Resumo: O referido estudo busca discorrer acerca da criminalização do crime de estupro virtual. Este tipo de defloramento se caracteriza como sendo aquele cuja finalidade é constranger alguém mediante grave ameaça e a praticar outro ato libidinoso. Portanto, se entende que “ato libidinoso” é todo ato destinado a satisfazer a lascívia e o apetite sexual de alguém. Apesar de que no meio virtual, a conjunção carnal não tem como realizar-se, é totalmente possível que o criminoso constranja sua vítima através de ameaça (no caso, divulgar fotos íntimas) a praticar ato licencioso, ou seja, o envio de fotos e vídeos de conteúdo intrínseco. Dessa forma, a presente pesquisa se objetiva em analisar os reflexos sociais e jurídicos implantados pelo crime de estupro virtual, apresentando as suas características, o posicionamento doutrinário e jurisprudencial e as consequências advindas de sua regulamentação para os operadores do direito e para as vítimas.
Palavras-chave: Estupro. Virtual. Legislação Brasileira. Jurisprudência.
Sumário : Introdução. 1. Os crimes sexuais no Brasil. 1.1. Do crime de estupro. 2. O crime de estupro virtual: aspectos gerais. 2.1. Dos Posicionamentos Jurisprudenciais. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Os crimes sexuais sempre foram um tema polêmico socialmente. Devida a gravidade ao qual são cometidos e as consequências sofridas pelas vítimas, esses crimes se encontram normatizados pela norma penalista. Dentre os vários tipos de crimes de cunho sexual, um se destaca: o crime de estupro, objeto central desse estudo.
O crime de estupro, presente desde os primeiros ordenamentos jurídicos no Brasil, se encontra atualmente normatizado no Código Penal Brasileiro com redação dada pela Lei nº. 12.015/09, onde ampliou a interpretação desse crime. No entanto, desde a promulgação dessa lei, tal delito foi se ampliando até se chegar ao estupro virtual.
O estupro virtual é oriundo do avanço tecnológico e social que se teve nas últimas décadas. Com a área da informática crescendo e apresentando novas formas de se relacionar, além das mídias sociais (WhatsApp, Facebook, Instagram, etc.), o crime de estupro se modernizou e hoje é praticado não apenas pela conjunção carnal, mas também através de espaço virtual.
Desse modo, entende-se o estupro virtual como aquele onde o criminoso constranja sua vítima através de ameaça (exemplo: divulgação de fotos íntimas) a praticar ato libertino sem sua vontade/consentimento, ou então através da exigência do envio de fotos e vídeos de conteúdo íntimo (FERREIRA, 2018).
Esse tipo de crime é bastante recente, tendo poucos casos ainda julgados pelo Poder Judiciário. Isso pode ser explicado pelo fato de que muitas vítimas ainda têm medo de denunciar, fazendo com que esse crime ocorra frequentemente sem que haja qualquer punibilidade ou mesmo registro.
Em razão disso, o presente estudo tem como escopo discutir de que forma a legislação e a jurisprudência brasileira tem se posicionado frente à perpetra o estupro virtual. Também se pretende discutir nessa pesquisa as consequências desse delito para as vítimas.
1. OS CRIMES SEXUAIS NO BRASIL
Um dos temas mais debatidos atualmente na área penal diz respeito aos crimes relacionados a gênero. São diariamente expostos casos de mulheres (a grande parcela das vítimas), crianças e homens que são vítimas de algum crime de cunho sexual.
Por estarem presentes desde o início décadas, os crimes sexuais sempre carregaram a divergência jurídica e social, se modificando de acordo com a evolução intelectual da sociedade. A partir dos movimentos sociais, como a independência da mulher em todos os sentidos, o contexto da sexualidade também foi se ampliando.
Isso foi determinante para que a sociedade se voltasse para a discussão sobre a sexualidade humana e o papel que ela exerce além da procriação. Diante de casos de homicídio ou de importunação onde se verificava a presença de uma motivação sexual, o Direito, enquanto protetor do indivíduo, 0 ampliou-se no sentido de normatizar as condutas sexuais nocivas.
