O Uruguai possui no topo de seu poder judiciário como órgão máximo a Suprema Corte de Justicia (SCJ). A SCJ é composta por cinco membros indicados pelo Poder Legislativo, por maioria de dois terços de seus membros, para um mandato de dez anos. Se notabiliza por ter grande autonomia ao longo de sua história, exceto durante o período do governo da junta militar, quando ficou subordinada ao Ministério da Justiça de 1973 a 1985. O número de membros da corte é o mesmo desde sua fundação. A SCJ uruguaia é uma das cortes constitucionais mais bem avaliadas da América Latina. Sendo assim, suas decisões raramente são objeto de questionamento. Comparativamente às demais cortes da região, a SCJ também goza de grande estabilidade e independência. Apesar de ter seus membros escolhidos e eleitos pelo poder legislativo, uma vez empossado, é bastante difícil que se atinjam os requisitos necessários para a remoção de um juiz antes do final de seu mandato.
A literatura consultada não permite afirmar que o aparelhamento da SCJ já tenha sido adotada como estratégia de facilitação de implantação de políticas polêmicas, exceto durante o período militar, quando o poder judiciário ficou totalmente subordinado ao executivo. Isso demonstra um alto grau de qualidade da própria democracia uruguaia, apesar de haver outros fatores de redução de conflitos políticos, tais como a homogeneidade da população por critérios sócio-econômicos.
A baixa judicialização da política no Uruguai também pode ser explicada por outra condição de contorno: a disposição dos outros poderes em encarar questões potencialmente impopulares. Temas decididos pela justiça no Brasil foram previamente objeto de leis no Uruguai, tais como aborto ou união civil homoafetiva. O Uruguai é historicamente um dos países pioneiros em vários direitos fundamentais na América Latina, sem que tenha havido a necessidade de intervenções por parte do judiciário na maioria das vezes.
Quanto à capacidade da SCJ em resistir às crises democráticas, ficou demonstrado sua impotência frente à edição do Ato Institucional no 8, que o rebaixou a um mero órgão do executivo. A ditadura militar uruguaia chegou a produzir o maior número de presos políticos per capita do mundo, com a total quiescência da SCJ (que durante o período não se chamava “Suprema”). Considera-se que a discussão em torno da validade da Ley de Caducidad de la Pretensión Punitiva del Estado (Lei de Caducidade), a Lei da Anistia do Uruguai, é o ponto central para concluir o papel da SCJ na redemocratização uruguaia. A lei inocenta os autores dos crimes cometidos pela ditadura uruguaia viola a Convenção Americana dos Direitos Humanos e já foi causa de condenações do Uruguai por organismos internacionais. A Lei já foi inclusive submetida a plebiscito, onde a população do Uruguai decidiu, por estreita maioria, por mantê-la válida. No entanto, a SCJ já julgou a lei constitucional em 1988, apesar de seus problemas formais (não foi aprovada pela maioria do congresso) e viola o princípio da separação dos poderes. Apenas em 2009, a corte declarou a inconstitucionalidade parcial da lei, o que foi considerado um grande avanço para os grupos defensores dos direitos humanos. Porem retrocedeu em um julgamento de 2013, invocando o princípio da irretroatividade da lei penal, no caso, para julgar como inconstitucionais os artigos 2 e 3 da lei 18.831, que havia permitido retomar os julgamentos dos crimes cometidos no período militar.
As decisões que significaram um retrocesso na tradição uruguaia de respeito aos direitos humanos, no entanto, não podem ser consideradas como produto da influência de forças externas à corte, mas apenas uma questão de técnica jurídica. Essa conclusão deve-se ao fato de que havia no Uruguai uma clara divisão entre os contrários e os favoráveisà aplicação da Ley de Caducidad. Portanto, não poderia ter atuado a corte no sentido de agradar a maioria da população, mas apenas em obediência às leis vigentes. Inclusive, o próprio poder executivo do país, então governado por Jose Mojica (que tinha maioria também no congresso), era favorável e usou toda a influência que tinha para tentar anular a Ley de Caducidad, buscando punir os agentes que cometeram crimes em nome do governo militar.
Apesar da atuação da SCJ no caso da Ley de Caducidad, o Uruguai ainda é o país da América Latina mais progressista na garantia de direitos fundamentais. Tais conquistas vieram muitas vezes por iniciativa dos poderes executivo e legislativo, que não se furtam a discutir questões potencialmente impopulares, ao contrário do que costuma acontecer na região. O Uruguai difere dos outros países em questões de extensão territorial, homogeneidade da população, nível de educação formal e desenvolvimento relativamente elevado, o que torna esse país relativamente simples de ser analisado. Esses fatores tornam muito difícil o estudo de direito comparado com outros países da região, maiores, mais complexos, que enfrentam outras questões e/ou estão em outro nível de desenvolvimento econômicos e sociais, bem como em outro nível de amadurecimento democrático. Essas diferenças causam dificuldades para a correta formulação de metodologias a serem aplicadas aos estudos de direito comparado. Os países divergem bastante inclusive quanto à quantidade e qualidade de informações disponíveis para a realização desse tipo de estudo.
Realidades mais complexas, tal como o estudo da atuação da suprema corte dos Estados Unidos, que atua sob uma constituição muito mais sintética (o que traz mais graus de liberdade para suas decisões) e ao mesmo tempo mais sensíveis às circunstâncias políticas, exige uma análise contextual e história mais cuidadosa e elaborada. O mesmo pode-se dizer do estudo da atuação do STF no Brasil, que historicamente atuou sob diversas constituições, que são frequentemente emendadas, alternando períodos democráticos e ditatoriais, e no entanto consegue ainda atuar com certa autonomia e até aprovação (exceto em período muito recente), apesar de estar frequentemente em favor dos poderes econômicos e políticos.
Referências
https://www.nyulawglobal.org/globalex/Uruguay.html
https://www.poderjudicial.gub.uy/institucional/poder-judicial/historia/item/1398-la- republica-independiente.html
Brinks, D. M.; Blass, A.: Rethinking judicial empowerment: The new foundations of constitutional justice Helmke, G.: PUBLIC SUPPORT AND JUDICIAL CRISES IN LATIN AMERICA Helmke, G.; Rios-Figueroa, J.: Courts in Latin America Machado, P. C.: Avanços e retrocessos na luta por justiça no Uruguai pós-ditadura (1986- 2013)