem fascista e um dos expoentes do idealismo italiano, embora contraposto a Croce com quem manteve várias polémicas. Participou no debate sobre a reforma escolar fascista, sendo eleito Ministro por Mussolini. Convertido à liderança populista do duce defendeu o carácter religioso do fascismo italiano, justificando a supressão da liberdade (e a perseguição aos judeus em Itália) em nome do «supremo interesse da nação», professando uma visão do Estado italiano como Estado ético. Cfr. Profile of the Twentieth Century, Norberto Bobbio, p. 125-9. Hannah Arendt refere em Le Système Totalitaire, Éditions du Seuil, Essais, 1972. p. 247 que mais que os «mitos» de Sorel foi « «actualismo» de Gentile (a ideia que os únicos princípios que deveriam ditar a actuação do Estado fascista seriam a inspiração e a acção do chefe) que melhor exprimiu o espírito do fascismo italiano.

57 Filósofo alemão que viveu entre 1859 e 1938, fundador da fenomenologia, influenciou Bertrand Russell e Wittengstein, Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty. Husserl defendia que as coisas apresentam-se-nos de várias formas e que a filosofia deveria aplicar-se na precisa descrição destas aparências, evitando construir grandes teorias construtivistas e defender quaisquer ideologias. À filosofia caberia descrever os diferentes caminhos em que as «regiões do ser» como os objectos, as coisas vivas, as outras pessoas e os objectos culturais são dados, como o passado e o presente se relacionam, como a fala, os números, o tempo e o espaço nos são revelados. Ver The Cambridge Dictionary of Philosophy, ibid, p. 403-7.

58 Como o fez seu mestre e antecessor na cátedra de filosofia de direito em Turim, Gioele Solari. Ver Autobiografia, p. 129-130.

59 Publicado originalmente pela Einaudi em 1985 e editado em língua portuguesa em 1986 pela Editora Paz e Terra, S. Paulo (Brasil).

60 Estado, governo e sociedade, edição brasileira, p. 53-54.

61 Hobbes em relação a todos os filósofos anglófonos, Nietzsche ou Marx em relação aos germanófolos e por aí fora.

62 Publicado também pela Editora UnB (Brasília)

63 Idem, edição já esgotada.

64 Editado em língua inglesa com o título ‘’Thomas Hobbes and the Natural Law Tradition’’, Chicago, The University of Chicago Press, 1998.

65 Publicado também pela Editora UnB (Brasília), edição já esgotada.

66 Editado em língua portuguesa pela Paz e Terra, S. Paulo, 1999.

67 Editado também pela Editorial FCE do México com o título ‘’Ni com Marx, ni contra Marx’’.

68 Ver Autobiografia, p. 112-114

69 Ver BOBBIO, Norberto, Ideological Profile of Twentieth-Century Italy , tradução de Lydia G. Cochrane, Princeton, Princeton University Press, p. viii-ix.

70 BOBBIO, Norberto, Autobiografia, p. 125-135.

71 Esta abordagem é também nos especialistas de filosofia do direito. Ver TRUYOL Y SERRA, António, Compêndio de história da filosofia do direito, Lisboa, 1954; VILLEY, Michel, La formation du pnsé juridique moderne, Paris, Montchrétien, 1975

72 BOBBIO, Norberto, idem, p. 132-3.

73 MARCUSE, Herbert, L’Homme unidimensionnel, Paris, Editions du Minuit, 1968.

74 BOBBIO, Norberto, Autobiografia, ibid, p. 134.

75 Ver entrevista a Frederico Coen, Crises de la idea de progreso, La Jornada Semanal, 3 Outubro de 1995.

76 Diz Bobbio em «Cultura vechia politica nuova» em Politica e Cultura, Turi, Einaudi, 1955: detrás do pensamento dos velhos iluministas encontram-se pelo menos estas três ideias: 1) fé na razão face ao ressurgimento de novos e velhos mitos; 2) a aspiração de utilizar a ciência para fins de utilidade social frente a um saber contemplativo e ociosamente edificante; 3) confiança no progresso ilimitado da humanidade contra a aceitação da uma história que monotamente se repete. Pela minha parte acolho de bom gosto o primeiro e segundo pontos. Mas mentiria se dissesse que estava disposto a aceitar o terceiro. Assim gostava de empregar uma fórmula que pode parece paradoxal, sou um iluminista pessimista. Sou, se se prefere, um iluminista que aprendeu a lição de Hobbes e de Maistre, de Maquiavel e de Marx».

