Da (im)possibilidade de conversão da prisão em flagrante em preventiva de ofício após o advento da Lei nº 13.964/2019.

30/10/2020 às 19:44
Leia nesta página:

O presente artigo tem como escopo analisar a novel jurisprudência do STF e STJ no que tange à conversão de ofício da prisão em flagrante em prisão preventiva.

Introdução

Após a modificação advinda do pacote anticrime, Lei Federal de nº 13.964/2019 no Código de Processo Penal, houve intensa discussão acerca da possibilidade e viabilidade de o juízo, ao receber os autos de prisão em flagrante, realizar a conversão em prisão preventiva, de ofício, ou seja, sem a manifestação do órgão acusador, o Ministério Público.

Com o fito de se parametrizar as discussões acerca da inovação trazida ao instituto, recentemente os tribunais superiores, Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, julgaram a necessidade ou não do requerimento de conversão da prisão em flagrante em preventiva, pondo fim à celeuma instaurada.

A presente análise, portanto, visa trazer o novel entendimento que pacificou o imbróglio, com referências às interpretações passadas, lastreadas em pretérita legislação.

 

Do conceito de prisão em flagrante

            Norberto Avena, conceitua a prisão em flagrante como sendo[1] forma de prisão autorizada expressamente pela Constituição Federal (art. 5º XI). Segue o autor afirmando que: rege-se pela causalidade, pois o flagrado é surpreendido no decorrer da prática da infração ou momentos depois. Inicialmente, funciona como ato administrativo, dispensando autorização judicial. Portanto, apenas se converte em ato judicial no momento em que ocorre a sua comunicação ao Poder Judiciário, a fim de que seja analisada a legalidade da detenção e adotadas as providências determinadas no art. 310 do CPP.

É de se ressaltar que o indivíduo preso em situação flagrancial, antes da existência da Lei nº Lei nº 12.403, de 2011, poderia permanecer em tal situação durante o curso da investigação e até do processo. Isso porque se entendia ser o flagrante espécie de prisão cautelar.

Entretanto, com o advento da legislação do início da década, se o magistrado entendesse que deveria manter o indivíduo preso, deveria, necessariamente, converter a prisão em flagrante em preventiva, nos moldes do art. 310, inciso II do Código de Processo Penal.[2]

Esta última, portanto, é espécie de prisão cautelar, apta a ensejar o encarceramento do indivíduo preso, durante a investigação e o curso do processo penal.

 

Da legislação que regia a prisão em flagrante e sua conversão.

O Código de Processo Penal em seu artigo 310 em sua redação originária tratava acerca do tema da conversão da prisão em flagrante para a prisão preventiva, conforme alhures demonstrado.

Assim, regia o instituto, verbis:

Art. 310.  Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato, nas condições do art. 19, I, II e III, do Código Penal, poderá, depois de ouvir o Ministério Público, conceder ao réu liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação.

I - relaxar a prisão ilegal; ou (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

 

Como se vê da leitura do inciso II do artigo supratranscrito, conclui-se que, na época em que vigorava tal dispositivo, o juiz poderia de ofício converter a prisão em flagrante em preventiva.

Isso porque, não haveria nulidade da prisão preventiva, a conversão de ofício produzida pelo juízo sem provocação do Ministério Público ou da autoridade policial, conforme entendimento bem sedimentado da jurisprudência pátria.

O que o ‘Pacote’ veio trazer foi apenas a regulamentação, dentro do Código de Processo Penal, acerca da audiência de custódia, antes com definição no Pacto de San Jose da Costa Rica e regulamentada no Brasil por meio da Resolução CNJ nº 213 de 15 de dezembro de 2015.

Assim passou a vigorar o ‘caput’ do artigo 310 do Código de Processo Penal, verbis:

Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019) 

(...)

Portanto, no que tange ao artigo 310 ‘caput’ apenas evidenciou-se a necessidade da normatização adequada em Código da audiência de custódia já rotineiramente aplicada nos tribunais que carecia de Lei regulamentadora.

 

Da vigência da Lei nº 13.964/2019 denominado Pacote Anticrime e suas modificações do Código de Processo Penal

Entre tantas e variadas alterações, o famigerado Pacote Anticrime modificou sensivelmente o Código de Processo Penal.

 

Da modificação no artigo 282 do Código de Processo Penal

Especialmente no que tange a este artigo acadêmico, será tratado neste tópico a alteração do ‘Pacote’ que modificou o artigo 282, §2º do CPP.

Aduzia o antigo em sua redação anterior, verbis:

Art. 282.  As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

(...)

§ 2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011). (g.n.)

Já a novel disposição assim consta, verbis:

Art. 282.  As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

(...)

§ 2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019) (g.n.)

 

Nota-se, assim, que da antiga redação, a aplicação de medidas cautelares se davam de formas diferentes quanto ao seu lugar.

Se no curso do inquérito, a aplicação das medidas cautelares de ofício pelo juiz era vedada, somente se procedendo mediante requerimento do Ministério Público ou representação da autoridade policial.

Se no curso do processo, a aplicação das medidas cautelares poderia se dar de ofício pelo juiz, conforme expressa disposição legal.

Pois bem, tais conclusões foram modificadas com a entrada em vigor do §2º do artigo 282 acima transcrito.

Isso porque as medidas cautelares, apenas poderão ser decretadas pelo juiz ou a requerimento das partes, ou por representação da autoridade policial ou a requerimento do Ministério Público.

 

Da modificação no artigo 311 do Código de Processo Penal

Em relação ao artigo 311 do CPP, o ‘Pacote’ trouxe mais profunda alteração.