Em razão disso, adentra dentro do rol do Direito Penal os crimes sexuais. Primeiramente, os crimes sexuais eram denominados – dentro da normativa brasileira – de crimes contra os costumes. Todavia, esse termo já não correspondia à realidade dos bens juridicamente tutelados pelos tipos penais. Assim, em 2009 por meio da Lei nº 12.015, o Título VI do Código Penal passou a prever os chamados crimes contra a dignidade sexual (GRECO, 2014).
Essa nova nomenclatura se encaixou melhor no cenário contemporâneo, onde já não se via o comportamento sexual dos indivíduos, mas sim a sua dignidade sexual. A respeito dessa mudança, importante mencionar as seguintes palavras:
“[...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2013, p. 60).”
O que o autor acima destaca é que a sociedade foi se modernizando, principalmente nas questões envolvendo a sexualidade. As preocupações e objetivos se modificaram. Se antes se buscava proteger a virgindade das mulheres, hoje se busca penalizar, por exemplo, a exploração sexual de crianças e adolescentes (GRECO, 2014).
Por meio desse diploma legal, foram reunidas os tipos penais do estupro e do atentado violento ao pudor (art. 213). Também fora implantado o delito de estupro de vulnerável (art. 217-A), dando fim a discussão que existia nos Tribunais, no que dizia respeito à natureza da presunção de violência, quando o delito era praticado contra vítima menor de 14 (catorze) anos.
Nessa mesma normativa, houve também a outras mudanças textuais, além de ampliar outras hipóteses não previstas anteriormente pelo Código Penal. Além disso, segundo Greco (2014, p. 03) “acertadamente, foi determinado pela nova lei que os crimes contra a dignidade sexual tramitariam em segredo de justiça (art. 234-B), evitando-se, com isso, a indevida exposição das pessoas envolvidas nos processos dessa natureza, principalmente as vítimas”.
Mesmo essa norma sendo de 2009, a sociedade continua mudando desde então. Com o avanço tecnológico, as práticas de cunho sexual se modernizaram. Com isso é possível verificar crimes sendo cometidos em redes de internet, celulares, dentre outros aparelhos que acabam servindo de objeto para a prática de crimes sexuais.
Como bem acentuam Souza; Herrea; Teotônio (2019, p. 02) houve uma maior “expansão criada pelo meio digital, no sentido de que com o avanço tecnológico adquirido pelo uso de webcams, de câmeras fotográficas e mais adiante as redes sociais e smartphones, a sociedade atual se tornou mais sexualizada”.
Com isso, houve o aumento de produções pornográficas, a publicidade exarcebada de fotos e imagens com conotação sexual, ou de foro íntimo, dentre outras consequências. Em decorrência disso, houve o crescimento de crimes sexuais, motivado em grande parte como forma de vingança, além de satisfação de lascívia ou até mesmo coisificação do homem sendo o corpo considerado apenas um produto comerciável (SOUZA; HERRERA; TEOTÔNIO, 2019).
Soma-se a esses fatores, o surgimento de smartphones, das redes sociais e meios de comunicação como WhatsApp, Telegram, e o chamado sexting. Formado pela junção dos termos sex (sexo) e texting (escrever), esse tipo de comportamento pode ser entendido como uma ação de origem sexual realizada através de mensagens de texto (SOUZA; HERRERA; TEOTÔNIO, 2019).
Nesse sentido:
“A Internet é o principal palco de debate sobre a produção e divulgação do Sexting, que pode ter como consequência resultados variado para seus praticantes. Quando sai da intimidade, o Sexting pode causar tanto desconforto e polêmica, como pode vir a ser uma forma de expressão saudável da sexualidade na web. Se de um lado temos a imagem sexual como uma forma de expressão do ser humano, do outro, há segmentos da sociedade que consideram essas fotografias/vídeos, atentados aos seus valores morais e éticos e que deveriam ser evitados e mantidos na vida privada (MACHADO; PEREIRA, 2013, p. 05).”
Importante mencionar que apenas o ato de sexting, não gera automaticamente um ato criminal. Para que ocorra, a sua prática deve repercutir socialmente, atingindo a vítima e a sociedade. In casu, é preciso que se compartilhe, sem uma prévia concessão, de imagens e vídeos recebidos de maneira voluntária, em situação anterior, que pode resultar no crime de pornografia de vingança (MACHADO; PEREIRA, 2013).
