Revela-se grave a notícia trazida pela revista Época sobre o encontro que o presidente Bolsonaro teve com advogadas de seu filho Flávio Bolsonaro, senador, para receber uma denúncia contra a Receita Federal
Disse Merval Pereira, em sua coluna para o jornal O Globo, em 28 de outubro do corrente ano:
“O presidente participou de uma reunião, em 25 de agosto, no seu gabinete do Palácio do Planalto, com as advogadas Luciana Pires e Juliana Bierrenbach, que apresentaram um dossiê sobre “irregularidades das informações constantes de Relatórios de Investigação Fiscal” sobre o senador.
Para agravar a situação, participaram da reunião o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, e o diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, o mesmo que Bolsonaro e seus filhos queriam ver à frente da Polícia Federal.
A nova tentativa de anular as investigações sobre o esquema de desvio de dinheiro público, conhecido como “rachadinha”, em seu gabinete quando era deputado estadual foi feita fora da agenda, e só foi revelada porque a revista “Época” a descobriu.
Por essa nova versão, um grupo de fiscais da Receita Federal usou de meios ilegais para fornecer informações sobre as contas do hoje senador Flávio Bolsonaro aos órgãos de fiscalização como o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) — o que, se confirmado, feriria de morte as acusações contra ele.”
Segundo ainda revelou Merval Pereira, o GSI divulgou uma nota afirmando que “à luz do que nos foi apresentado, o que poderia parecer um assunto de segurança institucional configurou-se como um tema, tratado no âmbito da Corregedoria da Receita Federal, de cunho interno daquele órgão e já judicializado”. A nota do GSI concluiu: “Diante disso, o GSI não realizou qualquer ação decorrente. Entendeu que, dentro das suas atribuições legais, não lhe competia qualquer providência a respeito do tema”. Como se bastasse uma explicação burocrática para tamanha irregularidade.
A reportagem traz à baila uma conduta que ofende, nos termos do artigo 37 da Constituição Federal, o princípio da moralidade administrativa, sem contar que pode ter adentrado no âmbito criminal.
Feriu-se o princípio da moralidade administrativa.
Aplica-se o princípio da moralidade, em resumo, sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado, que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a ideia comum de honestidade.
Repito, na íntegra, a lição de Miguel Seabra Fagundes (O controle dos atos administrativos, 2ª edição, pág. 89 e 90), assim disposta; “A atividade administrativa, sendo condicionada pela lei à obtenção de determinados resultados, não pode a Administração Pública dele se desviar, demandando resultados diversos dos visados pelo legislador. Os atos administrativos devem procurar as consequências que a lei teve em vista quando autorizou a sua prática, sob pena de nulidade.”
Prossegue o eminente administrativista, que tantas lições deixou entre nós, alertando que se a lei previu que o ato fosse praticado visando a certa finalidade, mas a autoridade o praticou de forma diversa, há um desvio de finalidade.
Há no ato administrativo, para sua higidez e validade, um fim legal a considerar. Marcelo Caetano (Manual de direito administrativo, pág. 507) distinguia os desígnios pessoais, os cálculos ambiciosos, as previsões que o agente faz de si para si, no momento em que se determina a exprimir a vontade administrativa, sem repercussão positivamente exteriorizada, na prática do ato, daqueles que se refletem de modo objetivo na sua prática, vindo a desvirtuá-lo em sua finalidade objetiva.
O agente público não pode usar de seus motivos pessoais para atingir fins outros através de um ato administrativo.
Repito o que disse o ministro Celso de Mello:
“O princípio da moralidade administrativa – enquanto valor constitucional revestido de caráter ético-jurídico – condiciona a legitimidade e a validade dos atos estatais. A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do poder público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado.”
Ali, o ministro Celso de Mello deixou consignado que “a atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de preceitos ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa.
Lembro que os chamados princípios da lealdade e da boa-fé, estudados por Jesús Gonzáles Peres(El principio general de la buena fe en el derecho administrativo, 1983), que já dizia que a Administração há de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo interditado qualquer comportamento astucioso, eivado de malicia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos.
Acresça-se que nos termos do artigo 85, V, da Constituição, atentar contra a probidade na administração é hipótese prevista como crime de responsabilidade do presidente da República, fato que enseja a sua destituição do cargo.
Como ensinado por Maria Sylvia Zanella di Pietro:
“Não é preciso penetrar na intenção do agente, porque do próprio objeto resulta a imoralidade. Isto ocorre quando o conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa-fé, ao trabalho, à ética das instituições. Amoralidade exige proporcionalidade entre os meios e os fins a atingir (...) ; (se) o ato em si, o seu objeto, o seu conteúdo, contraria a ética da instituição, afronta a norma de conduta aceita como legítima pela coletividade administrada. Na aferição da imoralidade administrativa, é essencial o princípio da razoabilidade” (Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991. p. 111).
O fato narrado pela revista Época é de gravidade.
Um presidente da República utilizar os órgãos de segurança a favor de um filho seu que é investigado por corrupção é ato gravíssimo, que precisa ser apurado e pode resultar em impeachment. No caso, apenas em tese, porque o centrão no momento está bem aquinhoado e não dará a maioria necessária.
A conduta narrada se revela nos parâmetros da improbidade administrativa, do crime de responsabilidade(com âmbito no campo político e criminal, conforme a teoria europeia).
Há de se averiguar se a conduta acima narrada se acresce a outras, já objeto de investivação perante o STF, envolve uma nociva interferência do atual presidente na atuação administrativa”, a favor de seus interesses e familiares, o que pode configurar crime de advocacia administrativa.