77 Ver Autobiografia, ibid, p. 135-142.

78 A análise do pensamento jusnaturalista de Bobbio, importante numa exegese da liberdade como autonomia é ainda hoje, infelizmente, dificultada pelo seu carácter disperso e ensaístico, materializado em artigos, comentários e recensões espalhadas por revistas jurídicas e filosóficas de muito difícil acesso. Para uma análise pormenorizada remeto para o trabalho de MIGUEL, Alfonso Ruiz, Filosofia y Derecho en Norberto Bobbio, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1983, e para a obra colectiva La figura y el pensamiento de Norberto Bobbio, Madrid, Universidad Carlos III-BOE, 1994.

79 Desde logo na doutrina dos direitos do homem de que é, desde sempre, uma das maiores autoridades europeias. Ver A Era dos Direitos , Rio de Janeiro, Editorial Campus, 1992 e El Tercero Ausente, Madrid, Ediciones Cátedra, 1997.

80 As elegias que desenvolve em redor das principais obras de Kant, neste capítulo: Uma Constituição para uma Paz Perpétua e Que é o Iluminismo? são reveladores de uma identificação que ultrapassa a mera coincidência.

81 Neste sentido, CHATAWAY, Teresa, Norberto Bobbio-Intellectual Biography, Political Expressions Sidney, vol 1, nº1, 1995, p. 51 e segs, GREPPI, Andrea, Teoria e Ideologia en el Pensamiento político de Norberto Bobbio, Madrid, Marcial Pons, 1998, p. 25-37, também TELÒ, Mario na Introdução a BOBBIO, Norberto, État et la démocratie internationale. De l’histoire des idées à la science politique’’, Éditions Complexes, Études européennes, 1998, p. 18.

82 LAFER, Celso, Um professor: a autobiografia de Bobbio, Bobbio no Brasil, Brasília, Editora UnB, 2001, p. 85,

83 Ibid p. 15.

84 Há algo profundamente autobiográfico nesta senda de Bobbio contra a tentação da democracia directa. O seu primogénito, Luigi, é um dos dirigentes do movimento estudantil, torna-se secretário da Interfaculdades e participa na contestação às autoridades académicas durante os anos de 1967 e 1968. Bobbio vive a experiência directa do confronto com o movimento estudantil quando aceita a nomeação para membro da Comissão Ordenadora com Marcello Boldrini da Universidade Católica e Benjamino Andreatta da Universidade de Bolonha. Ver Autobiografia , ibid, p. 144-150.

85 GREPPI, Andrea, Teoria e Ideologia en el pensamento político de Norberto Bobbio, Madrid, Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, 1998.

86 «Creio que a questão da identidade política é fundamental e que a tentativa de construir identidades para os «cidadãos» é uma das tarefas da política democrática. Mas existem muitas concepções diferentes de cidadania e no seu concurso estão em jogo muitas questões vitais. A forma como definirmos cidadania está ligado ao tipo de sociedade e comunidade política que desejamos». MOUFFE Chantal, O Regresso do Político, Gradiva, 1996, p. 83.

87 Bobbio tem-se escrito (Andrea Greppi) (Celso Lafer) guarda em relação ao constitucionalista alemão uma posição contraditória, feita por um lado de grande veneração e respeito pelo seu contributo para o positivismo jurídico e o constitucionalismo, mas por outro lado de uma educada mas firme censura pela forma como Schmitt fez da apologia do poder e do antagonismo amigo-inimigo um caminho que franqueou a porta ao nacional-socialismo e sepultou a República de Weimar. Bobbio aceita o primado da análise realista de Schmitt quando aplicado às relações internacionais, mas teme pelo seu extremismo e radicalismo no campo interno. Não se tratará tanto, como afirma Celso Lafer na sua autobiografia de Bobbio (incluída no já citado Bobbio no Brasil, p.86) da tentação demoníaca do poder em Schmitt, mas o reconhecimento do incontornável contributo do teórico alemão para o estudo e explicação dos fenómenos políticos, que levado à letra pode acarretar uma lógica perversa e niilista da própria democracia. Quanto aos usos que se podem fazer das palavras dos filósofos, depois de mortos, trata-se de uma das mais velhas e inconclusivas discussões da filosofia.

88 Importante o também citado O Futuro da Democracia, que inclui um excelente ensaio «Velho e novo liberalismo» e o ainda inédito fora de Itália Dal fascismo alla democrazia, editado por Michelangelo Bovero, seu sucessor na cátedra da Universidade de Turim..