Essa prática também pode servir como mote inicial para a prática de vários crimes, tal como, o crime de estupro. Nesse ponto, por medo de exposição da sua intimidade ou das críticas sociais e morais, o criminoso acaba por realizar ameaças à vitima na intenção de satisfazer seu desejo sexual (SOUZA; HERRERA; TEOTÔNIO, 2019).
A respeito do crime de estupro, este é de longe o mais grave dentro do rol dos crimes sexuais, e um dos mais praticados. Por conta disso, neste estudo será apresentado um tópico especial sobre a sua prática, conforme apresenta-se o tópico seguinte.
1.1. O Crime De Estupro
O crime de estupro está elencado no rol de crimes hediondos, demonstrando claramente a sua gravidade. Praticado desde a Antiguidade, Azambuja (2012, p. 01) afirma que “a violência sexual acompanha a história da humanidade, tendo sido considerada, inicialmente, crime contra a propriedade”.
Também é antiga a associação entre interdito e sexualidade, sexualidade e sujeira ou sexualidade e impureza. Conforme mostrou Bataille (1988), esta é uma associação, em que há uma profunda cumplicidade entre proibição e transgressão, pois muitas formas de transgressão neste campo são permitidas e até recomendadas. Outras são condenadas e reconhecidas como sendo o mal, o pecado. Ainda segundo Bataille, desde os tempos imemoriais o controle do impulso sexual é também o controle da violência, sendo feito através de diferentes formas de proibições. Isto nos sugere que o tema dos crimes sexuais exige uma reflexão sobre como se atualiza, no contexto em questão, a confluência dessas duas categorias consideradas pelos autores citados como sendo universais: a retribuição e a sexualidade como interdito em sua relação com a violência (OLIVEIRA; BARRETO, 2014, p. 114).
Pode-se entender de maneira geral, que o “estupro é um ato criminoso que atenta contra a liberdade de escolha sexual da vítima” (OLIVEIRA, 2010, p. 15). A sua prática decorre dos animais, que muitas vezes praticam atos sexuais contra as fêmeas, agredindo-as em quase todos os casos. Assim, pode-se afirmar que o estupro é uma ação que viola a disponibilidade do indivíduo, com uma atitude primitiva e selvagem, como nos animais.
Segundo Gusmão (2001, p. 35) “a liberdade sexual é representada por sua característica maior que é o consentimento. Quando violada a liberdade sexual, impedindo que a vítima exerça o poder desse consentimento, afeta o direito sobre o seu corpo, tornando-se assim um crime”.
Sendo praticado desde os primórdios das civilizações, o crime de estupro também sempre teve previsão legal. Além de não aceito moralmente pela sociedade, o ordenamento jurídico também sempre reprovou a sua prática. Em território pátrio, o estupro está presente desde as primeiras legislações existentes (BASSO, 2012).
Com o advento da Lei 12.015/09, o crime de estupro foi inserido agora no denominado “Crimes contra a Liberdade Sexual”. Em seu texto, encontra-se:
“Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena: - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§1.º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§2.º Se da conduta resulta morte:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos”.
(BRASIL, 2009)
A respeito dos seus elementos, expõe-se:
“São quatro os elementos que integram o delito:
1) constrangimento decorrente da violência física (vis corporalis) ou da grave ameaça (vis compulsiva);
2) dirigido a qualquer pessoa, seja do sexo feminino ou masculino;
3) para ter conjunção carnal;
4) ou, ainda, para fazer com que a vítima pratique ou permita que com ela se pratique qualquer ato libidinoso.
O estupro, consumado ou tentado, em qualquer de suas figuras (simples ou qualificadas), é crime hediondo - Lei 8.072/90, art. 1º, V. (MAGGIO, 2013, p. 01)”
Observa-se que no novo texto, prevê-se que o estupro é constrangimento a “alguém”, ou seja, não mais se focaliza apenas na figura da mulher, podendo ser qualquer indivíduo, inclusive o homem e até mesmo os transexuais. O objeto jurídico neste crime é a liberdade sexual. Conforme afirma Capez (2012, p. 290) as pessoas “tem o direito de dispor do próprio corpo como também a plena liberdade de escolha do parceiro sexual, para com ele, de forma consensual, praticar a conjunção carnal ou outro ato libidinoso”. O objeto material é a pessoa constrangida.