Se antes de tal alteração, ao juiz, era possível a decretação da prisão preventiva, de ofício, em qualquer fase de investigação policial ou do processo penal, tal prerrogativa lhe foi usurpada.

Conforme se vê do artigo 311, ao juízo era dado amplo poder para decretação da prisão preventiva, verbis:

Art. 311.  Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial. (g.n).

 

Entretanto, o novel artigo 311 impediu tal possibilidade.

Isso porque a decretação da prisão preventiva apenas poderá se dar a requerimento do Ministério Público, do querelante, do assistente, ou pela representação da autoridade policial, verbis:

Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.  (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019) 

 

Da recentíssima jurisprudência sobre o tema.

Embora tenha havido tais modificações, a jurisprudência deveria se manifestar sobre o tema que a novel legislação encampou.

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Afinal, o juiz pode ou não converter de ofício a prisão em flagrante em preventiva?

A resposta está em dois recentíssimos julgados: STF. 2ª Turma. HC 188888/MG, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 06/10/2020 e STJ. 5ª Turma. HC 590039/GO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 20/10/2020.

Abaixo segue trecho da ementa do acórdão do Supremo Tribunal Federal:

IMPOSSIBILIDADE, DE OUTRO LADO, DA DECRETAÇÃO “EX OFFICIO” DE PRISÃO PREVENTIVA EM QUALQUER SITUAÇÃO (EM JUÍZO OU NO CURSO DE INVESTIGAÇÃO PENAL), INCLUSIVE NO CONTEXTO DE AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA (OU DE APRESENTAÇÃO), SEM QUE SE REGISTRE, MESMO NA HIPÓTESE DA CONVERSÃO A QUE SE REFERE O ART. 310, II, DO CPP, PRÉVIA, NECESSÁRIA E INDISPENSÁVEL PROVOCAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO OU DA AUTORIDADE POLICIAL – RECENTE INOVAÇÃO LEGISLATIVA INTRODUZIDA PELA LEI Nº 13.964/2019 (“LEI ANTICRIME”), QUE ALTEROU OS ARTS. 282, §§ 2º e 4º, E 311 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, SUPRIMINDO AO MAGISTRADO A POSSIBILIDADE DE ORDENAR, “SPONTE SUA”, A IMPOSIÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA

(...)

A Lei nº 13.964/2019, ao suprimir a expressão “de ofício” que constava do art. 282, §§ 2º e 4º, e do art. 311, todos do Código de Processo Penal, vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva sem o prévio “requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público” (grifei), não mais sendo lícita, portanto, com base no ordenamento jurídico vigente, a atuação “ex officio” do Juízo processante em tema de privação cautelar da liberdade.

A interpretação do art. 310, II, do CPP deve ser realizada à luz dos arts. 282, §§ 2º e 4º, e 311, do mesmo estatuto processual penal, a significar que se tornou inviável, mesmo no contexto da audiência de custódia, a conversão, de ofício, da prisão em flagrante de qualquer pessoa em prisão preventiva, sendo necessária, por isso mesmo, para tal efeito, anterior e formal provocação do Ministério Público, da autoridade policial ou, quando for o caso, do querelante ou do assistente do MP. Magistério doutrinário. Jurisprudência. (g.n)

Abaixo, segue parte da ementa do Julgado do Superior Tribunal de Justiça:

(...)

2. A Lei n. 13.964/2019 promoveu diversas alterações processuais, deixando clara a intenção do legislador de retirar do Magistrado qualquer possibilidade de decretação ex officio da prisão preventiva.

3. O anterior posicionamento desta Corte, no sentido de que "não há nulidade na hipótese em que o magistrado, de ofício, sem prévia provocação da autoridade policial ou do órgão ministerial, converte a prisão em flagrante em preventiva", merece nova ponderação em razão das modificações trazidas pela referida Lei n 13.964/2019, já que parece evidente a intenção legislativa de buscar a efetivação do sistema penal acusatório.

4. Assim, a partir das inovações trazidas pelo Pacote Anticrime, tornou-se inadmissível a conversão, de ofício, da prisão em flagrante em preventiva. Portanto, a prisão preventiva somente poderá ser decretada mediante requerimento do Ministério Público, do assistente ou querelante, ou da autoridade policial (art. 311 do CPP), o que não ocorreu na hipótese dos presentes autos.

(...)

Pois bem, da simples leitura de ambas ementas pode-se concluir de modo extreme de dúvida que a alteração advinda do Pacote Anticrime retirou do juiz a possibilidade de decretação e ofício de qualquer medida cautelar, inclusive a da prisão.

Tal assertiva, inclusive, é reforçada no âmbito da prisão em flagrante que não pode mais ser convertida de ofício pelo juiz em prisão preventiva.

É que entendeu, especificamente, o STF que a reforma introduzida pela Lei nº 13.964/2019 (“Lei Anticrime”) modificou a disciplina referente às medidas de índole cautelar, notadamente aquelas de caráter pessoal, estabelecendo um modelo mais consentâneo com as novas exigências definidas pelo moderno processo penal de perfil democrático e assim preservando, em consequência, de modo mais expressivo, as características essenciais inerentes à estrutura acusatória do processo penal brasileiro.

Tudo isso de modo que, é necessária provocação ministerial ou policial para a sua conversão, ficando pacificada a celeuma trazida pela inovação legislativa.

 

Referências Bibliográficas:

AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal: esquematizado. 6.ª ed. – Rio de Janeiro: Forense MÉTODO, 2014.

Código de Processo Penal

 


[1] AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal: esquematizado. 6.ª ed. – Rio de Janeiro: Forense MÉTODO, 2014.

[2] II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou;

Sobre o autor
Guilherme Novaes de Carvalho

Bacharel em Direito. Advogado. Procurador Municipal

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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