89 Traduzido por Lydia G. Cochrane para a Princeton University Press, 1995. Massimo L.Salvadori sublinha na introdução, p. xv, «a primeira coisa que pode surpreender o leitor que pega neste livro é o adjectivo «ideológico» que Bobbio coloca no título. É um objectivo que não é comummente usado na historiografia contemporânea e na literatura política, nomeadamente quanto à Itália, mas serve um leque variado de propósitos. Bobbio refere no seu Prefácio que «uma das razões para usar o termo neste livro é que as ideologias – correntes de ideias - têm sido o principal capital da política italiana neste século e têm tido uma influência concreta nas forças políticas em Itália. A segunda razão é que o livro não esconde o ponto de vista ideológico do autor em relação a eventos e a pessoas. Trata-se portanto de um livro ideológico». Como é sabido existe uma tradição profundamente ideoligizada no pensamento intelectual europeu contrastando com a tradição mais ‘’pragmática’’ inglesa ou americana. Essa distinção é muito clara nos estudos de Ciência Política.

90 Nasce em Maio de 1950, com sede em Veneza, tendo Campagnolo como secretário e Antony Babel como presidente. Bobbio sucederia ao primeiro em 1976 e torna-se uma das referências da Sociedade. Mário Soares integra o Conselho da SEC desde princípios dos anos 90.

91 Autobiografia, ibid, p. 92-95.

92 BOBBIO, Norberto, Thomas Hobbes and the natural law tradition, Norberto Bobbio, traduzido por Daniela Gobetti, The University of Chicago Press, 1993. O sistema político de Hobbes funda-se numa grande dicotomia entre um estado de natureza, em que os homens vivem sem leis para regular os seus interesses contrapostos e uma sociedade civil em que existe um poder comum que os coage contra a sua vontade a obedecer ás leis necessárias para garantir uma coabitação pacífica. A passagem de uma para outra condição pode ocorrer por duas vias: através da conquista pelo qual o mais forte se impõe aos outros; pelo contrato social através do qual todos os interessados concordam em alienar os seus direitos, renunciar ao uso individual da força e instituir um poder comum. A primeira solução é característica de uma concepção realista de política que toma a sociedade do ponto de vista das paixões em choque que necessitam de ser sustidas por um poder externo. A segunda solução é própria de uma concepção racionalística de política de acordo com a qual a política é o domínio em que interesses opostos se confrontam. Bobbio reconhece a prática da primeira mas inclina-se claramente para a segunda como a preferível em democracia.

93BOBBIO, Norberto, Diritto e Stato nel pensiero di Emmanuel Kant, Turim, Giappichelli, 1969.

94 Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, Editorial Brasília, p.153-159

95 Inclui os ensaios O modelo do direito natural (publicado primeiramente pela Rivista internazionale de filosofia del diritto, 1973), A teoria política de Hobbes (idem, Storia delle idee politiche economiche e sociali, 1980), A Revolução Francesa e os Direitos do Homem (Câmara dos Deputados, Roma, 1988), A paz perpétua e a concepção kantiana da federação internacional (Idem, Introduzione a E. Kant, Per la pace perpetua. Un projecto filosofico. A cura di N. Merker, Roma, Editori Riuniti, 1985), Hegel e o direito (Idem, Incidenza di Hegel, a cura di F. Tessitore, Nápole, Morano, 1970), Estado, poder e governo (Idem, Enciclopedia Einaudi, Stato, vol XIII, 1981).

96

BOBBIO, Noprberto, L’Utopia capovolta, Turim, la Stampa, 1990.

97 Ver também o capitulo VII da sua Autobiografia, p. 198-222.

98 BOBBIO, Norberto, Elogio della mitezza e altri scriti morali (Elogio da Brandura e outros escritos morais), Milan, Linea d’Ombra, 1994.

99 Uso aqui o conceito numa acepção essencialmente descritiva, herdada da economia política.

100 A emergência dos fenómenos do fundamentalismo islâmico, primeiro no Irão, depois no Afeganistão, Indonésia, Filipinas, Sudão, Iraque é vista, nessa perspectiva, mais como um anátema do processo histórico universal do que como um fenómeno com ampla projecção e consequências.

101 Relembro a propósito a conhecida e inultrapassada abertura do 18 de Brumário de Luís Bonaparte de Karl Marx: Hegel faz notar algures, que todos os grandes acontecimentos e personagens históricos ocorrem , por assim dizer, duas vezes. Esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Publicado por Textos do Nosso Tempo, Coimbra, 1971, p. 15.

102 Há, a propósito, duas reflexões fundamentais sobre este problema: Socialismo e Mercado do galego Ramom L. Suevos, editado em 1994, em Portugal, pelo Campo das Letras e Socialism after Communism. The new Market Socialism, de Christopher Pierson, publicado pela Polity Press, 1995.

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Sobre o autor
Arnaldo Manuel Abrantes Gonçalves

mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela IEP-UCP, licenciado em Direito pela FD-UNL, professor convidado do Instituto Politécnico de Macau (China)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Arnaldo Manuel Abrantes. Norberto Bobbio:: perfil intelectual do jurista e do teórico da democracia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1102, 8 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8615. Acesso em: 29 dez. 2025.

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