No que tange a classificação doutrinária, expõe-se:
“Trata-se de crime comum (aquele que pode ser praticado por qualquer pessoa), plurissubsistente (costuma se realizar por meio de vários atos), comissivo (decorre de uma atividade positiva do agente “constranger”) e, excepcionalmente, comissivo por omissão (quando o resultado deveria ser impedido pelos garantes – art. 13, § 2º, do CP), de forma vinculada (somente pode ser cometido pelos meios de execução previstos no tipo penal: violência ou grave ameaça), material (só se perfaz com a produção do resultado conjunção carnal ou outro ato libidinoso), de dano (só se consuma com a efetiva lesão ao bem jurídico protegido, a liberdade sexual da vítima), instantâneo (uma vez consumado, está encerrado, a consumação não se prolonga), monossubjetivo (pode ser praticado por um único agente), doloso (conquanto a previsão de modalidade culposa), não transeunte (quando praticado de forma que deixa vestígios), ou transeunte – quando praticado de forma que não deixa vestígios (MAGGIO, 2013, p. 01)”.
Em relação aos sujeitos do crime de estupro, a Lei 12.015/09 colocou esse crime como sendo comum, conforme exposto acima, portanto, o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (homem ou mulher). O sujeito passivo também pode ser qualquer indivíduo (homem ou mulher), independentemente de suas qualidades (honesta ou desonesta, virgem ou não, casada ou solteira, etc.) ou características (alta ou magra, loira ou ruiva, etc.).
Sendo representado através do verbo constranger, que vem a significar compelir, obrigar, coagir ou forçar, o sujeito deve agir com violência ou grave ameaça. Na violência, usa-se o emprego da força física que acaba por dificultar ou impossibilitar qualquer meio de resistência ou defesa da vítima podendo resultar no ato sexual em si ou numa lesão corporal (MAGGIO, 2013).
Cumpre frisar, de acordo com Bitencourt (2012, p. 51) que “para configurar o estupro é necessário o dissenso (não consentimento) sincero e positivo da vítima durante todo o ato sexual, ou seja, uma reação efetiva à vontade do agente de com ele ter conjunção carnal”. No caso em que a negativa não é sincera ou se depois de resistir, consentiu o ato sexual, não se fala em crime de estupro.
No elemento subjetivo, tem-se o dolo, que consiste na intenção do originador em constranger alguém, com violência ou grave ameaça a ter conjunção carnal. Estefam (2016, p. 145) lembra que “também estará configurado o estupro se a intenção do agente era humilhar a vítima, ganhar uma aposta dos amigos, contar vantagem a terceiros, etc.”. O que importa é que a liberdade sexual da vítima seja violada ou desrespeitada. Acrescenta-se que o crime de estupro não acata a modalidade culposa.
No aspecto processual, Greco (2010) explica que o crime de estupro a ação penal é de iniciativa pública condicionada à representação do ofendido, e não mais de ação penal privada. Entretanto, há de se mencionar a Súmula 608 do STF que entende que “No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada”.
Como o crime de estupro se encontra inserido no rol de crimes hediondos, o seu autor não tem o benefício da anistia, graça, indulto ou fiança. A pena deverá ser cumprida inicialmente em regime fechado, devendo o processo correr em segredo de justiça.
2. O CRIME DE ESTUPRO VIRTUAL: ASPECTOS GERAIS
Feitas as considerações necessárias sobre o crime de estupro é preciso delimitá-lo ao tema por ora proposto: o crime de estupro virtual. Conceitualmente, o estupro virtual “se caracteriza pela ameaça ou coação através da internet para o cometimento de todo e qualquer ato libidinoso. Ou até mesmo, o uso de imagens usadas para chantagear a outra parte” (CAMARGO, 2019, p. 01).
Para exemplificar esse tipo de crime, tem-se a seguinte situação:
“[...] Determinada pessoa passa a conhecer alguém em uma rede social. A partir disso, se inicia um flerte e a troca de nudes. Em determinado momento, se inicia o recebimento de ameaças e que as imagens serão expostas. Para que isso não ocorra, a pessoa é “obrigada” a se despir e a se masturbar durante uma chamada de vídeo. Atenção: isso é um estupro virtual (DUARTE, 2020, p. 02).”
O “estupro virtual” pode ter a sua ocorrência de várias maneiras. A título de exemplo ele pode ser vislumbrado quando um indivíduo através de alguma rede social (WhatsApp, Facebook, por exemplo) tenciona constranger, envergonhar ou ameaçar outrem a tirar a roupa na frente de uma webcam, praticar masturbação ou se fotografar nu (GOMES, 2017).
Discorrendo sobre a implantação desse crime na atualidade, D´Urso (2020, p. 01) explica que “a situação passou a ser debatida e analisada mais intensamente só após 2017, uma vez que se começou a lidar com tais situações - de estupro virtual -, após a popularização das redes sociais”. Verifica-se desse modo, que o estupro virtual é uma consequência do avanço tecnológico, em especial das redes sociais, que vieram trazer maior interação entre os indivíduos.
O termo "estupro virtual" não se encontra explicitamente no texto penal. No entanto, isso não impede que os atos cujo objetivo seja de denegrir a liberdade sexual de outro através da internet seja regulamentado na legislação penal. No caso, ele se enquadraria no artigo 213 do CP. O "ato libidinoso" de acordo com Duarte (2020, p. 03) pode ser entendido como qualquer gesto com finalidade de satisfazer o apetite sexual de alguém. No caso em tela, o ambiente virtual não permite que haja a “conjunção carnal”, mas acaba permitindo o ato libidinoso, ainda que não se tenha contato físico.
Discorrendo sobre essa questão Camargo (2019) explica que no caso do estupro físico existe o uso da força bruta como forma de dominação da vítima e posteriormente realizar o ato sexual. No caso do estupro virtual ele se configura na base do domínio psicológico, onde o estuprador (a) age por meio de ameaças, chantagem, constrangimento, etc. Por não haver o consentimento da vítima, entende-se que houve o crime de estupro.
Além disso, a própria tentativa de coagir alguém, já configura a intenção de consumar o ato carnal. Por isso o juiz decreta a prisão para evitar o crime. Tudo isso se comprova que não houve consentimento entre as partes envolvidas (CAMARGO, 2019).
Numa interpretação sociológica, ainda que seja perceptível que esse tipo de crime seja bastante usual, pouco se julga ou tem denúncia. Isso se explica pelo fato de que até mesmo no momento em que a mesma presta queixa numa delegacia, o ato pelo qual foi vítima se torna motivo de constrangimento e vergonha.
Quando isso passa a se tornar público, dentro da família e do trabalho, a vítima acaba sofrendo esse constrangimento. Constrangimento é a palavra-chave nesse crime e o que faz com que esses casos não sejam levados adiante. Alguém dizer assim, 'Por que você se deixou fotografar, filmar? Por que você permitiu tudo isso, chegar a esse ponto, fora do controle, para só então denunciar?’. Esse tipo de questionamento que às vezes vêm de amigos, família e pessoas do trabalho acabam fazendo com que a vítima fique calada e não dê andamento na denúncia (GOMES, 2017, p. 02).
Em concordância com o supra exposto, Konder Comparato afirma:
“O impacto de um estupro pode ser devastador, pois se trata de uma experiência “extremamente desmoralizadora, despersonalizada e degradante”. [...] E as vítimas de estupro têm repetida tendência de virem a apresentar (a curto e longo prazo) transtornos psiquiátricos, especialmente o TEPT, depressão, transtornos fóbico-ansiosos, transtornos relacionados a abuso de substâncias psicoativas, transtornos de personalidade, transtornos dissociativos, transtornos de somatização e transtornos alimentares (COMPARATO, 2007 apud JUNIOR, 2018, p. 03)”.
Dessa forma, é evidente que o crime de estupro virtual deixa marcas profundas na vítima, e também na sociedade, uma vez que os seus integrantes sentem desprotegidos e acuados frente a uma possibilidade de terem a sua liberdade sexual desrespeitada ou violentada e ainda por cima exposta, causando uma onda de insegurança social e jurídica.
2.1. Dos Posicionamentos Jurisprudenciais
No decorrer desse estudo foi apresentado a problemática envolvendo o crime de estupro virtual. Todavia, além de discutir sobre esse crime e suas consequências é também importante apresentar os posicionamentos jurisprudenciais. Nesse sentido, nada mais relevante do que destacar os julgados da jurisprudência brasileira.
Em 2017, houve o primeiro caso tipificado como estupro virtual no Brasil: em Teresina, no Piauí. No caso presente, um homem obrigava a sua então namorada a gravar-se masturbando e enviar para ele. Caso contrário, o mesmo iria expor os vídeos nas redes sociais. O estuprador foi preso após a denúncia da ex-namorada (COELHO, 2018).
A partir desse julgado houve uma maior atenção sobre esse assunto. Opinando sobre essa decisão judicial, D´Urso (2020, p. 01) afirma que “este julgado é mais um marco na história da Justiça e do Direito Digital, tratando-se de uma decisão que consolida mais ainda a questão do estupro virtual no Brasil, tema ainda controverso”.
Contudo, alguns doutrinadores, com base nessa decisão, discordam desse entendimento. Em outras palavras, entendem que não se deve falar em estupro virtual, uma vez que há somente estupro no caso onde há conjunção carnal entre as partes.
Nessa linha de entendimento, encontra-se o doutrinador José Renato Martins que em artigo publicado intitulado “Não é correto se falar em estupro virtual, o crime de estupro só pode ser real” (2017), afirma que “o estupro só pode ser real, nunca virtual; este pode ser, no máximo, um instrumento para se alcançá-lo”.
Em suas palavras, com base na decisão judicial acima exposta ele entende que:
“Partindo-se desse raciocínio, a conduta em questão (introdução de objetos na vagina e automasturbação), como foram praticados pela própria vítima em si mesma, não podem conduzir à tipificação do estupro, em respeito ao princípio da legalidade, configurando-se, ao máximo, o delito de constrangimento ilegal, previsto no artigo 146 do Código Penal. Outro perigoso entendimento que deriva do mencionado decisum é o que compreende irrelevante, para a configuração do delito de estupro, que haja um contato físico entre ofensor e ofendido, tese que ganhou expressão nacional em julgado da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 2/8/2016, embora em um caso que tratou de estupro de vulnerável (CP, art., p. 217-A). (MARTINS, 2017, p. 01)”.
Dentro dessa seara, há ainda os que fundamentam entendimento contrário, na definição de que o crime de estupro virtual está em descordo com o princípio da legalidade. Nesse ponto, certos doutrinadores asseveram que ao se adequar tal conduta haveria uma afronta ao princípio da legalidade e seria impossível a configuração da conduta do crime de estupro em meio virtual, visto que a presença do agressor é indispensável.
O princípio da legalidade encontra-se inscrito no art. 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal, que diz “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Tal redação é a mesma descrita no art. 1º do Código Penal Brasileiro.
Nas palavras do doutrinador Rogério Greco, é possível abduzir do princípio que não existe a possibilidade de haver uma conduta criminosa se a lei não à define como crime. A Lei seria a única fonte de Direito Penal capaz de proibir ou ditar condutas sob tal penalidade. Por tal razão, entende-se que qualquer conduta seria lícita e permitida desde que não esteja descrita como crime ou conduta proibida no ordenamento jurídico (GRECO, 2011, p. 01).
Com base nesse princípio o Delegado Geral de Polícia Civil em Minas Gerais, aposentado, Dr. Jeferson Botelho Pereira aduz que:
“[...] embora em um caso que tratou de estupro de vulnerável (CP, art. 217-A), e de parte da doutrina se contentando com meras assistências contemplativas de autores em face de comportamentos de vítimas que mediante grave ameaça de terem suas imagens divulgadas na rede social, teriam que se submeter a auto-prática de atos de libidinosos para a configuração do crime de estupro virtual, acreditamos que a técnica jurídica e o princípio da taxatividade penal estariam seriamente violados com esse entendimento minoritário (BOTELHO, 2017, p. 02)”.
Apesar desses posicionamentos contrários, o entendimento mais visto e considerado majoritário é de que a jurisprudência tem considerado o estupro virtual. Desde esse processo inicial citado, alguns outros casos foram decididos nas Cortes brasileiras, todas favoráveis a condenação do réu que, com base nas provas obtidas, tiveram de cumprir a pena aplicada. Insta salientar que qualquer pessoa pode ser vítima desse tipo de crime, conforme citaremos no caso a seguir:
Um estudante de 24 anos, de Porto Alegre/RS, se comunicava com um menino de 10 anos, de São Paulo/SP, via internet. Por meio de uma rede social, e de um software de áudio e vídeo, o acusado mantinha conversas de cunho sexual com a vítima, inclusive, sem roupa. O assédio foi descoberto pelo pai da vítima, que fez a denúncia. A investigação levou à prisão do estudante e à descoberta de que ele também armazenava cerca de 12 mil imagens contendo pornografia infantil (D´URSO, 2020, p. 02).
A juíza de Direito Tatiana Gischkow Golbert, da 6ª vara Criminal do Foro Central de Porto Alegre, condenou o réu pelos crimes de aquisição, posse ou armazenamento de material pornográfico, de aliciamento/assédio para levar criança a se exibir de forma pornográfica, ambos previstos no ECA (Estatuto da Criança e Adolescente) e de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos, praticado por meio virtual.
No TJ/RS, a desembargadora Fabianne Breton Baisch, relatora, citou que as provas deixaram clara a prática do assédio. O acusado não apenas tinha nítida intenção de praticar atos libidinosos com o lesado, como de fato concretizou tal objetivo em pelo menos duas vezes, afirmou a relatora (Proc. 70080331317).
A magistrada também refutou a tese da defesa, de que o acusado acreditava se tratar de jovem com mais idade, já que a vítima tinha 10 anos à época dos fatos. Segundo ela, as fotos na página da rede social revelavam claramente a tenra idade do menino.
A relatora manteve a condenação e fixou a pena em 12 anos, 9 meses e 20 dias de reclusão. Ela foi acompanhada pelos desembargadores Dálvio Leite Dias Teixeira e Naele Ochoa Piazzeta. Piazzeta acrescentou:
“Debruçando-me sobre os autos, deparei-me com um agente de extrema periculosidade, estudante de importante Universidade deste Estado, utilizando-se das redes sociais e de sua ardileza para atrair o impúbere e com ele praticar os atos descritos na exordial, ferindo gravemente sua dignidade sexual e existindo indícios da execução de outros delitos em circunstâncias semelhantes. (...) Diante de tais informações, existindo indícios de que se trata de verdadeiro predador sexual, em muito diferenciado dos demais casos que esta Corte costumeiramente examina, inviável cogitar da aplicação da atenuante da tentativa como forma de observar a proporcionalidade entre fato típico e sanção (TJ/RS 70.080.331.317) ”.
Em meio a essa decisão, ficou evidente observar, é possível praticar o estupro de vulnerável com o uso de meio virtual. A jurisprudência recente, inclusive, já tem tomado decisões onde se entende que se tem que penalizar essas práticas. Mesmo que não se configure num contato físico, ainda há estupro de vulnerável, como na situação de contemplação lasciva de uma criança nua. Nesse sentido, cabe destacar que não é desprezível lembra que à proteção integra da criança, em especial no que se refere às agressões sexuais, é inquietante para o Estado, constitucionalmente garantido no artigo 227, caput,c/c o §4° da Constituição Federal e de mecanismos internacionais. (SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 02/02/2016, DJe 23/02/2016.)
No mesmo caminho, também se encontra o presente entendimento jurisprudencial:
“Inspirada nesse mandamento constitucional, a Quinta Turma deste Superior Tribunal de Justiça, em recente precedente de Relatoria do em. Min. Joel Ilan Paciornik, lembrou que “a maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos artigos 213 e 217-A do Código Penal, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido”. Destacou-se, ali, que o “estupro de vulnerável pode ser caracterizado ainda que sem contato físico”. Na assentada, esta relatoria ainda salientou que “o conceito de estupro apresentado na denúncia (sem contato físico) é compatível com a intenção do legislador ao alterar as regras a respeito de estupro, com o objetivo de proteger o menor vulnerável. Segundo o ministro, é impensável supor que a criança não sofreu abalos emocionais em decorrência do abuso”. (Notícia extraída do sítio eletrônico do STJ, cuja veiculação ocorrera no dia 3/8/2016)” (AgRg no REsp 1.819.419/MT, j. 19/09/2019).”
Caminhando nesse mesmo entendimento, e atento ao avanço tecnológico e como ele pode facilitar a pratica de abuso sexual de menores, nota-se que o estupro virtual já é amplamente entendido pela doutrina e jurisprudência pátria.
Para dar maior segurança nesse caso específico (estupro de vulnerável) há o Projeto de Lei nº 3.628/2020 que tramita na Câmara dos Deputados que aumenta as penas do crime de estupro de vulnerável e tipifica a conduta de estupro virtual de vulnerável. A proposta foi apresentada pelo deputado Lucas Redecker (PSDB/RS) em março de 2020. Caso o projeto venha a ser aprovado, a redação do art. 217-B, hoje não existente, passará a ser a seguinte:
Estupro virtual de vulnerável
“Art. 217-B. Assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, menor de 14 (catorze) anos a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos”.
Em conformidade com os casos concretos apresentados neste trabalho, em especial o ocorrido no estado do Piauí no Brasil, caso a vítima apenas tivesse sido ameaçada de ter suas fotos lançadas na internet, sem introduzir objetos em suas partes íntimas, mas tão somente tal ameaça se findasse no lançamento dos materiais na internet, não configuraria a conduta descrita no caput do art. 213. do CP. Entretanto, na medida em que tal ameaça chega a lograr êxito ao ponto da vítima proceder a introdução de objetos, violando sua liberdade e ao mesmo tempo dignidade sexual, a mando do agressor, tal ameaça se torna grave e por tal razão amolda-se a conduta do estupro.
Quanto aos argumentos de que a conduta feriria ao princípio da legalidade tal posicionamento encontra-se equivocado, tendo em vista que a adequação da conduta do estupro acometido em meio virtual se adequa perfeitamente ao crime de estupro previsto no art. 213, caput, do Código Penal atual. O agente agindo dolosamente constrange a vítima a praticar atos libidinosos sob grave ameaça. Não há nenhuma ação diversa das previstas no tipo e por tal razão amolda-se perfeitamente ao crime. Sendo assim, a conduta do “Estupro Virtual” não fere o princípio da legalidade, tendo em vista que está prevista e legislada no tipo do estupro. Assim, esta não fere em nenhum aspecto o princípio da legalidade tendo em vista que não há produção de nova conduta, apenas o meio empregado foi virtual.
Nesse sentido, cita-se:
“O princípio da legalidade, com seus respectivos desdobramentos, princípio da reserva legal, da anterioridade e da taxatividade, não é violado quando reconhecida a tipicidade do estupro virtual. Isto porque ao reconhecer tal conduta como típica, não há a criação de uma nova modalidade de estupro, não prevista em lei, mas sim, a adequação de uma conduta humana (que afeta um bem jurídico) à uma lei já criada, observados todos os limites legais (BRAGA; BIAGGI; NEVES; 2017, p. 08)”.
Ainda no que se explana ao consagrado princípio da legalidade, a conduta não se trata de retroatividade da lei penal em malefício do réu, tendo em vista que o procedimento se amolda ao núcleo do crime de estupro em tempo da vigência da norma. Além disso, não se refere a criação de crimes e penas pelo costume, haja vista que o ato não se limita ao costume de um determinado local, ou tornou-se crime por haver comunicação virtual.
A conduta é real e apenas o meio virtual foi utilizado para a configuração do delito, por tal razão há um erro semântico na nomenclatura do tipo, cogitando não se trata de um “Estupro Virtual”, mas estupro real que se consuma por intermédio virtual. Coadunando com este entendimento o promotor de justiça do estado de Goiás Dr. Luciano Miranda Meireles afirma:
“[...] é de fácil percepção que a nomenclatura “estupro virtual” traz em seu bojo um grave equívoco semântico e jurídico, pois o estupro é real. O seu aspecto virtual limita-se somente ao modo de execução (grave ameaça), já que os atos libidinosos praticados são realizados fisicamente, assim como a dor e o sofrimento causados à vítima. Assim, em outras palavras, trata-se de estupro real (físico) que ganhou uma nomenclatura específica e dissociada de sua gravidade em razão do seu modus operandi utilizar o ambiente virtual, o qual muitas vezes serve como manto protetor da impunidade (MEIRELES, 2017, p. 50)”.
Diante disso, firma-se entendimento nesse estudo de que o crime de estupro virtual é plenamente aceitável e coerente com a realidade atual encontrada na sociedade brasileira, onde é possível verificar cada vez mais casos de vítimas sendo violentadas na sua dignidade por meio virtual. Nesse ponto, não pode o Direito, enquanto ciência social, se afastar dessas atividades criminosas que trazem efeitos devastadores as suas vítimas.